Ninguém é pai de um poema sem morrer.
Manoel de Barros
Se leio um livro e ele torna o meu corpo tão frio que nenhum fogo seria jamais capaz de me aquecer, eu sei que aquilo é poesia.
Emily Dickinson
Se eu sinto, fisicamente, como se o topo de minha cabeça tivesse sido arrancado, eu sei que aquilo é poesia.
CIORAN NÃO TEVE a oportunidade de conhecer este gigante, e o menos pessimista dos poetas, o brasileiro mato-grossense Manoel de Barros (1916-2014). Teria amado a sua poesia pantaneira, rica de uma natureza artificiosa, tão deslumbrante quanto geradora de vertigem.
Manoel de Barros me parece a perfeita antípoda de Baudelaire, que Cioran tanto amava, e com cujos “horror e êxtase” da vida se sentia familiarizado. Barros é autor, dentre outros, de um Livro sobre nada (1996), de uma Gramática expositiva do chão (1990) que seria de muita serventia a um pensador que vive sem nenhum fundamento, e de um livro de Poemas concebidos sem pecado (1937) o que intrigaria profundamente o escritor romeno. Para Cioran, uma pretensão tal de pureza, da mais pura ausência de pecado na poesia e em toda criação, a começar pela do universo, é um contrassenso, uma impossibilidade, algo inconcebível. Mas não é isto o essencial em se tratando de uma aproximação entre Cioran e Manoel de Barros.
Ambos têm a paixão da inutilidade, da absoluta ausência de eficácia no trato poético com a linguagem. Por isso são, cada qual à sua maneira, artistas do verbo, escritores num sentido essencial, podendo-se dizer tanto do poeta que compõe versos quanto do ensaísta e cultor de aforismos que são, fundamentalmente, escritores. Palavra escrita que respira, canta mais do que fala; que inventa e desinventa, mais do que informa; silencia tanto quanto exprime; joga-se e perde-se no acaso de um lance de dados. Em seu livro sobre Cioran, Fernando Savater tece comentários muito oportunos a respeito. Segundo o filósofo espanhol,
existe um ponto de vista filosófico desde o qual o discurso pedagógico é impossível. O que se consegue ver deste ponto cego do espírito – que chamaremos aqui de lucidez –, mais do que dizer, apaga o dito; nega inclusive quando afirma – sua forma de afirmar é negar; só fala para calar ou desmentir as palavras vigentes; não busca nem a persuasão, nem o doutrinamento, nem a transmissão de nenhum conhecimento positivo: sua única tarefa, se assim se pode chamá-la, é o desengano. (Ensayo sobre Cioran)
Poéticas da inutilidade, da ineficácia enquanto modo de ser eficaz poeticamente: “Ser mais inutilizável que um santo”, desejou Cioran, aspirando a uma lúcida ineficácia, a uma lucidez ineficaz. E Manoel de Barros: “Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória de brilhantes, um parafuso de veludo e um lado primaveril.” (Arranjos para assobio). “Sim”, responderia Cioran ao interlocutor distante, e acrescentaria: “Dê um objetivo preciso à vida: ela perde instantaneamente seu atrativo. A inexatidão de seus fins a torna superior à morte – uma gota de precisão a rebaixaria à trivialidade dos túmulos. Pois uma ciência positiva do sentido da vida despovoaria a terra em um dia; e nenhum frenético conseguiria reanimar a improbabilidade fecunda do Desejo.” (Breviário de decomposição)
Cioran não precisaria de muito esforço para encontrar, em Manoel de Barros, aquilo que não descobriu em Kant e em nenhum grande filósofo (“com a exceção de Nietzsche, que é muito mais do que um filósofo”), razão pela qual daria adeus à filosofia: “algum acento de verdadeira tristeza”; “comparada à música, à mística e à poesia”, escreve Cioran, “a atividade filosófica provém de uma seiva diminuída e de uma profundidade suspeita que guardam prestígios somente para os tímidos e os tíbios. Aliás, a filosofia – inquietude pessoal, refúgio nas ideias anêmicas – é o recurso de todos os que se esquivam à exuberância corruptora da vida.” (Breviário de decomposição)
Mas mesmo as tristezas de Manoel de Barros são alegres, altaneiras, vibrantes. Como para Clément Rosset, a alegria de viver é para ele la force majeure. O poeta pantaneiro parece ter conservado, acreditar ter podido conservar a ingenuidade irrefletida da infância, a inocência, certa “pureza” do espírito. Já Cioran, autoproclamado “exilado metafísico”, não poderia sentir-se mais distante, mais estranho a tudo o que diz respeito à sua infância, que não deixa nada a desejar em termos de felicidade em relação à de Manoel de Barros. Este último é mais ingênuo do que sentimental, para empregar a tipologia de Schiller dos diferentes gênios artísticos; Cioran, por sua vez, é mais sentimental do que ingênuo (e portanto mais “racionalizante”, “cerebral”, enredado a contragosto nas tramas rígidas e abstratas do pensamento lógico).
Ambos conheceram a plenitude de uma infância irretocavelmente feliz. Cioran nos pés dos montes Cárpatos, na Transilvânia romena; Barros, na paisagem igualmente deslumbrante do Pantanal mato-grossense. Barros nunca se tornou um “exilado metafísico”, e se exílio há em sua vida e obra, não poderia ser mais prazeroso, mais solar. Cioran caiu no tempo, e em seguida do tempo; não se tem notícia de que Barros tenha caído, ou se caiu, ele não sentiu tanto a queda. Enquanto a obra de Cioran é a expressão de pensamentos noturnos, um conjunto de “silogismos da amargura”, a obra de Barros é o oposto: uma poesia diurna, veranil, ensolarada, quente e aconchegante como a sombra de uma árvore à beira-rio.
Mas isso também não é o essencial em se tratando de uma aproximação poética entre Cioran e Manoel de Barros. Estou convencido de que se dariam muito bem, caso tivessem tido a oportunidade de se conhecer. Ambos gostavam de uma boa risada. E de boas conversas. Sobretudo com a gente simples, do campo, longe da racionalização das grandes cidades. O essencial é a potência poética de uma obra concebida por razões terapêuticas, a obra como expressão de uma vida, de uma existência, de um ritmo… “Não se pode eludir a existência com explicações, só se pode suportá-la, amá-la ou odiá-la, adorá-la ou temê-la, nessa alternância de felicidade e de horror que exprime o ritmo mesmo do ser, suas oscilações, suas dissonâncias, suas veemências amargas ou alegres.” (Breviário de decomposição).
Tanto a obra de Cioran quanto a de Manoel de Barros fazem justamente isto: auscultar e exprimir o ritmo do ser, suas oscilações, dissonâncias e veemências (amargas para Cioran, alegres para Barros); ambas buscam mimetizar a Vida. São duas obras sumamente musicais, ainda que de estilos distintos. Como o poeta (em geral), Cioran é um artificialista — sobretudo em sua fase francesa. Se fosse poeta, estaria mais para um Baudelaire ou um Fernando Pessoa, notadamente o Bernardo Soares do Livro do Desassossego. Ele assume a ideia de artifício e do artificial como o fundamento de toda criação, em detrimento de uma natureza (phýsis) predeterminada e preexistente, pautada pelas noções de essência, substância, necessidade, identidade, totalidade fechada, etc. Duas expressões do artificialismo cioraniano: “As coisas que tocamos e as que concebemos são tão improváveis quanto nossos sentidos e nossa razão; só estamos seguros em nosso universo verbal, manobrável a nosso bel-prazer, e ineficaz. O ser é mudo e o espírito, tagarela. Isso se chama conhecer.” (Breviário de decomposição). E em A tentação de existir (1956), num ensaio intitulado “O estilo como aventura”: “O artista que reflete sobre os seus meios encontra-se, portanto, em dívida com o sofista, e tem com este uma espécie de parentesco orgânico. Um e outro continuam, em direções diferentes, um mesmo gênero de atividade. Tendo deixado de ser natureza, vivem em função da palavra.”
E aqui uma expressão primorosa da palavra (e da imaginação) poética de Cioran, explorando os limites absurdos da inutilidade, do horror diante da eficácia: “Onde está o ato puro de toda utilidade: sol que abomine a incandescência, anjo em um universo sem fé, ou verme ocioso em um mundo abandonado à imortalidade?” (Breviário de decomposição)
Cioran tinha um espírito demasiado poeta — artista — para não decepcionar-se com a filosofia, e fracassar nela enquanto atividade proveniente de uma “seiva diminuída” e de uma “profundidade suspeita”. Ao mesmo, era demasiado pensador — e filósofo, à sua maneira — para compor versos, para cantar definitivamente, sem o recurso à prosa. Incursionando nas Letras, o máximo a que pôde aspirar foi a ser écrivain (prosador, ensaísta, aforista), e de um tipo peculiar, falsamente modesto: “um secretário das próprias sensações”. Cioran não sabia senão escrever sobre si mesmo, ou ao menos incluir-se, enquanto subjetividade orgânica, em todas as suas reflexões de aparência objetiva e que são todas, no fundo, confissões de uma consciência atormentada que não pode esquecer-se.
O escritor argentino Ernesto Sabato, ele também melancólico e pessimista, como Cioran, relata em sua autobiografia, Antes del fín, o encontro que teve em Paris com o escritor romeno. Ao final, ele faz comentários muito pertinentes em se tratando da relação entre a vida e a obra de Cioran, o rumo obscuro que tomariam suas ideias, corroídas pelas noites em branco, e a relativa (in)eficácia que a escrita tinha, para ele, enquanto phármakon sem o qual o escritor romeno de expressão francesa não podia passar.
Tenho a convicção de que sua dor metafísica poderia ter-se aliviado caso tivesse escrito ficções, por seu caráter catártico, e porque os graves problemas da condição humana não são aptos para a coerência, mas unicamente acessíveis a essa expressão mitopoética, contraditória e paradoxal, como nossa existência.
“Na tristeza tudo se torna alma”, diz em um dos seus ensaios que tanto ajudaram a desmascarar a frivolidade e os sorrisos hipócritas destes tempos. (Antes del fín)
Para conhecer mais de Manoel de Barros:
Poesias completas. São Paulo: LeYa, 2013, 480 p.
“A desbiografia de Manoel de Barros” (Gustavo Krause)
Documentário sobre Manoel de Barros: “Só dez por cento é mentira“