Ora, um psicólogo, assim como entende o Sr. Nietzsche, é um wissenschaftlischer Mensch, cuja vocação consiste em produzir, extrair, criar saberes, até mesmo – e principalmente – de seus próprios estados, saudáveis e doentios. Sua curiosidade científica o impele, como um caçador, a percorrer o inteiro âmbito da alma humana, suas planícies, culminâncias e abismos, mesmo dobras mais obscuras, rastreando o vasto campo de experiências que constitui a história da “alma”, sempre em busca daquilo que Nietzsche denomina “a grande caça”.
Oswaldo Giacoia Junior, Nietzsche: o humano como memória e como promessa
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Na prática, qualquer um pode rivalizar com o diabo; na teoria não ocorre o mesmo. Cometer horrores e conceber o horror são dois atos irredutíveis um ao outro: não há nada em comum entre o cinismo vivido e o cinismo abstrato. Desconfiemos dos que aderem a uma filosofia tranquilizadora, dos que creem no Bem e o erigem em ídolo; não teriam chegado a isso se, debruçados honestamente sobre si mesmos, tivessem sondado suas profundezas ou seus miasmas; mas aqueles poucos que tiveram a indiscrição ou a infelicidade de mergulhar até as profundidades de seu ser, conhecem bem o que é o homem: não poderão mais amá-lo, pois não amam mais a si próprios, embora continuem – e esse é seu castigo – mais apegados a seu eu do que antes…
Cioran, História e Utopia
Por Rodrigo Inácio Ribeiro Sá Menezes
Nietzsche pertence a essa linhagem de pensadores que, desde os moralistes franceses (pensemos em La Rochefoucald, Chamfort, La Bruyère), passando por Schopenhauer, Leopardi, Dostoiévski, Chestov, Fondane, Camus e Cioran, têm como obsessão a perseguição implacável das ilusões e mentiras que operam como verdadeiras traidoras da vida, à medida que buscam dar-lhe razões e sentidos que a vida não saberia comportar: são, todos eles, psicólogos no mais amador (diletante) e profundo sentido do termo: o seu “objeto de análise”, que estes pensadores (chamem-nos “trágicos”, “pessimistas”, “niilistas”, ou simplesmente “céticos”) dissecam de maneira cirúrgica, não é outro que a psyké (são, todos eles, verdadeiros “anatomistas” da alma humana) – uma genealogia e uma arqueologia da alma, ou “a grande caça”.
Não é de outra coisa que se trata na série norte-americana True Detective, na qual o simbolismo psicofilosófico da narrativa já se faz sugerir desde o título, mediante o adjetivo que qualifica o detetive ideal ou arquetípico em questão (o que parece ter sido um encontro feliz entre o título homônimo de uma revista policial do gênero da pulp fiction, publicada desde 1924 a 1995, e as intenções filosóficas do criador). Aí, as paisagens pitorescas e desoladoras (uma wasteland, “terra devastada”) de um Estados Unidos interiorano, inóspito (desertos, pântanos, bosques, em oposição ao cenário de cidades industriais extremamente desumanas; o contraste Natureza-Cultura), refletem as paisagens da “alma” humana, no sentido apontado por Giacoia a propósito de Nietzsche. As tramas policiais e os crimes a serem solucionados não passam de pretextos para aquilo que está posto em questão de um ponto de vista filosófico (e portanto, em certo sentido, metafísico, ainda que se trate de uma metafísica ou ontologia negativa, uma meontologia), e que se dá a conhecer através dos diálogos entre os diversos personagens (a começar pelos protagonistas-detetives): uma reflexão lúcida e vertiginosa dos mais delicados – e muitas vezes horríveis – aspectos da existência dotada de uma consciência reflexiva, de um “Eu” que dura e se desdobra no devir, capaz de pensar-se e questionar-se, realizar-se e aniquilar-se, enfim, da condição humana profunda e concreta no mundo, submetida ao tempo e à finitude, à contingência e às vicissitudes da vida, ao acaso e à sorte, ou à desgraça e ao mal.

Filosoficamente, quais são as razões do pessimismo? A pergunta me vem à mente a partir de uma cena, na primeira temporada da série, em que um dos detetives – Rustin Cohle, um sujeito solitário e taciturno, mas não carente de um enorme senso de humor, muito embora obscuro – se define, ao ser interpelado pelo seu parceiro (Marty, sujeito tradicional e “durão”, típico sujeito conservador do interior dos EUA, interpretado por Woody Harrelson), “em termos filosóficos, como um pessimista”. À surpresa confusa de Marty, que o questiona o que isso quer dizer, ele replica: “que eu não levo jeito para festas”. Uma súbita declaração de tal natureza, tão estranhamente intelectualizada como se insere no contexto da situação, não cai na banalidade nem carece de justificação, justamente pela razão apontada acima: o verdadeiro detetive é uma metáfora para a figura do Filósofo-Psicólogo proposta por Nietzsche, talvez mesmo conjugada ao princípio poético da polifonia, conforme apontada por Bakhtin na literatura de Dostoiévski. Estes e os demais personagens da rede de tramas que constitui a totalidade de True Detective, que durou apenas duas temporadas (alguns bastante atormentados, todos de alguma maneira doentes, como acabamos por descobrir, não sem surpresa), são todos figuras bastante complexas e aparentemente tão “reais”, no sentido de Unamuno, do “homem de carne e osso, o que nasce, sofre e morre – sobretudo morre –, o que come e bebe e joga e dorme e pensa e quer; o homem [e a mulher] que se vê e a que se escuta, o irmão, o verdadeiro irmão” (Do sentimento trágico da vida). A impressão que se tem é a de que as suas vidas estão todas, pelas mais diversas razões, desmoronando, e todo mundo ali parece estar, de alguma maneira, “fodido”. “Cada um sofre em sua própria carne esta unidade de desastre que é o fenômeno homem. E o único sentido do tempo é multiplicar essas unidades, aumentar indefinidamente esses sofrimentos verticais que se apoiam sobre uma migalha de matéria, sobre o orgulho de um nome próprio e sobre uma solidão inapelável.” (Breviário de decomposição) Todo o contrário do “Poema em linha reta”: tratar-se-ia, aqui, de uma poética filosófica “em linha torta“; acaba-se descobrindo que todo mundo ali já deu ou tomou porrada, e que ninguém é campeão em porra nenhuma.

Curioso sobre a identidade do criador (como me acontece sempre que alguma produção da cultura de massa me toca significativamente), fui pesquisar na Internet sobre Nic Pizzolato apenas para descobrir, sem nenhuma surpresa, numa entrevista concedida por ele a The Wall Street Journal (02/02/2014), que entre as suas principais inspirações filosóficas, enquanto escritor, estão Nietzsche e Cioran (o obscuro Thomas Ligotti, autor norte-americano de ficção de horror, como The conspiracy against the human race, também é uma referência maior). Comentando os “segredos bizarros de True Detective”, ou seja, as suas fontes filosóficas e literárias, ele explica que a filosofia de Rust Cohle (cujo nome, Rustin Cohle, poderia muito bem ser um jogo com a frase Rust in Soul, “Ferrugem na Alma”), o detetive declaradamente pessimista, “é um tipo de niilismo antinatalista, e que neste sentido todos os gatos deveriam ser tirados de dentro dos sacos [variante inglesa da ideia de que é preciso desmascarar todas as farsas e mostrar que “o rei está nu”, a exemplo da fábula de Hans Christian Andersen]. Os mestres da suspeita, os caçadores de ilusões preferidos de Pizzolatto são os autores de livros como Confessions of an Antinatalist (Jim Crawford), Nihil unbound: enlightment and extinction (Ray Brassier), In the dust of this planet: horror of philosophy (Eugene Thacker), Better to have never been: the harm of coming into existence (David Benatar), Nietzsche e, é claro, “muito Cioran”:
Eu sabia que, no meu próximo trabalho, eu teria um detetive que fosse (ou pensasse que fosse) um niilista. Eu já vinha lendo Cioran durante anos e considero ele um dos meus all-time favorites, e, estranhamente, um dos autores mais nutritivos [nourishing, que também implica o sentido de espiritualmente importante, gratificante, valioso]. Ninguém se compara a Cioran, talvez apenas Nietzsche, e muitas das suas filosofias são ecoadas por Ligotti. Mas Ligotti é muito mais perturbador do que Cioran, que na verdade é muito engraçado. Explorando essas filosofias, ninguém que eu li expressou tão poderosamente a ideia de humanidade como uma aberração quanto Cioran e Ligotti.

Mas ele, Nic Pizzolato, deixa claro que ele mesmo não poderia ser menos niilista; talvez esteja familiarizado com a observação de Ernst Junger, de que “o reproche de niilismo conta-se hoje entre os mais populares, e todos o dirigem a bel-prazer contra o seu inimigo. É provável que todos tenham razão” (Über die Linie).
Respondendo sobre as minhas visões pessoais, eu não poderia ser menos niilista, ainda que a minha filosofia pessoal seja, às vezes, tida como pessimista. Eu chamaria ela de realista, contudo. Talvez inoportunamente romântica. Em todo caso, confrontar abertamente as ideias de artistas como Cioran e Ligotti, sem defesa, é ser transfixado por sua visão do indizível, da aniquilação no mais íntimo dos níveis.
E, se estamos falando de detetives ferrados, também, o que poderia ser pior do que a visão de mundo de Ligotti ou Cioran? Eles fazem os mais terríveis dos autores policiais parecerem diletantes.“Writer Nic Pizzolatto on Thomas Ligotti and the Weird Secrets of True Detective”, entrevista a The Wall Street Journal, 02/02/2014.
Voltando à série, são, com efeito, inúmeras, e mais ou menos evidentes, as referências feitas – especialmente pelo personagem de Rustin Cohle – a toda uma gama de motivos, temáticas e questões presentes na obra de Cioran, a começar pela afirmação, de Rustin Cohle, de que “este é um mundo em que nada se resolve” (referência óbvia a um dos aforismos de Nos cumes do desespero). Rótulos e etiquetas à parte (sempre limitadores, sempre empobrecedores), o “niilismo antinatalista” de Cohle não é outra coisa que a expressão dramática (cênica) de um pensamento incansável, catastroficamente lúcido, que não descansa enquanto não descobre, conhece, compreende, tudo o que é mais preciso descobrir, conhecer e compreender – se é que isto não acaba sendo, afinal de contas, que não há nada, substancialmente falando, para ser descoberto, conhecido, compreendido. Tudo é acaso, sorte ou azar, se é que não parece pairar, suspendida, sobre a história da humanidade, uma fatalidade terrível, uma necessidade negativa, um fatum abominável. Pizzolatto, como Cioran e Ligotti, parece profundamente sensível, intelectual e espiritualmente falando, àquele que é originalmente um problema teológico (no quadro da tradição cristã, esta por sua vez de ascendência judaica), e que será herdado, modernamente, de forma secularizada e naturalizante, pela Filosofia da Ética (fundamentalmente, um problema filosófico que postula um vínculo indissolúvel entre Ética e Metafísica, Psicologia e Teologia): o problema do mal e da maldade, do sofrimento físico (males naturais) e psicológico (males morais) dos quais somos, indistintamente, vítimas (e, algumas, causa eficiente do segundo tipo, segundo a moderna distinção entre males morais e naturais, estes últimos mal merecendo o nome de “males”). A negação, a recusa, a revolta, às vezes a renúncia: instrumentos da lucidez da desilusão, desse “exercício de desfacinação” em que consiste o ceticismo, segundo Cioran. O niilismo, enquanto lógica da catástrofe inscrita desde os primórdios da antropogênese, inerente à duração histórica desse animal “adoecido” de consciência, “sobrecarregado de vigílias em meio à sesta dos seres”, “exemplo de anti-natureza” e “trânsfuga do ser” (Cioran); ou, dando voz a Rustin Cohle: I think human consciousness is a tragic misstep in evolution. We became too self-aware. Nature created an aspect of nature separate from itself. [Eu penso que a consciência humana é um trágico passo em falso na evolução. Nós nos tornamos conscientes demais de nós mesmos. A natureza criou um aspecto da natureza separado dela mesma.]
O antinatalismo de Cohle é uma ética negativa radical, uma posição filosófica aparentemente absurda face ao absurdo e ao mal inerradicável da experiência humana na história. Uma postura intelectual e espiritual que se pretende lúcida, antes que niilista ou pessimista, pois se recusa a assentir com o escândalo de uma realidade humana manchada de mal, atravessada de injustiça, tortura e sofrimento inocente (crianças, mulheres, idosos, animais indefesos, minorias, grupos e indivíduos vulneráveis) – a divisa cioraniana da “felicidade do malvado” (Aveux et anathèmes), uma constante neste mundo. E Cohle: World needs bad men to keep the other bad men from the door [O mundo precisa de homens maus, para manterem os outros homens maus longe da porta]. “Niilismo” como antídoto contra a ameaça niilista, “superação” possível; niilismo como phármakon, veneno e remédio, mal e bem, como determina o caráter infinitesimalmente ambivalente do referido conceito (ademais, epistemologicamente instável, impreciso, plural), em conformidade com a “natureza” (na verdade, anti-natureza) profundamente paradoxal (e aporético) do ser humano que a ele está destinado em sua aventura histórica: o fato de que ele não tem nenhuma natureza fixa, determinada (de onde o seu caráter antropologicamente enfermo, disfuncional), a contingência sendo a sua necessidade – de onde a liberdade radical à qual, segundo Sartre, estamos todos condenados. Enfim, o antinatalismo é uma forma mentis nem um pouco estranha, aliás, a muitos dos antigos Gnósticos que tanto interessavam a Cioran, de onde o seu livro de 1969, Le mauvais démiurge [O mau demiurgo]. De fato, ela encontra-se por toda a parte ao longo da obra de Cioran, como em Breviário de decomposição, História e utopia e no próprio Le mauvais démiurge:
Aquele que, havendo gasto seus apetites, aproxima-se de uma forma limite de desapego, já não quer perpetuar-se; detesta sobreviver em outro, ao qual de resto não teria mais nada a transmitir; a espécie o apavora; é um monstro e os monstros não engendram. O “amor” o cativa ainda: aberração entre seus pensamentos. Busca um pretexto para retomar a condição comum; mas o filho lhe parece inconcebível, como a família, a hereditariedade, as leis da natureza. Sem profissão nem progenitura, cumpre – última hipóstase – seu próprio acabamento. Mas por afastado que esteja da fecundidade, um monstro mais audacioso o supera: o santo, exemplar ao mesmo tempo fascinante e repulsivo, em relação ao qual sempre se está a meio caminho e em uma posição falsa; a sua, pelo menos, é clara: já não há jogo possível, nem diletantismo. (“A negativa de procriar”, Breviário de decomposição)
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Antigamente, quando o espaço se encontrava menos abarrotado, menos infestado de homens, umas seitas, indubitavelmente inspiradas por uma força benéfica, preconizavam e praticavam a castração; por um paradoxo infernal, elas desapareceram no momento preciso em que sua doutrina teria sido mais oportuna e mais salutar do que nunca. Maníacos da procriação, bípedes de rostos desvalorizados, perdemos todo atrativo uns para os outros, e somente sobre uma terra semideserta, povoada no máximo de alguns milhares de habitantes, nossas fisionomias poderiam reencontrar seu antigo prestígio. A multiplicação de nossos semelhantes beira a imundície; o dever de amá-los beira o absurdo. Isto não impede que todos os nossos pensamentos estejam contaminados pela presença do humano, que exalem o cheiro do humano e que não consigam desembaraçar-se dele. Que verdade podem atingir, a qual revelação podem elevar-se, se esta pestilência asfixia o espírito e o torna impróprio para pensar em outra coisa que não seja esse animal pernicioso e fétido de cujas emanações está contaminado? Aquele que é fraco demais para declarar guerra ao homem nunca deveria esquecer, em seus momentos de fervor, de rezar pela vinda de um segundo dilúvio, mais radical que o primeiro. (“Odisseia do rancor”, História e utopia)
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A carne se estende cada vez mais como uma gangrena na superfície do globo. Não sabe impor-se limites, continua a fazer estrago apesar dos seus revezes, toma as suas derrotas por conquistas, não aprende nunca. Ela pertence antes de tudo ao reino do criador, e foi bem nela que ele projetou os seus instintos malfeitores. Normalmente, ela deveria aterrar menos aqueles que a contemplam do que aqueles que a fazem durar e asseguram a sua progressão. Mas não acontece assim, pois eles não sabem de que aberração são cúmplices. As mulheres grávidas um dia serão lapidadas, o instinto materno proscrito, a esterilidade aclamada. É com razão que nas seitas em que a fecundidade era tida sob suspeita, entre os bogomilos e os cátaros, condenavam-se o matrimônio, instituição abominável que todas as sociedades protegem desde sempre, para o grande desespero daqueles que não cedem à vertigem comum. (Le mauvais démiurge)
Quem é, afinal, Rust Cohle? Deve-se confiar nele, fugir dele? Puxo a resposta a partir de uma frase de Cioran a propósito do filósofo e poeta italiano Guido Ceronetti: “Não se deve nunca fugir de um misantropo.” (Exercícios de admiração). O paradoxo do niilismo é que ele é a “forma-limite da benevolência”, nas palavras do jovem Cioran (Amurgul gândurilor), no espírito desta estranha – e paradoxal – sabedoria da incúria: “Todas as morais representam um perigo para a bondade; só a incúria a salva. Por haver escolhido a fleuma de imbecil e a apatia do anjo, excluí-me dos atos e, como a bondade é incompatível com a vida, apodreci-me para ser bom.” (Breviário de decomposição). Rust é um homem desiludido, mas que nem por isso deixa de lutar por aquilo que considera justo, como o “artista da criação sem futuro” de que fala Camus em O mito de Sísifo, e o faz com uma obstinação que o leva a ser suspenso da polícia, tomando a iniciativa de demitir-se em seguida, para continuar investigando por conta própria. Ele convence Martin, com muito esforço, de que havia ainda muito a ser investigado, até finalmente descobrir a proporção e a extensão do mal que estava por detrás do assassinato ritual da jovem encontrada nua na floresta no início da primeira temporada.
A questão do mal não poderia deixar de remeter ao tema da religião – no caso específico do nosso universo ocidental, a religião cristã (e, cada vez mais, também, o islã) – e, neste sentido, à sua presença na economia da existência humana, a despeito de toda modernidade e de todo secularismo – é como se o ser humano se descobrisse mais religioso, de uma maneira invertida, “profana”, quanto mais buscasse suprimir a religião e os seus objetos de culto da efetividade da existência humana comum. “Ao divinizar a história para desacreditar Deus, o marxismo só conseguiu tornar Deus mais estranho e mais obsedante. Pode-se sufocar tudo no homem, salvo a necessidade de absoluto, que sobreviverá à destruição dos templos, e mesmo ao desaparecimento da religião sobre a Terra.” (História e utopia) O tema do fanatismo, religioso ou político, ao qual Cioran dedicaria as páginas iniciais do Breviário de decomposição (“Genealogia do fanatismo”), também será problematizado em True Detective, conforme as pistas obtidas através da investigação de um homicídio relacionado a rituais satânicos (o sacrifício de uma jovem) levam os detetives a suspeitar de membros de igrejas locais. Enquanto acompanham um culto religioso neopentecostal, Rust e Marty discutem o sentido da religião e sua necessidade no que se refere a atender, nos mais variados níveis da existência, a necessidade metafísica que seria, segundo Cioran e Schopenhauer, inerente ao ser humano. Há certa polifonia em jogo; Pizzolatto distribui a ambos os interlocutores argumentos igualmente fortes, ainda que antitéticos.

Rust: Qual você acha que é o QI médio deste grupo, hein?
Martin: Você consegue ver o Texas daí de cima do seu pedestal? O que você sabe sobre estas pessoas?
Rust: Apenas observação e dedução. Vejo uma propensão à obesidade. Pobreza. Um fraco por contos de fadas. Um pessoal colocando um punhado de moedas que eles têm dentro de uma cestinha de vime. Acho que não dá pra dizer que alguém aqui vai estar dividindo os átomos, Marty.
Martin: Tá vendo só? Essa porra dessa sua atitude. Nem todo mundo quer sentar sozinho em um apartamento vazio batendo uma com manuais de homicídio. Algumas pessoas gostam de comunidade. Um bem comum.
Rust: É, bem, se o bem comum precisa inventar contos de fadas, então não é bom pra ninguém.
Martin: Quer dizer, você consegue imaginar se as pessoas não acreditassem, que coisas elas fariam?
Rust: As mesmas coisas que fazem agora. Só que descaradamente.
Martin: Besteira. Seria um show de assassinato e devassidão, e você sabe disso.
Rust: Se a única coisa que mantém uma pessoa decente é a esperança de uma recompensa divina, então, amigo, essa pessoa é uma merda; e eu gostaria de expô-las o máximo possível.True Detective, temporada 01, episódio 03 (assista aqui)
A Cioran também não escapou o mecanismo psicológico da recompensa, ou da compensação provisória na ausência atual da recompensa (por exemplo, a salvação após a morte), modus operandi do animal metafísico, tanto em matéria de religião como de qualquer outra coisa, que é sociologicamente descrito por Rodney Stark de modo lógico-dedutivo: “Os seres humanos buscam sempre o que percebem ser recompensas e evitam o que percebem ser custos.”; ademais, segundo Stark “independentemente de poder, pessoas e grupos tenderão a aceitar compensadores religiosos, quando recompensas desejadas não existem.” (Uma teoria da religião) Não é o que pensa, e o que comprova, virtualmente, por sua existência mesma (ainda que seja apenas um produto da ficção), o Homem do subsolo de Dostoiévski. Ademais, nada é mais contrário à lucidez e, em virtude desta, à tão almejada – e tão difícil – libertação (deliverance em inglês, délivrance em francês, Erlösung em alemão), nada mais claramente indicativo de que se vive mergulhado na ilusão, no conforto de “verdades” alegres, do que a necessidade, a paixão da recompensa:
Contar seja com o que for, aqui ou alhures, é dar prova de que ainda se arrastam cadeias. O réprobo aspira ao paraíso; e esta aspiração o rebaixa, compromete-o. Ser livre é desembaraçar-se para sempre da ideia de recompensa, é não esperar nada dos homens nem dos deuses, é renunciar não somente a este mundo e a todos os mundos mas à própria salvação, é romper inclusive com a sua ideia, esta cadeia entre as cadeias.
Cioran, Le mauvais démiurge
Em suma, True Detective é uma lição de humanidade e espiritualidade em tudo o que estas palavras possuem de mais verdadeiro, se por verdadeiro tomarmos a definição de Cioran: “aquilo que não permite viver”, que “não condescende em ser nossos cúmplices” (Écartélement); tratam-se, pois, das “verdades negativas”, “irrespiráveis”, as únicas que merecem o nome de verdades. Podemos até imaginar o detetive Cohle, em sua perpétua luta contra o mal no mundo e em si mesmo, dizendo: “Já que todo o que concebeu e se realizou desde Adão é ou suspeito ou perigoso ou inútil, que fazer? Dessolidarizar-se da espécie? Seria esquecer que nunca se é tão humano quando se lamenta sê-lo.” (Cioran, La chute dans le temps) Trata-se de retratar a condição humana nua e crua, sem condescendência nem ilusão, em toda a sua miséria e em toda a sua grandeza, em toda a sua riqueza e em toda a sua impureza; trata-se, sobretudo, de retratar a condição humana exposta à falência, ao naufrágio, à queda, ao sofrimento e à ameaça de aniquilamento completo, no mais íntimo dos níveis (Pizzolatto). Como assinalou Cioran, é por nossas imperfeições que nos atrapalhamos, mas também é por elas que nos tornamos interessantes, humanos em suma, pois apenas um ser capaz de errar pode ser admirado por acertar. O homem, “ex-animal, mas ainda animal” (Écartèlement), parece defrontar-se sempre, inevitavelmente, com outro adágio latino, tão emblemático da nossa condição “humana, demasiado humana”: quod me nutrit me destruit. Termino com uma observação feita por Cioran durante sua entrevista com Sylvie Jaudeau, e que exprime bem uma lição de sabedoria que True Detective também parece oferecer:
A lucidez extrema é o último grau da consciência e dá ao ser a sensação de ter esgotado o universo, de ter sobrevivido a ele. Quem não passou por essa etapa ignora uma variedade especial de decepção, portanto o conhecimento. Os entusiastas começam a tornar-se interessante quando confrontados ao fracasso e que a ilusão os torna humanos. O bem-sucedido em tudo é necessariamente superficial. O fracasso é uma versão moderna do nada. Ao longo da minha vida, estive fascinado pelo fracasso. Um mínimo de desequilíbrio impõe-se. Ao ser perfeitamente sadio física e espiritualmente falta um saber essencial.. Uma saúde perfeita é a-espiritual.
Cioran, Entrevistas com Sylvie Jaudeau
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