Publicado em Revista Teologică [Structura cunoașterei religioase], fevereiro-março de 1932. In: CIORAN, Emil, Solitude et destin. Paris: Arcades/Gallimard, 2004, pags. 66-73. Trad. de Rodrigo Menezes.
Há algumas décadas, postular o problema do conhecimento religioso teria parecido não apenas inapropriado, mas inclusive injustificado, pois se admitia como válido apenas um tipo de conhecimento, cujos elementos precisamente determinados interditavam de transpor as fronteiras. O conhecimento racional, na origem dessa maneira de apreender o mundo, passava por válido no absoluto e excluía todos os outros modos de conhecimento; mas tinha também outro defeito: ela encolhia excessivamente o conceito de racional. Não foram, portanto, apenas os críticos de seus adversários que exerceram o descrédito atual do racionalismo, mas também os limites próprios às concepções de seus partidários.
É preciso criticar o racionalismo sob sua forma gnosiológica, o intelectualismo, por não ter se manifestado compreensão pelo problema religioso, pelas possibilidades do conhecimento religioso. O pensamento contemporâneo tem o grande mérito de ter compreendido que apenas uma tipologia das diversas formas de conhecimento, que saiba surpreender a sua essência, pode fornecer uma concepção satisfatória da variedade do real. Essa tipologia não esgota a realidade por um conhecimento integral; ela é tão-somente uma tentativa de expor comparativamente, sobre um plano atual, as formas que tiveram uma existência histórica. No que concerne ao nosso problema, ela só justifica a existência de uma fórmula geral, de um tipo entre outros. Os ensaios de tipologia – qualquer que seja sua natureza – mostram que o homem aspira a compreender a vida espiritual em toda sua riqueza; para a realidade em si, eles não têm importância. A razão essencial pela qual a estrutura do conhecimento religioso interessa tanto hoje em dia é a preeminência do intuicionismo na cultura contemporânea. O conhecimento religioso é uma forma do conhecimento intuitivo em geral. Esta formulação não visa incluir o conhecimento religioso num conhecimento mais geral, mas simplesmente situar seus elementos distintivos e específicos num quadro mais amplo.
Entre um procedimento que generaliza a ponto de apagar o individual e outro que especifica e diferencia, o segundo é preferível pois, se ele não alcança validades lógicas, aproxima-se mais de uma compreensão vívida do concreto. Para as ciências históricas, o procedimento de individualização é o único fecundo e legítimo. Entre duas pessoas que se ocupam da essência da religião, aquela que destrói a especificidade da vivência religiosa (a única fonte do sentimento religioso seria o medo, etc.), acreditando cegamente na virtude universal da genética, está menos próxima da verdade do que aquela que tenta compreender o elemento especifico e incomparável dessa vivência, a unicidade que o separa dos outros.
O que é que separa a intuição religiosa da intuição pura e simples?
Destarte, a propósito do objeto, a intuição religiosa não visa a simples objetividade tal como ela se apresenta diante de nós; nem mesmo o núcleo substancial que se mantem por detrás da diversidade de formas fenomênicas e que constitui o centro produtivo e imanente. Ela visa o absoluto que transcende a objetividade sensível. Evidentemente, não se trata aí da existência ou da inexistência do objeto vislumbrado, pois fazemos uma crítica do conhecimento e não da metafísica religiosa. O que nos interessa aqui é a intencionalidade da intuição religiosa; seu objeto intencionado, e não a estrutura essencial desse objeto. Sua realidade pode mesmo ser colocado em questão, sem que isso exclua a problemática do conhecimento religioso.
A intuição pura e simples se aplica a diversos dados do real, dados que ela tenta compreender do interior ao exterior; para a intuição religiosa, o dado do conhecimento é predeterminado. Uma e outra exprimem uma simpatia pelo objeto a ser conhecido. Qual é o substrato desta simpatia? É a certeza implícita de haver identidade de estrutura entre aquele que conhece e o objeto conhecido, para além da multiplicidade de formas da realidade. Se a intuição pura e simples explica essa identidade por um processo de objetivação psicológica, sobre cuja base o homem atribui energias subjetivas à realidade objetiva, a intuição religiosa possui esta mesma identidade por premissa. Posso conhecer Deus porque sou sua criatura. A encarnação do Verbo prova uma identidade de estrutura, sem ser o signo de uma unidade substancial na qual seria impossível operar distinções. No entanto, o valor e a eficácia da intuição religiosa não se manifesta somente na orientação do homem à divindade; uma orientação ativa desta última é igualmente necessária. Na religião, a polaridade sendo concebível apenas se ativa, a autonomia está excluída. Aliás, a polaridade tem como sentido e tendência a diminuição da autonomia. Na concepção religiosa, a intuição visa realidades ontológicas. Daí a certeza que caracteriza a intuição religiosa e que só aparece aí onde a essência da existência é surpreendida diretamente.
A intuição é um meio de conhecimento direto. O absoluto, a realidade ontológica, a existência em sua essência não se apresentam desvelados à nossa intuição ou não são cognoscíveis. Não pode haver aí nem compromisso nem aproximação.
A intuição que não se aplica à esfera religiosa concerne também a outros conteúdos ou outros objetos, aquém do domínio da ontologia. Neste caso, a intuição se orienta para certo sentido ou certa ideia. Pode-se falar, sem ser paradoxal e incorrer em platonismo, da intuição de um conceito. É de uma categoria parelha que faz parte a intuição da vida em seu fluxo dinâmico e inconsistente, em sua incessante mobilidade e em sua irracionalidade orgânica. O intelectualismo, com o conceito como único meio de apreender o real, se revelou completamente incapaz de apreender o devir concreto, o irracional no desenrolar do real. O conceito é uma forma que transcende o que é vivo. A intuição se molda sobre o elemento vivo, dinâmico e irracional. A intuição religiosa, que se encontra em todos os grandes místicos, é uma tentativa de ultrapassar as relatividades da vida e a inconsistência das formas. Nas religiões, o absoluto não é histórico, não se desdobra no processo histórico; em todo caso, o devir histórico não é uma categoria constitutiva do absoluto. Os modernos caíram no paradoxo que consiste em atribuir ao absoluto a categoria do devir histórico (por exemplo, o hegelianismo). Em matéria de religião e de mística, a intuição é uma negação da historicidade.
O caráter não progressivo da intuição, mais acentuado na intuição religiosa, vem daí. Como ela é uma apreensão direta e imediata, é natural que dispense a progressão. Ela se distingue, quanto a isto, da dialética, cujo processo de conhecimento imediato e progressivo implica um desdobramento indefinido que não tem fim. A síntese nunca é definitiva na estrutura do pensamento dialético; ela abre o caminho a novos dualismos e a novas sínteses. Este caráter progressivo determina o caráter provisório do conhecimento dialético. A intuição busca um conhecimento definitivo, o que explica o sentimento de certeza que a acompanha.
É em razão deste aspecto um tanto afetivo da intuição que se a julgou subjetiva e inválida. Mas não se deve esquecer que a vivência subjetiva, se for intenso, pode revelar um conteúdo de vida bastante rico. Em Was ist Metaphysik? [Que é metafísica?], Martin Heidegger mostra que o ennui nos revela o ente como uma totalidade. Quanto a Søren Kierkegaard, ele fala da revelação do existencial no pecado. Tudo isso prova que a experiência subjetiva, à qual se vincula a intuição, não carece de fecundidade e que, pelo contrário, as atitudes ou as perspectivas que nós chamamos grandes não passam de sublimações ou de objetivações suas, em um plano intelectualizado.
O símbolo está estreitamente ligado à estrutura intuitiva do conhecimento religioso. Quando ele aparece? Quando a intuição de uma realidade é demasiado vívida e demasiado profunda para encontrar uma expressão apropriada. Tal é a condição subjetiva. A condição objetiva tem a ver com o conteúdo rico e múltiplo do objeto, conteúdo inexprimível por uma forma simples. Aí onde a intuição não pode esclarecer seus elementos, o símbolo prova que não se pode suprimir o caminho que leva da intuição à expressão. Ele é uma expressão estática, diferentemente do mito, que é uma expressão dinâmica. Um e outro derivam da irredutibilidade do objeto, cujo caráter único e singular torna-o impróprio à conceitualização. Qual é o papel do conhecimento racional na religião? Esta questão, se nos ativermos às nossas afirmações precedentes, possui uma importância particular quando se a aplica ao material elaborado da religião, ao que ela possui de sistemático, à sua construção unitária no plano da teoria. A dogmática se coloca num plano teórico; assim, as perspectivas do conhecimento racional podem se alargar neste plano, inclusive quando ele tivesse – ora, ele tem – raízes numa região pré-teórica. O conhecimento racional pode ser exercido no quadro da dogmática, não porque ele respeitaria as exigências do racional, mas porque sua formulação é racional. Quando a religião representa um sistema e não uma vivência propriamente dita – esta apenas sendo fecunda –, é o espírito construtivo do conhecimento racional que domina. Em relação à religiosidade que engendra a religião, o plano da formulação racional é algo derivado e, por esta razão, inessencial. A intuição religiosa, que está em contato com a ontologia, constitui o elemento fundamental e essencial da experiência religiosa. É o que provam o processo histórico e a vida histórica da religião, que mostram que nas épocas em que reinava uma dialética superficial, a pobreza interior estava implícita.
A primazia do elemento intuitivo na religião desemboca na transcendência de todas as formas que se interpõem entre nós e a realidade. Esta primazia exclui os critérios e os valores transcendentes de que se serve necessariamente a religião para apreender a realidade? Quanto a isto, produz-se uma eliminação que procede mais da intenção do que dos fatos, pois a religião não pode renunciar à soma de valores que definem sua estrutura. O qualificativo “religioso” atribui naturalmente à intuição diversas notas constitutivas da religião.
Supondo-se que a intuição seja absolutamente pura, sem notas anteriores e sem valores de acompanhamento, sem processo de elaboração verá produzir-se um fenômeno que a assimila a um círculo de valores; quando é sublimada no plano teórico, a intuição sofre inevitavelmente uma assimilação desse tipo.
A religião, a arte, etc., possuem um número limitado de valores dos quais elas não poderiam se despedir sem alterar a sua substância específica. A estrutura do conhecimento religioso é determinada pela esfera de valores na qual vive a religião.
O conhecimento religioso, que é um tipo de conhecimento entre outros, é ao mesmo tempo uma forma particular da estrutura mais complexa que constitui o intuicionismo, o qual representa, por sua vez, um quadro mais vasto no conjunto dos modos de conhecimento.
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[…] Há um importante texto de Cioran, publicado ainda na Romênia, na década de 30, sobre a “estrutura do conhecimento religioso” (que é, no fundo, podemos adiantar, um conhecimento místico). Mas, antes, distinguiremos e […]
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