“Equivocar-se. viver e morrer enganados, isto é o que fazem os homens. Mas existe uma dignidade que nos preserva de desaparecer em Deus e que transforma todos os nossos instantes em orações que não faremos jamais.”
Précis de décomposition
A filosofia não é apenas, nem principalmente, uma análise da linguagem ou uma critica da sociedade e da cultura. Ela é também uma sabedoria que se debruça sobre os problemas inatuais da existência (a morte, o efêmero. a insignificância), como uma terapêutica. A filosofia pode ser — assim como foi para os antigos, estóicos, epicuristas, e seus herdeiros modernos, os moralistas — um meio de encarar o inassimilável da vida humana, com uma consciência livre de ficções e ilusões. Continuador da tradição aforística e anti-sistemática de Kierkegaard e Nietzsche, o romeno E. M. Cioran é o mais rigoroso e exigente dos moralistas contemporâneos. Sabedoria terapêutica, método de desfascinação, seu pensamento procura ser um exercício, uma ascese em direção à lucidez que revele a ausência de fundamento, a inanidade de tudo. Cioran nasceu em 1911 em Rasinari (Transilvânia), filho de um sacerdote ortodoxo. Licenciou-se pela Faculdade de Bucareste com um estudo sobre Bergson e, em 1937, foi para Paris com uma bolsa de estudos do Instituto Francês de Bucareste. Juntamente com Mircea Eliade e Ionesco, compôs o trio de romenos célebres que escolheu Paris para viver. Estrangeiro na “cidade dos metecos”, assumindo esta deriva, partiu em busca de si mesmo, decidiu falar em seu próprio nome, seguindo a fórmula de Montaigne: “Eu sou a matéria da minha obra.” Sua condição de romeno desgarrado no cosmopolitismo parisiense colocou-o na posição que, segundo diz, é a ideal para um intelectual: apátrida, exilado. Tendo abandonado a “vitalidade balcânica” de sua língua materna, Cioran se defrontou com os “pálidos refinamentos do francês”. Deu, assim, forma linguística ao conflito entre a barbárie e a decadência, que constitui um dos grandes temas de sua obra. É desta posição de estrangeiro total, de “possuidor de raízes muito tênues mas inoperantes” que Cioran fala do vazio metafísico da vida, forjando uma espécie de sabedoria da desilusão.
Utilizando o francês, que considera a língua ideal para sentenças breves e incisivas, Cioran lança, em 1949, o seu Précis de décomposition. É o ano de Les structures élémentaires de la parenté de Lévi-Strauss e de La part maudite de Bataille, obras que reforçam a solidão e a singularidade de Cioran. Escrito em estilo suntuoso e vigoroso, o Précis formula uma filosofia pessimista e exaltada para a qual toda crença é um refúgio e “a vida só é tolerável pelo grau de mistificação que se coloca nela”. A partir daí, em intervalos longos, publica coletâneas de aforismos e ensaios de títulos irônicos e elegantes como Silogismos da amargura (1952), A tentação de existir (1956), A queda no tempo (1964), textos que expressam a mesma visão crepuscular que considera o homem um fantasma sobre a Terra, sofrendo “a magia do possível”. Em todos eles, o acento é colocado sobre a idéia de lucidez, esta palavra que significa clarividência, liberdade diante do delírio ou da loucura: “A consciência não é a lucidez. A lucidez, monopólio do homem, representa o desenlace do processo de ruptura entre o espírito e o mundo; é necessariamente consciência da consciência e, se nos distinguimos dos animais, o mérito ou a culpa é sua.”
Consciência da consciência… isso define o pensamento de Cioran conto um “pensar contra si-próprio”, um exercício de autoquestionamento. A filosofia deve tematizar este animal que se tornou “interessante” por sua própria insuficiência vital, por sua recusa dos instintos, como afirmara Nietzsche na Genealogia da moral. Deve tematizar, destruindo, elaborando uma sabedoria negativa, pois “o pensamento é, na essência, destruição”. E pensar contra nós próprios é pensar contra nossas crenças, nossas ilusões, fazer um “exercício de desfascinação”. que é como Cioran define o ceticismo.
Mas este pensamento que leva o ceticismo a seus limites tem suas obsessões, suas manias. Uma obsessão teológica: o Demiurgo perverso que, incapaz de permanecer na “beatitude da inação”, criou o mundo e ocasionou o mal. Esta concepção herética, inspirada na tradição gnóstica, fundamenta cosmicamente um universo regido pela desproporção e pela injustiça. É a visão expressa em Le mauvais demiurge (1969), que levou Jacques Lacarrière a detectar em Cioran “as mais elevadas fulgurações do pensamento gnóstico”. Uma obsessão histórica: a decadência. Como pensador da visão lúcida capaz de dissolver as crenças que dão coesão e solidez à vida dos homens, Cioran vê uma relação intrínseca entre as épocas de decadência e a possibilidade da lucidez. Estes períodos, momentos de suspensão e dúvida extremada, colocam as verdades sob suspeita e abrem caminho para uma visão desiludida: “Fascinação da decadência… épocas em que as verdades já não têm vida!” Dai a figura que mais o obseda ser Sissi, Elisabeth da Áustria, última imperatriz do império austro-húngaro. Símbolo da derrocada, a destruição do império austro-húngaro é —para Cioran — a antevisão do fim do Ocidente, do declínio deste berço de humanismo que as contradições devorarão.
Em Exercícios de admiração (1986), o mestre da desfascinação apresenta suas fascinações, exercendo o que entende por admirar: “considerar os seres neles mesmos, em sua realidade original e única, fora de seus acidentes temporais”. De Joseph de Maistre. símbolo excessivo de um pensamento reacionário, a Beckett, Michaux ou Borges, Cioran presta tributo à “vertigem soberba, sempre desconcertante, às vezes odiosa” do escritor. Este niilista radical que deseja “competir com Deus, ultrapassá-lo por meio da linguagem” tem, no espaço da escrita, sua terapia de simulacros. Se pudéssemos definir, de maneira imprecisa, o pensamento de Cioran, falaríamos de uma filosofia do desengano, pontuada pelo humor e pela exaltação, que tem o seu território marcado pelo que Susan Sontag chamou de “espiritualidade ateísta”. Místico sem objeto, metafísico que não crê nas doutrinas do Bem, do Belo e do Verdadeiro, Cioran mesmo assim parece endereçar uma prece ao Nada, à maneira de um “espirito religioso sem religião”. Produzindo uma sabedoria que não consola, este filósofo pode ser lido como um anti-Pascal, apostando na vertigem de um mundo sem crenças.
José Thomaz Brum
Rio de Janeiro, março de 1988
* Prefácio à 1ª edição de Exercícios de admiração, traduzido por José Thomaz Brum e publicado pela Editora Guanabara do Rio de Janeiro, em 1988.
[…] A sabedoria da desilusão (José Thomaz Brum). […]
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