
Alfredo Abad é filósofo colombiano, escritor e editor, professor de Filosofia na Universidad Tecnológica de Pereira (UTP) e diretor do grupo de estudos Filosofia y Escepticismo da mesma universidade. É autor de Filosofía y literatura: encrucijadas actuales (2007), Pensar lo implícito en torno a Gómez Dávila (2008) e Cioran en perspectivas (2009), este último em coautoria com Liliana Herrera. Junto a ela tem colaborado diligentemente na realização anual do Encuentro Internacional Emil Cioran, além de coeditar uma série de volumes de artigos acadêmicos em torno ao filósofo romeno e temas relacionados (resultantes dos Encuentros).
Nesta entrevista, Alfredo Abad nos conta sobre a concepção e a realização do Encuentro Internacional Emil Cioran, que vem sendo realizado anualmente, há 6 anos, na cidade de Pereira, sobre a relação entre Cioran e a Academia de um ponto de vista colombiano, a relação entre Cioran e Nietzsche e a relação entre Cioran e Nicolás Gómez Dávila, um dos mais importantes (e inclassificáveis) autores colombianos.
Rodrigo Menezes: Caro Alfredo Abad, gostaria de agradecê-lo primeiramente pela generosidade de nos conceder esta entrevista. Você tem muito a compartilhar conosco, brasileiros, em matéria de estudos cioranianos, Cioran e autores afins. Você organiza, anualmente, junto à professora Liliana Herrera, o Encuentro Internacional Emil Cioran, em Pereira, Colômbia, um evento que teve, em outubro/novembro do ano passado (2013), a sua sexta edição. Pode contar-nos como começou o congresso? Como surgiu a ideia de criar um evento acadêmico anual sobre um pensador tão marginal e tão alheio à Academia, como Cioran? Não há um congresso anual sobre Cioran nem mesmo na França, ao passo que nessa charmosa e acolhedora cidade que é Pereira (não tão conhecida dos brasileiros, como Bogotá ou Medellín) é realizado anualmente, desde 2008, um congresso internacional reunindo investigadores acadêmicos da obra Cioran. Ao lado do Colóquio Internacional de Sibiu (vinculado à Universidade Lucian Blaga), o Encuentro Internacional Emil Cioran de Pereira se destaca como um dos mais importantes eventos acadêmicos dedicados a Cioran no mundo. Por que um congresso sobre esse pensador? O que Cioran tem a oferecer em termos de pensamento? Por fim, pode nos contar um pouco sobre a recepção colombiana da obra de Cioran?
Alfredo Abad: Às vezes, acontece de darmos muita importância ao que nos parece exótico, neste caso, ao fato de que, na Colômbia, e numa cidade de província, se celebre anualmente um evento acadêmico sobre Cioran. Eu só poderia explicar este fato a partir do interesse com que Liliana Herrera – gestora do evento – se envolveu na realização do mesmo. Não creio que haja necessidade de buscar outro tipo de resposta que, em todo caso, seria desnecessária e pouco ilustrativa. Refiro-me ao porquê do interesse de Cioran por aqui, ou quais poderiam ser as congruências entre o seu contexto e o nosso, etc. Frente a esse tipo de aproximações pode-se inventar numerosas alusões que passariam longe da realidade. Eu simplesmente assumo Cioran como um grande provocador, do ponto de vista filosófico, e isso aparece para qualquer um que se interesse pelas questões centrais de uma história que começa antes mesmo dos gregos. Às vezes me parece um tanto insólito o motivo que leva a perguntar pelo interesse de alguém em relação a Cioran. Interessa porque ele centra o seu pensamento em questões que realmente inquietam o homem de qualquer lugar ou época, e, assim, faz todo o sentido que o leitor se interesse pela amplitude que sua obra proporciona. Não me surpreende em absoluto que aqui se celebre um congresso; me surpreende que não sejam realizados tantos quantos merece o autor, já que sua obra é bem conhecida em muitas latitudes. De qualquer maneira, há, sim, eventos sobre Cioran na França, na Espanha, na Itália, mesmo que não sejam regulares.
Obviamente, seu nome não é tão famoso como no caso de outro tipo de autores, mas creio que a filosofia é muito mais do que uma questão de mainstream. De fato, em algumas oportunidades, este implica uma certa superficialidade na interpretação, certos clichês que se tornam de domínio comum como acontece, às vezes, com o próprio Cioran. Em todo caso, e este é um dos objetivos do encontro, trata-se de assimilar o espírito da obra cioraniana, que é abertamente antiacadêmica e, por tanto, mais do que uma escolástica sobre a sua obra, tenta-se conceber e viver seu legado por um âmbito problemático e crítico, fiel à práxis que exige. Os atributos teóricos certamente são importantes, mesmo que às vezes possam tornar-se objetos de discussões pouco férteis que interessam mais ao especialista sem alma no qual pode acabar se convertendo todo aquele que, diante da Filosofia, vire as costas à vida. De modo algum Cioran representa este caminho.
Enfatizar o aspecto contra-acadêmico do seu pensamento pode chegar a ser contraditório, especialmente se isso é feito no interior da Academia. Entretanto, a universidade não é necessariamente um foco estatal que se conforma a um rigor e um enquadramento nos quais não há espaço para a livre discussão. Essa ideia deriva provavelmente das visões estreitas a que são submetidos autores como o próprio Cioran, quando concebem a filosofia universitária como um foco de ancilose. É necessário localizar o sentido desse tipo de críticas em suas justas proporções. Não se trata de assimilar o âmbito filosófico universitário como se, por essência, estivesse circunscrito a uma tarefa burocrática, estatal, e, assim, carente de liberdade. Justamente por isso é preciso lembrar a sua crítica, não para assumir uma atitude quase pueril de rechaço à Academia, mas para conduzi-la a a aspectos que façam da Filosofia um campo mais amplo, ligada a essa ideia de um propósito formativo que dialoga com o público especializado e não-especializado. Assim é concebido o encontro sobre Cioran.
R.M.: Você está trabalhando em uma tese de doutoramento sobre Nietzsche, que é muito estudado na Academia, e, ademais, um filósofo relativamente popular para além dos círculos acadêmicos, aspecto pelo qual (pelo menos ainda) se distingue de Cioran. Seria apenas uma questão de tempo, já que Cioran é um autor relativamente recente (tendo falecido em 1995), ou teria alguma relação com o teor, com a natureza mesma dos escritos de Cioran, ou seja, com algo traço do seu pensamento que, distintamente de Nietzsche, o tornaria mais “hostil” aos estudos acadêmicos, sobretudo em filosofia?
A.A.: Não deixa de me seduzir o fato de que a filosofia nietzscheana seja uma perspectiva trágica. Isso o faz alheio à grande maioria dos filósofos. Sua obra marcada pelo paradoxo e pela problematicidade que exige uma aproximação à ontologia, à epistemologia, à ética, à antropologia e, é claro, à estética. Creio que cada um destes domínios, em Nietzsche, nos permitiria dimensionar o sentido do que, em termos gregos, define uma physis trágica, ou seja, uma concepção antidialética e inapreensível que está inscrita em seu pensamento. Uma metafísica às avessas, mas ainda assim uma metafísica, é o que se desdobra totalmente em Nietzsche, um labirinto não recomendável a quem busca saídas ou respostas que clarifiquem o sentido. Nietzsche é, como o definirá N. Gómez Dávila, “uma interrogação imensa.”
Nietzsche e Cioran receberam muitas interpretações que os relacionam. Pode-se, com efeito, extrair inúmeras alusões nas quais é possível encontrar pontos de encontro, tanto no âmbito teórico do que representa o seu pensamento, quanto no que diz respeito ao estilo fragmentário, etc. Entretanto, as tarefas e as posturas de cada um podem se encontrar nas antípodas. É certo que Cioran tem uma fascinação por Nietzsche, principalmente em sua juventude, mas não cabe a menor dúvida de que a visão pessimista e, portanto, schopenhaueriana que Cioran demarca em sua obra, choca com o espírito vital e, do ponto de vista cioraniano, otimista, de Nietzsche. Este último não poderia ser considerado cético, ou seja, ele crê e tem confiança no homem; é claro que existe um humanismo em Nietzsche que, muito embora seja alheio àquele da Ilustração racionalista, manifesta uma tendência à consecução de uma utopia que a ótica cioraniana nega.
Ambos os autores, isso sim, coincidem na força de suas escritas, na maneira como se desligam das margens às quais ela costuma ser relegada quando são invocados certos parâmetros acadêmicos. Entretanto, Nietzsche dialoga constantemente com a tradição, tanto a clássica quanto a contemporânea, e muitos dos assuntos abordados em sua obra são determinados pelas leituras de filósofos, cientistas e literatos de sua época, o século XIX. Em Cioran ocorre algo distinto, e não me refiro a que em sua obra não haja um diálogo com o passado, mas que este se faz de um modo distinto, um pouco mais arraigado em aspectos cotidianos. Desta perspectiva, Cioran é muito mais direto que Nietzsche, pois seus textos estão determinados por acontecimentos que nascem através da descrição do vivido. Nietzsche, pelo contrário, está mais imerso em um mundo mais de acordo com que deve ter sido o dos filósofos, ou seja, está concebendo uma crítica e um terreno propositivo que exige outro nível, ligado à tradição, e, portanto, aos gostos acadêmicos. Trata-se da maneira que já não simplesmente descreve, como faz o moraliste Cioran, para passar a ser um filósofo comprometido com uma determinada visão de mundo, concebida por ele, é claro, mas ligada a uma criação ou interpretação da qual se espera algo. Esta relação é concebida num primeiro momento do ponto de vista crítico, movendo-se a partir da descrição e da anatematização da cultura cristã empreendida por Nietzsche, e também da democracia, do romantismo como distanciamento em relação ao classicismo; mas também parece que o Nietzsche propositivo, comprometido desde a juventude com o projeto de um mundo trágico, esteja ancorado em sua primeira admiração por Wagner ou na animosidade subsequente em relação ao compositor, define um cenário através do qual Cioran não transita em momento algum: o do compromisso e o da confiança.
R.M.: Em um artigo intitulado “Pensando contra si mesmo: reflexões sobre Cioran”, Susan Sontag reduz Cioran a um epígono de Nietzsche, que teria estabelecido quase toda a posição de Cioran um século antes. E se pergunta ela: por que uma mente sutil e poderosa consente em dizer o que, em grande medida, já fora dito? A resposta de Sontag é que o fato de Nietzsche teria profundos efeitos sobre Cioran: caberá ao epígono “apertar os parafusos” e “adensar o argumento”, torna-se ao menos “mais hediondo”, “mais retórico” (Estilos de Vontade Radical). Como você interpreta o comentário de Sontag? É justificado reduzir Cioran a um epígono de Nietzsche, a um pensador pós-nietzschiano sem nenhuma originalidade, nenhum valor intrínseco, e cuja obra seria apenas uma reelaboração da de Nietzsche?
A.A.: Em primeiro lugar, não acho que Sontag queira colocar Cioran apenas como um epígono de Nietzsche, caso contrário, ele não sublinharia algumas distinções entre os dois. É certo que existem algumas coincidências, entre outras, o carácter pessoal, individual e anti-académico da sua obra, porém, como indiquei na resposta à pergunta anterior, considero que o fosso aberto pelas diferenças entre os dois é maior, aspecto que certamente o texto de Sontag não acolhe. É possível fazer um balanço para determinar a dívida que o romeno tem para com Nietzsche, mas, em todo caso, apesar do que possa parecer à primeira vista, não creio que seja muita. Aspectos tão importantes como a religiosidade equívoca de Cioran, a marginalização ideológica proposital da sua filosofia, entre outros, fazem com que o fluxo de seus respectivos pensamentos tenham caminhos e destinos bem diferentes. O pensamento cioraniano reflete a preocupação com a inquietação que caracteriza a marginalização e a solidão do homem que perdeu todo o vínculo com a transcendência. O próprio Cioran lamenta essa condição, acusando a falta de validade da existência, uma vez que não pode determinar um sentido definitivo que dê uma saída à condição de abandono total na qual ele se encontra. Textos como “A árvore da vida”, em La chute dans le temps, de uma importância fundamental no conjunto da sua obra, dão conta dessa condição em que a natureza humana é interpretada como uma fratura que não pode ser consertada. Embora a obra cioraniana passe por algumas etapas de purificação escritural, de estilo, de certos interesses, é certo que não se poderia denunciar, em hipótese alguma, que qualquer um de seus seja extraído da assimilação antropológica de uma criatura marginalizada, perdida, sem saída. O desespero da sua juventude tende a convergir na direção de um ceticismo cada vez mais equilibrado e envolvente, a partir da meia-idade, mas, ainda assim, o descrédito antropológico só por vezes é suplantado por considerações irônicas, que ilustram não tanto um movimento para uma perspectiva positiva, mas uma resignação, ou lucidez, sustentada até os último seus textos.
E também poderia mencionar o efeito escritural e fragmentário que Nietzsche tem sobre Cioran. Este ponto, reconhecido pelo próprio Cioran, é fundamental; é algo que não se pode negar, pois o caráter fragmentário e paradoxal da escrita o seduz completamente. Na verdade, as fontes podem ser atribuídas, em ambos os autores, aos moralistes franceses, mas o caráter imediato, direto e anti-sistemático da escrita nietzschiana é algo especificamente localizado no programa cético de Cioran.
Amiúde, ambos os autores têm uma linha comum a partir do compromisso sugerido pelas suas pars destruens, ou seja, o manifesto bélico e subversivo que implica a leitura dos dois pensadores contra a tradição filosófica e metafísica. No entanto, há também um pars construens em Nietzsche (mas não em Cioran, como Clément Rosset explicitou, em “Le mécontentement de Cioran”, a propósito de Cioran não aderir a nenhum compromisso ideológico ou programático), e essa particularidade lhe permite tirar proveito de qualquer mergulho que tente construir uma referência de pensamento. O descontentamento de Cioran é total, mas não o de Nietzsche.
R.M.: Nietzsche diagnosticou o niilismo como sendo o problema e o desafio de toda uma cultura, a crise de toda uma civilização – a nossa. O tema do niilismo está presente nos escritos de Cioran, muito embora não trabalhado da mesma forma que Nietzsche, e tampouco com o status teórico que virão a possuir na obra e na filosofia do pensador alemão. É Cioran niilista? Em que sentido? Numa entrevista, ao ser perguntado sobre a questão, ele rejeita o rótulo, preferindo a definição de “cético” – “e mesmo isso”, mantém certa reserva, ao final da resposta… Como interpretar Cioran no que concerne questão do niilismo conforme trabalhada e divulgada por Nietzsche?
A.A.: Penso que a temática do niilismo é imprescindível para compreender as diferenças entre os dois. Ao abordar o descontentamento que caracteriza a obra do pensador romeno, é identificável a marca de seu caráter niilista pela perspectiva nietzscheana. A grande contradição que se ilustra em torno destas figuras pode cristalizar-se no rechaço, por um lado, e no acolhimento pleno, por outro, que eles expressam em relação à Vontade, à ação, o devir. Há muitas concepções diferentes disso que se pode chegar a designar em termos de “niilismo”. Neste caso, faço referência ao sentido atribuído por Nietzsche da negação vital, tal como é concebida na obra cioraniana ao ver-se distante e frustrada diante do caráter ateleológico do mundo. O de Cioran é um pensamento que, como ele mesmo assinala em uma entrevista, abomina “tudo o que aconteceu desde Adão”. Esta apreciação não tem a ver com uma crítica no sentido de tentar vislumbrar outra possibilidade frente ao estado de coisas. O pensamento de Cioran é descrente em relação ao progresso, pois afirma uma incompetência antropológica consubstancial que não pode ser melhorada, um vice de la nature que resulta num pessimismo radical. E com isso não pretendo assumir que Nietzsche creia no progresso (ao menos a ideia de progresso que nos legou o Iluminismo), mas que o seu pensamento bendiz, com uma atitude radicalmente distinta, o componente irracional e trágico frente ao qual Cioran tem uma perspectiva equívoca.
É por isso que o niilismo em Nietzsche se converte numa oportunidade de conceber outra experiência vital, enquanto em Cioran ele não passa da confirmação de uma enfermidade incurável: o homem. São duas visões completamente distintas, enfatizando, é claro, o fato de o conceito de niilismo em Nietzsche ser muito mais amplo, não circunscrito a uma experiência eminentemente antropológica, mas também cultural. Numa ocasião oportunidade, Cioran assume que, mais que niilista, o seu pensamento é cético, indicando o fato de que fazer niilismo equivaleria a um compromisso (a um programa) com o nada. Trata-se, certamente, de uma maneira de assumir a perspectiva de desconfiança absoluta pelo homem. Neste sentido Cioran seria, por uma ótica nietzscheana e vital, um niilista. É claro que este aspecto pode ser problematizado, sobretudo na hora de envolver-se no campo jovial que também existe nos textos do autor romeno, ainda que haja certo viço de ressentimento circunscrito nas palavras daquele que em caso algum pôde transigir com o seu entorno, como é o caso de Cioran.
R.M.: Numa entrevista que fiz com José Ignacio Nájera, autor de El universo malogrado: carta a Cioran (Tres Fronteras, 2008), ele cita o pensador e escritor colombiano Nicolás Gómez Dávila, aproximando-o a Cioran. Ambos possuiriam “uma sabedoria que pode ser válida para todos”, pensa Nájera. Ele diz que à leitura destes dois pensadores nós “nos esquecemos de tudo ao redor, talvez porque nos levem a territórios mais autênticos”. Você publicou um livro sobre Gómez Dávila, Pensar lo implícito: en torno a Gómez Dávila, (2008). Quais são as afinidades e paralelismo, na sua compreensão entre Gómez Dávila e Cioran?
A.A.: Nicolás Gómez Dávila é um pensador absolutamente inclassificável. Os rótulos com que costumam rotulá-lo não são necessariamente inexatos, mas não conseguem circunscrever totalmente o campo fértil que se concentra em sua obra. Costumam classificá-lo como um pensador católico, um reacionário crítico da modernidade, um moralista; todos estes pontos dizem algo do que ele representa, mas o caráter paradoxal e problemático do seu pensamento é algo que não costumam levar muito em conta, ou seja, a possibilidade de encontrar nele uma referência para pensar, não para converter. Deste ponto de vista, a obra gomezdaviliana se abre ante a filosofia atual como um referente a partir do qual se pode aceder a um pensador original como um referente a partir do qual se pode aceder a um pensador original e pouco legível a julgar pelas posturas contemporâneas.
Seu pensamento funda-se em um contexto que se poderia definir como clássico; para mim é um autor cuja filosofia está instaurada em um caminho que se abre para o classicismo grego, aspecto que se configura também em sua religiosidade. Mas, fora isso, o aspecto crítico é talvez o que mais atraía a minha atenção. É um pensador pouco convencional, com um estilo próprio, alheio a todo convencionalismo intelectual, um autor que, efetivamente, pode ser lido por qualquer um que, indo além dos preconceitos, possa reconhecer o seu arcabouço crítico.
É um reacionário que critica tanto a esquerda quanto a direita; um homem religioso mas, ao mesmo tempo, imerso na realidade plena da sensualidade; um pensador com uma ideología clara e hierárquica que ,é ao mesmo tempo, exposta em fragmentos; um católico fervente crítico da Igreja pós-conciliar; e, além disso, um grande escritor, o seu estilo é impecável. Não creio que existe em nenhuma língua uma tal contundência na hora de emitir seus juízos. Cada um pode compará-lo a outro escritor, e, de fato, são muitas as alusões neste sentido, ao declará-lo herdeiro ou próximo a outros autores que escreveram de maneira análoga. Assim, Cioran ou Nietzsche podem ser considerados referências importantes e, com efeito, há semelhanças entre eles. No entanto, admitir esse tipo de aproximações não permite dimensionar o sentido do seu estilo. É claro que os moralistes franceses tiveram uma influência muito maior sobre o autor colombiano do que os autores citados, mas, ainda assim, o estilo de Gómez Dávila é por si só muito original, e eu o considero a mais alta expressão da literatura fragmentária. Suas sentenças têm uma característica muito difícil de alcançar, no sentido de acolher tanto a forma quanto o conteúdo, conseguindo que ambos se fundam com grande acerto. Está distante da apresentação amiúde abstrata e equívoca dos fragmentos de Lichtenberg ou de Nietzsche, Gómez Dávila tem a peculiaridade de apresentar uma linha muito definida em seus Escolios a un texto implícito (aspecto que não se revela em Notas, seu primeiro livro), projetando, assim, uma confiança estilística que não desaparecerá, corroborando a maneira de polir as frases, perfilando-as com rigorosamente. Neste aspecto se revela também a maneira muito recorrente com que o autor liga o aspecto metafórico e o conceitual, sem que nenhum dos dois seja entronizado, mas que fluam lado a lado, manifestando-se assim a singularidade do escritor. Se cotejarmos o seu pensamento com o de Cioran, provavelmente encontraremos muitas semelhanças, dentre as quais a principal talvez seja o olhar desencantado sobre o homem, seus itinerários existenciais às margens do progresso e sua pouca fé em uma possibilidade de câmbio positivo. Assim, ele deixa consignado em um escólio: “O homem já não sabe se a bomba de hidrogênio é o horror final ou a última esperança.” Creio que, como Cioran, Gómez Dávila também se situa em um espaço no qual pode ser apreciado por uma ótica alheia aos ismos: É um pensamento universal e crítico.
R.M.: Como e quando você conheceu Cioran? O que o atraiu nele?
A.A.: Li Cioran pela primeira vez em 1996. Ele havia morrido no ano anterior e, como sempre acontece, alguma publicidade apareceu em torno a ele logo em seguida. Lembro que o texto era “A degradação pelo trabalho”, de seu primeiro livro, Nos cumes do desespero. Qualquer um que falasse assim da automatização que geram os trabalhos cotidianos e que, ademais, fizesse uma exaltação do ócio, teria muito mais o que dizer, algo que seguramente não iria me decepcionar. As leituras seguintes foram, assim, como aproximações a um pensador que está sendo sincero quanto às suas limitações e aos seus fracassos. É por isso que a leitura de Cioran reconforta, pela maneira como descreve algo inerente ao ser humano: sua inquietude, seu vazio… Assim também se pode compreender o caráter terapêutico da sua obra. Ainda que, teoricamente, seja um pensamento pessimista, niilista, algo acontece com sua leitura em uma ordem totalmente distinta, tornando-se um ato jovial. Essa equivocidade, ou melhor, esse aspecto paradoxal, nunca deixou de me impactar, na medida em que o humor que se deriva de sua escrita é bastante atraente. Sem o riso, não se compreende Cioran, não se consegue acolhê-lo. Há, na prática, uma jovialidade que não se pode ignorar, à qual todo leitor de Cioran deveria estar atento.
R.M.: Um livro, ou mais de um, favorito de Cioran?
A.A.: É difícil escolher um, mas o Breviário de decomposição poderia ser considerado um texto no qual converge grande parte do seu pensamento, por isso escolheria ele. Ali está concentrado o seu ceticismo, o seu misticismo, o seu humor, etc. É seu primeiro livro em francês e talvez um dos mais tortuosos. Foi reescrito várias vezes devido principalmente ao que significou o câmbio de idioma. O estilo aí consignado é maravilhoso.
R.M.: Caro Alfredo, quero agradecer uma vez mais por esta enriquecedora entrevista. E, para concluir, quero dar-lhe a palavrar para que deixe alguma mensagem final, como lhe convier, sobre Cioran, Nietzsche, Gómez Dávila, o seu país maravilhoso país, a Colômbia…
A.A.: A leitura destes três pensadores, como é o caso com todo grande filósofo, é problemática. Com isso quero dizer que não encontro neles uma saída, um âmbito a partir do qual se possa conceber um tipo de aproximação a respostas para as interrogações que o homem se faz constantemente, sobre o seu entorno, sobre si mesmo… Vejo-os todos como agentes de um tipo de filosofia que gera — de acordo com o interesse do leitor, é claro — a possibilidade de continuar interrogando e de circunscrever o assombro. Por fim, agradeço a oportunidade que este Portal oferece para dialogar sobre estes autores.
Brasil – Colômbia, fevereiro de 2014
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