“Apesar de sua precariedade, estamos tão apegados a esse tempo que, para afastarnos dele, seria preciso mais do que uma alteração de nossos hábitos: teria que ocorrer uma lesão no espírito, uma rachadura no eu, por onde pudéssemos entrever o indestrutível e alcançá-lo, graça concedida apenas a alguns condenados como recompensa ao fato de haver consentido em sua própria ruína.” (História e utopia)
11/04/2018 — VAIDOSO COMO ERA, e portanto normal como a maioria de nós, Cioran não resistia à tentação de ser fotografado. Mas, sendo do contra, raramente saia nas fotos sorrindo, ou rindo; via de regra fazia uma cara séria quando não de spleen baudelairiano.

Não era a sua forma de arte favorita (era, no caso, a música), mas certamente seria instigado, para dizer o mínimo, pela obra do fotógrafo norte-americano Joel-Peter Witkin, nascido em 1939.
Witkin é filho de pai judeu e mãe católica. Seus irmãos também são artistas (no caso, pintores). Seus pais se divorciaram quando J.-P. ainda era pequeno, por supostamente não conseguirem conciliar suas divergências religiosas. Em 1961, ele se alistaria no exército na esperança de tornar-se fotógrafo de guerra no Vietnã. Estudou escultura na Cooper Union, em Nova Iorque, e obteve o título de Master of Fine Arts pela Universidade do Novo México, em Albuquerque (a mesma cidade em que se passa a série Breaking Bad).
A fotografia de Joel-Peter Witkin tem como motivo central o tema da morte e a problemática existencial da decomposição, da fragilidade, da finitude, do absurdo, enfim, da relação dramática estabelecida entre o ser humano, a mortalidade e a consciência da morte.

Sua obra explora potencialidades estéticas como o macabro e o grotesco, misturados e contrastados paradoxalmente, se não escandalosamente, com o sublime e o delicado. Suas fotografias têm em comum o fato de retratarem indivíduos excepcionais e marginalizados (outcasts, misfits, dir-se-ia em inglês): deficientes físicos, pessoas mutiladas, anões, prostitutas, mendigos, transexuais e modelos marcados por todo tipo de anomalias teratológicas (o que no passado poderia ter sido classificado como “prodígios da natureza”). Witkin combina a utilização de modelos vivos e mortos, estes últimos providenciados em necrotérios e departamentos de medicina de universidades.

Equivoca-se, por ignorância ou má-fé, quem acusa Joel-Peter Witkin de sensacionalismo, niilismo, decadentismo, perversão ou coisa que o valha. As sensibilidades tíbias e mais conservadoras só podem reagir com nojo e indignação. O filósofo britânico Roger Scruton ficaria de cabelo em pé. Antes de mais nada, estamos no território da arte, onde, a despeito de toda teoria estética, o que prevalece é sempre uma questão de goût (cf. O gosto, de Montesquieu) É claro que os gostos estéticos das pessoas podem coincidir e concordar muitas vezes, mas a arte é o terreno em que infalivelmente sempre surge algo — um artista, uma obra — para nos provocar, desafiar e colocar em questão nossos valores e pressupostos.

Witkin tem com Cioran em comum a obsessão pelo irregular, estranho, insólito, marginal. Ambos demonstram uma preocupação metafísica, mais do que existencial, de explorar os limites e abismos do humano, na fronteira com o não-humano, o inanimado, o inorgânico, o nada. Ambos pensam que isto — a consciência do sofrimento, da morte, do nada — humaniza o homem, não o contrário. Não apenas humaniza como também libera (no sentido do verbo francês délivrer, tão utilizado por Cioran); redime, reconcilia com o absurdo da existência.

Se a obra cioraniana pode ser caracterizada, a partir de Rosset (cf. Lógica do pior), como uma espécie de “terrorismo filosófico” do absurdo, a obra de Witkin parece assumir a mesma função no âmbito da foto-grafia. “Terrorismo”, leia-se: o imperativo filosófico — trágico ou pessimista-absurdo — de não compactuar com as ilusões vitais, as mentirinhas ontológicas que o ser humano se conta para não se expor à angústia diante do (seu) nada, o imperativo de denunciar e demolir essas ilusões e mentiras — imperativo de não-complacência, logo a crueldade…
A fotografia de Joel-Peter Witkin poderia ilustrar um importante ensaio de Cioran (muito embora não muito lido, nem conhecido) que integra seu livro francês de 1969, Le mauvais démiurge. Trata-se de “Paleontologia”, em que Cioran desenvolve (inspirado numa visita que fez ao museu de história natural) uma reflexão ascético-existencial sobre a finitude e a precariedade da carne, em contraste com a solidez e a durabilidade do esqueleto. A obsessão da morte e do perecível aparece aí como um princípio de libertação do sofrimento causado pela má consciência humana por um viés budista. É a salvação não pela fé na imortalidade da alma, mas pela consciência da finitude e da mortalidade, de não ser nada além de um composto destinado a se decompor.
Muito mais que o esqueleto, é a carne, quer dizer, a carcaça, o que nos perturba e nos alarma; o que nos acalma também. Os monges budistas frequentavam de bom grado os ossuários: onde mais encurralar o desejo e emancipar-se dele? Sendo o horrível uma via de liberação, em todas as épocas de fervor e de interioridade nossos restos desfrutaram de um grande prestígio. Na Idade Média, empenhavam-se na salvação, acreditavam energicamente: o cadáver estava na moda; a fé era vigorosa, indomável, amava o lívido e o fétido, sabia o benefício que se podia tirar da podridão e da fealdade. Hoje em dia, uma religião edulcorada só se apega a fantasmas gentis, à Evolução e ao Progresso. Não é ela que nos fornecerá o equivalente moderno da Dança macabra. […]
Para vencer os apegos e os inconvenientes que decorrem daí, seria preciso contemplar a nudez última de um ser, atravessar com o olhar suas entranhas e todo o resto, revolver-se no horror de suas secreções, em sua fisiologia de cadáver iminente. Tal visão não deveria ser mórbida, mas metódica, uma obsessão direcionada, particularmente salutar nos momentos difíceis. O esqueleto nos incita à serenidade; o cadáver, à renúncia. Na lição de inanidade que nos dão um e outro, a felicidade se confunde com a destruição de nossos laços. Não ter escamoteado nenhum detalhe de um ensinamento tal, e ainda assim haver-se com simulacros!CIORAN, “Paléontologie”, Le mauvais démiurge

Dado interessante: ao que tudo indica, Joel-Peter Witkin já esteve no Brasil ao menos duas vezes. A última, em 2009, com uma exposição individual no Itaú Cultural. Antes disso, esteve aqui também, ao que parece, na década de 1980, a julgar pelas cenas de um documentário sobre a sua obra em que o fotógrafo aparece andando pelas ruas de São Paulo, visitando açougues e casas do baixo meretrício, em busca de materiais e modelos para as suas fotos (vídeo abaixo).
No YouTube há outro documentário em curta-metragem muito interessante sobre a vida e a obra de Joel-Peter Witkin:
O filósofo espanhol Joan M. Marín, especialista na obra de Cioran (sobre quem escreveu El laberinto de la fatalidad) apresentou, no X Encuentro Internacional Emil Cioran, em outubro de 2017, na Colômbia, uma palestra em que abordou a obra de Joel-Peter Witkin. Certamente a recepção não foi unanimemente positiva (havia projeção de slides). Arte degenerada? Atentado aos valores tradicionais? Perversão dos bons costumes? Dessensibilização estética? E ficar imaginando a reação dessa neodireita filisteia e histérica caso houvesse no Brasil novamente uma exposição desse “monstro” adorável (como artista, como pessoa) que é Joel-Peter Witkin…

Leia mais:
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