Uma das melhores autodefinições do pensamento e da obra de Cioran encontra-se em A tentação de existir, numa caracterização feita não sobre si mesmo, mas sobre Nietzsche: segundo ele, “Nietzsche é uma soma de atitudes, e é rebaixá-lo querer buscar nele uma vontade de ordem, uma preocupação de unidade. Cativo de seus humores, ele registrou suas variações. Sua filosofia, meditação sobre seus caprichos, é erroneamente considerada pelos eruditos como portadora de constantes que ela recusa.” (“O comércio dos místicos”)
Cioran é, ele mesmo, uma “soma de atitudes” sem nenhuma volonté d’ordre, nenhuma souci d’unité. Também é rebaixá-lo querer apontar nele constantes que ele mesmo recusa: posições definitivas, verdades absolutas, oficialismo, unilateralismo… Pensador da contradição, da oscilação vital, da pulsação, da trepidação orgânica, com sua “filosofia de ocasião”, com suas “verdades de temperamento” (Breviário de decomposição), Cioran é um cômico, um bufão, um faz-me-rir em meio a uma multidão de chatos. “Por necessidade de recolhimento, livrei-me de Deus, desembaracei-me do último chato” (Silogismos da amargura).
Para além ou aquém dessa somme d’attitudes, pessimismo e cinismo (entre tantas outras) à parte, a que mais bem se acomoda ao seu temperamento, à sua índole, é a Dúvida cética. Pirro e Buda são os seus ídolos de sempre: “On me demande: Est-ce que vous avez subi l’influence de X et de Y?- Non. Je n’ai eu que deux maîtres: le Bouddha et Pyrrhon.” (Cahiers : 1957-1972)
Em seu livro sobre Cioran (Ensayo sobre Cioran), fruto de sua tese de doutorado nos anos 1970, Fernando Savater observa brilhantemente, dando-lhe a devida atenção, a necessidade de reconhecer esta natureza plural, polifônica e resolutamente contraditória do pensamento de Cioran, sem permitir que uma das tendências no meio dessa “soma de atitudes” assuma um papel ou valor absoluto, definitivo, etc. Cioran é uma unidade de dualidades, uma harmonia de contrários, uma convergência de divergentes, um equilibrista sobre abismos… Savater recorre ao mesmo texto citado acima, “O comércio dos místicos”:
Em que diminui a radicalidade de um ditame que tenha sido repetido mil vezes, se quem o formula chegou a padecer a experiência que o possibilita? Quanto aos que tentam conhecer as opiniões dos místicos sobre cada tema, Cioran diz: “Maníacos do rigor, querem saber o que pensava o autor da eternidade e da morte. O que pensava ele? Pensava as coisas mais diversas. São experiências suas, pessoais e absolutas” (TE). O importante do místico, precisamente, é que alcança uma estranha forma de sabedoria de nada que não é pedagogicamente transmissível, porque brota de uma experiência, não de um aprendizado; o que diz é irrelevante ou intercambiável, mas provém de algo que não o é. (Ensayo sobre Cioran)
As coisas mais diversas, todo tipo de coisas… agora isto, em seguida aquilo, e depois aquilo outro, e amanhã isto novamente, para então pensar diferentemente, e assim indefinidamente, ad infinitum. O que pensa Cioran sobre Deus? A alma? A existência? A filosofia? Muitas coisas, e a sua obra não faz senão comunicar essa variedade de instantes, posições, estados de ânimo. É ridículo decidir-se: de agora em diante, é isto o que eu penso sobre tal ou tal questão, digamos, Deus, a alma, a existência, o sentido da vida e da morte, e tudo o mais que possa concernir ao animal metafísico, animal antinatural.
Cioran não é um niilista típico; será mesmo niilista? O espantalho ri enquanto os chatos quebram a cabeça, encantados ou ultrajados; tanto faz: “A sátira e o suspiro me parecem igualmente válidos. Tanto em um panfleto como em um Ars Moriendi, tudo é verdadeiro… Com o desembaraço da piedade adoto todas as verdades e todas as palavras. ‘Serás objetivo!’ – maldição do niilista que acredita em tudo.” (Silogismos da amargura)
Cioran não é mais niilista que antiniilista, ao menos não no sentido convencional em que se costuma entender este conceito, tão indefinível e ao mesmo tempo tão desgastado. Não é do tipo que não crê em nada porque nega que haja algo em que se possa crer, mas daquele que não crê em nada porque crê, ou poderia crer, em tudo, absolutamente tudo, na existência e na inexistência de Deus, na mortalidade e na imortalidade da alma, na eternidade e na ausência de eternidade, na perfeição do absoluto e na imperfeição da existência, na verdade e na ausência de verdade, enfim, em tudo e nada.
Há uma hierarquia existencial e vital dos problemas, que a Filosofia tende, segundo Cioran, a falsificar, inverter e subverter. “A morte coloca um problema que substitui todos os outros. Há algo mais funesto para a filosofia, para essa ingênua crença na hierarquia das perplexidades?” (Silogismos da amargura). Dito isso, “‘o o que é a verdade?’ Uma questão fundamental. Mas ínfima comparada com esta: ‘Como suportar a vida?’, a qual por sua vez empalicede ao lado desta: ‘Como suportar-se?’ — eis a pergunta capital à qual ninguém pode dar-nos uma resposta” (Aveux et anathèmes)
Como Nietzsche, o filósofo romeno considerava o budismo uma religião espiritualmente mais avançada, mais “higiênica” (sem sangue, histeria, lorota, direto ao que interessa), do que o cristianismo. Mas, diferentemente de Nietzsche, Cioran gostaria de ter sido, de ter podido ser budista, o que não lhe foi possível pela mesma razão que o impediria de aderir a qualquer religião, ou, melhor dizendo, ao que quer que fosse. O budismo lhe era necessário — e inacessível. Ao ser indagado se é possível escolher conscientemente uma religião, ele responde: “Essa escolha se faz, apesar de tudo, por afinidade secreta. Há muitos pontos precisos como a visão do sofrimento (dukkha), que eu aceito, mas a transmigração e outros aspectos do budismo, como aceitá-los? É preciso pertencer a uma tradição para poder subscrever a esse tipo de coisas.” (Entretiens)
Não é apenas por afinidade secreta ou eletiva que a obra cioraniana contém uma infinidade de elementos, referências, noções (para não dizer conceitos), enfim, ideias “orientais”, isto é, oriundas não da tradição cultural e espiritual do Ocidente, grega ou judaico-cristã, mas oriundas da Índia, da China, do Japão. Budismo, basicamente — a religião mais atraente aos olhos do cético transilvano. Não apenas: a Romênia mesma (país oficialmente cristão-ortodoxo), no Leste europeu, é um país cuja história e geografia o situa numa encruzilhada de povos e culturas, no umbral entre o Ocidente europeu e o Oriente asiático. Poeta, Cioran gostava de inventar-se diferentes genealogias, a bel-prazer:
Às vezes tenho a tentação de inventar, para mim, uma outra genealogia, de mudar de ancestrais, de escolhê-los entre aqueles que, em sua época, souberam difundir o luto através das nações, ao contrário dos meus, dos nossos, apagados e machucados, atulhados de misérias, amalgamados ao lodo e gemendo sob o anátema dos séculos. Sim, em minhas crises de fatuidade, julgo-me o epígono de uma horda ilustre por suas depredações, um turaniano de coração, o herdeiro legítimo das estepes, o último mongol… (História e utopia)
Faz falta reconhecer esse lado asiático, “mongol”, a dimensão não grega, não cristã, mas oriental, notadamente budista (mas não apenas) do pensamento de Cioran. Esta dimensão encontra-se na intersecção com outra, a dimensão gnóstica em grande medida ignorada ou negligenciada do autor romeno de expressão francesa. É inútil querer “salvar” Cioran, tanto para a causa (ideológica) do ateísmo cético quanto para a causa (religiosa) da ortodoxia, que ele tanto renegou; Cioran quis construir uma carreira na heresia. Peter Sloterdijk bem o observou; segundo ele
o existencialismo da obstinação de origem alemã – contornando o existencialismo da resistência, da obediência francesa, que Cioran desprezava como uma moda – se transforma em um existencialismo da incurabilidade, tingido com tintas cripto-romenas e dácio-bogomilas, para parar no fronteira do inexistencialismo asiático. Em todas as épocas de sua vida, Cioran experimenta, ao modo da vanitas europeia, o sentimento de uma irrealidade global; no entanto, ele não chega a decidir-se a seguir o budismo na medida em que este abandona a tese da realidade enquanto tal e, junto com ela, a tese de Deus. […] (“O prior da Ordem da Santa Temeridade“)
A soma de atitudes mencionada no início, a antinomia, a contradição, a indecisão decidida — esse aspecto fundamental do pensamento de Cioran exprime-se também no âmbito do pensamento oriental, notadamente na controvérsia filosófica entre a postulação do atman e a sua antítese, anatman. O primeiro é o nome que Schopenhauer deu à sua querida poodle. Atman (princípio fundamental do hinduísmo) pode ser entendido como o que para nós ocidentais seria o Self, o eu absoluto, a alma como essência, realidade substancial e eterna, imortal, etc. Mooji, o mestre hindu que se tornou popular por seus satsangs transmitidos ao vivo no YouTube (e que já esteve algumas vezes no Brasil), postula a existência de atman.
An-atman seria a negação de atman, um princípio eminentemente budista (muito embora existam escolas do budismo que preconizam a existência e a realidade disso que é atman). Não-ser, não-alma, não-eu, portanto nada de substância, de imortalidade, de eternidade, de essência permanente e necessária… Só o que existe é o devir transitório, a impermanência, a geração e a corrupção interdependentes; o ente humano, como ademais todo ente, não passa do encontro fortuito, e ao mesmo tempo “divino”, de elementos transitórios e associados, para além dos quais nenhuma “essência” subsiste, e que deverão se separar e dispersar cedo ou tarde, levando à dissolução daquilo que se habituou a chamar de “eu”…
Ora, é possível verificar, no conjunto da obra de Cioran, expressões tanto de anatman (o mais esperado) como também de atman. Nem só o budismo interessava a ele; o hinduísmo, o taoismo (e quais mais!) também. Não é de estranhar que, no âmbito do pensamento e da espiritualidade orientais, que Cioran tanto conhecia, o seu pensamento oscile na tensão entre atitudes contrárias. A antinomia traduz-se também nestes termos: ou o “eu verdadeiro” não “morre” porque não “nasce” (é ingerado, incriado, e portanto indestrutível, eterno), ou então nada há fora da existência, antes do nascimento e depois da morte, a existência não sendo senão uma duração mais ou menos efêmera em que elementos se associam num composto fadado a decompor-se em direção ao inorgânico.
Anatman encontra-se mais fortemente no contexto de Le mauvais démiurge (1969), cujo título explicitamente gnóstico esconde o que o livro tem de budista (dois ensaios, dos mais importantes na composição do volume, “Paleontologia” e “O não-liberto”). Assim começa o ensaio intitulado L’indélivré:
Quanto mais consideramos a última exortação do Buda: “A morte é inerente a todas as coisas compostas. Trabalhai sem trégua por vossa salvação”, mais nos perturba a impossibilidade em que nos encontramos de sentir-nos agregado, encontro transitório, senão fortuito, de elementos. Nós nos concebemos assim facilmente no abstrato; no imediato, nós nos recusamos fisicamente a fazê-lo, como se se tratasse de uma evidência inassimilável. Enquanto não tenhamos triunfado dessa repugnância orgânica, continuaremos a suportar esse flagelo com base no enfeitiçamento que é o apetite de existir. (Le mauvais démiurge)
Muito embora o temperamento, o humor de Le mauvais démiurge se incline mais à ideia de anatman, conforme implicada no trecho acima, esta palavra não aparece textualmente. Aparece, esta sim, atman (no ensaio anterior, “Paleontologia”):
Diz-se no Katha-Upanishad, a propósito do atman, que ele é “alegre e sem alegria”. Eis um estado a que se acede seja pela afirmação de um princípio supremo, seja por sua negação, tanto pelo desvio do Vedanta quanto pelo do Mahayana. Por mais distintas que sejam, as duas vias se encontram na experiência final, no deslizamento para fora das aparências. (Le mauvais démiurge)
Mas é em História e utopia (1964), especificamente nas últimas páginas do último ensaio do livro, que a ideia de atman aparecerá (sem inscrição do nome) com maior força:
Por mais implacáveis que sejam nossas recusas, não destruímos totalmente os objetos de nossa nostalgia. De nada vale deixar de acreditar na realidade geográfica do paraíso ou em suas diversas figurações, ele reside de qualquer maneira em nós como um dado supremo, como uma dimensão de nosso eu original; trata-se agora de descobri-lo aí. Quando o conseguimos, entramos nessa glória que os teólogos chamam essencial; mas não é Deus que vemos face a face, é o eterno presente, conquistado acima do devir e da própria eternidade… […] O remédio para nossos males é em nós mesmos que devemos buscá-lo, no princípio intemporal de nossa natureza. Se a irrealidade de tal princípio fosse demonstrada, provada, estaríamos irremediavelmente perdidos. […] Só há paraíso no mais profundo de nosso ser, e como que no eu do eu; ainda é preciso, para encontrá-lo aí, ter recorrido a todos os paraísos, desaparecidos e possíveis, tê-los amado e detestado com a rudeza do fanatismo, tê-los escrutado e rejeitado depois com a competência da decepção. (“A idade de ouro”, História e utopia)
“Eu original”, “princípio intemporal de nossa natureza”, “eu do eu”: Cioran devia ter acabado de ler algum livro sobre filosofia hindu não-dualista, e estava inspirado pela leitura. Tudo isso soa justamente o oposto do anatman, princípio budista que é, aparentemente, aquele que mais bem se acomoda ao seu pensamento cético e trágico, pautado predominantemente na noção de acaso em detrimento do seu oposto, a necessidade (Parmênides). “Quando vejo um cão ou um porco precipitar-se sobre a comida, eu os compreendo fraternalmente. E pensar que há tantos meses as minhas leituras versam essencialmente sobre a renúncia, e que os livros que mais amo são os de filosofia hindu” (Cahiers: 1957-1972)
Em meio ao multifacetado universo budista, cujas escolas e variações ultrapassam imensuravelmente, em número, as formas de cristianismo (católico romano, ortodoxo oriental, protestante, outros), Cioran tinha também suas predileções. O zen-budismo uma delas. Mas não a principal. Seu principal interesse, sua maior afinidade eletiva, em se tratando de budismo, é a escola indiana Madhyamika, fundada pelo filósofo Nagarjuna (c. 150-250 d.C.). Atribui-se a ele a doutrina do Prajñāpāramitā, mencionada por Cioran em “Paleontologia“. De Nagarjuna, está traduzida ao português a Carta a um amigo (Palas Athena), tratado escrito sob a forma de conselhos a um rei, preconizando a prática budista da purificação da mente.
Nietzsche se encarniçou não apenas contra o cristianismo, mas contra toda forma de religião ascética, e o budismo não é das menos importantes. Morto Deus, caído em descrédito o cristianismo, ele temia a insurgência de um neobudismo na cultura e na espiritualidade europeia. Para Nietzsche, são todas elas, assim como todos os ascetismos, signos de declínio da força vital, decadência, corrupção dos instintos, mortificação, negação da vida, ressentimento. Niilismo. Cioran não concorda com o antecessor alemão com que ascetismo e niilismo sejam sinônimos, enquanto formas de negação da vida e de ressentimento. Assim como não concorda com que a vida seja, universal e indistintamente, vontade de poder (ideia mais antropomórfica, impossível). Já é difícil subscrever à versão schopenhaueriana, dessa Vontade de vida que se encontra em todos os seres e todas as coisas, e cuja natureza fundamental o homem conhece em si mesmo, na experiência subjetiva do corpo, caso em que é tanto o sujeito quanto o objeto do conhecimento.
Há muito vigor, muita vitalidade, muita volúpia, muito pathos de conquista na mística, budista, cristã ou outra. Essa mística que Nietzsche desprezava como sinal de vitalidade em baixa, fraqueza, doença, deficiência. Sobre os místicos católicos em particular, “longe de serem deficientes, lutaram pela sua fé, enfrentaram diretamente Deus, apropriaram-se do Céu. […] Para melhor os adivinharmos, imaginemos um Fernando Cortez no meio de uma geografia invisível.” (“O comércio dos místicos”) Pensando e escrevendo na ressaca da embriaguez nietzschiana, do frenesi de sua vontade de potência, das piruetas do Super-homem, Cioran não poderia soar mais “budista” ao afirmar que
a doença é uma realidade imensa, a propriedade essencial da vida — não apenas de tudo o que vive, mas também tudo o que é está submetido a ela: a pedra mesma está sujeita. Apenas o vazio não é doente; mas para ter acesso a ele, é preciso está-lo. Pois ninguém são poderia alcançá-lo. A saúde espera a doença; apenas a doença pode conduzir à negação salutar dela mesma. (Cahiers: 1957-1972)
Ontologia da enfermidade: quanto mais se crê saudável (fundamental e metafisicamente, para além das determinações psicofísicas), menos se o é. Se mesmo “o bem é um mal”, como afirma Cioran, na entrevista com Sylvie Jaudeau, então é lícito dizer que “mesmo a saúde é uma doença”. Tudo está enfermo, pois o “Ser” é uma enfermidade, mais do que uma ilusão: é uma colônia de bactérias do espírito, uma metástase no vazio. E por que isso? Pois tudo está misturado, confundido, na instabilidade de uma união tensionada; e, antropologicamente, “todo aquele que se confunde com o que quer que seja mostra disposições mórbidas: não existe salvação nem saúde fora do ser puro, tão puro quanto o vazio”, escreve ele no ensaio sobre o Joseph de Maistre, cuja salvação não é pelo vazio.
Nenhum pensamento mais alheio a Cioran do que o de Parmênides, o seu pensamento é anti-parmenídico: “Não vejo em nenhum lugar o ser que ele exalta e mal consigo me imaginar em sua esfera que não possui nenhuma fissura, nenhum lugar para mim” (Aveux et anathèmes). Cioran não é um pensador do Ser, ou, propriamente falando, do Ser enquanto necessidade, identidade, unidade, do do ser enquanto contingência e liberdade radical, aberta à alteridade do não-ser, multiplicidade de entes compostos sem nenhuma unidade essencial subjacente. A sua é uma meontologia (uma ontologia do não-ser, do nada), em contraposição à ontologia de Parmênides.
Fazer meontologia, ou seja, uma teoria do nada, não significa ser niilista, no sentido depreciativo catalogado por Nietzsche em termos de “niilismo passivo”, sinônimo de pessimismo, tristeza, desespero, suicídio… Schopenhauer, do fundo do seu pessimismo, não parecia nem um pouco niilista, como, digamos, alguns personagens de Dostoiévski, tipo Stavroguin ou Kirilov. Em Cioran há também muito pessimismo filosófico (metafísico, mais do que existencial), e niilismo, e melancolia, e desespero… mas tudo isso não necessariamente deriva do seu comércio com o Nada, visto pelo autor muitas vezes como luminoso, pleno, “divino”, aproximando-se da vacuidade (sunnyata) budista. Muito pelo contrário, talvez: deriva da decepção com um Ser que se revela, cedo ou tarde, uma ficção vazia e idiota (no sentido proposto por Clémet Rosset de nada dizer, nada significar, pura opacidade muda). “O ser não decepciona nunca, afirmou um filósofo. Quem decepciona, então? Impossível que seja o não-ser, por definição incapaz de decepcionar. Esta vantagem, forçosamente irritante para o nosso filósofo, obrigou-o a promulgar tão evidente falsidade.” (Aveux et anathèmes)
Cioran é um adepto da tese da irrealidade universal, em oposição à tese que existe um Ser, e ele possui realidade, permanência, plenitude, substância ontológica:
Sou um “ser” por metáfora; se fosse um de fato, eu permaneceria enquanto tal, e a morte, destituída de significação, não teria nenhum poder sobre mim. “Trabalhai sem trégua por vossa salvação”, ou seja, não vos esquecei que sois um conjunto fugidio, um uma composição cujos ingredientes não esperam por desagregar-se. A salvação, efetivamente, só faz sentido se nós somos provisórios até a derrisão; houvesse em nós o menor princípio de duração, estaríamos desde sempre salvos ou perdidos: quanto mais busca, mais horizonte. Se a libertação importa, a nossa irrealidade é uma benção. (L’indélivré)
Cioran se esforça para interiorizar a ideia de irrealidade universal, de não ser senão uma composição transitória de ingredientes em processo de dissolução, de-composição. Numa palavra: “ser” nada. Debate-se em meio a dualismos, suspirando por uma unidade inacessível, se não inexistente (a orientação hinduísta de Mooji é Advaita, “não-dualidade”). Mas a ideia do Ser é uma tentação, ele o reconhece, tão irresistível quanto a “tentação de existir“. Invariavelmente, terminamos recaindo, réprobos, em nossos velhos erros, velhas ilusões, velhos preconceitos. Reconhece-se demasiado ocidental, demasiado cristianizado, e marcado pela tara logocêntrica que nos constitui a todos. Cioran encontra no budismo se não uma forma de salvação efetivamente ao seu alcance, certamente uma possibilidade, um recurso de libertação relativa em relação aos tormentos da carne, da consciência e do desejo, esse gerador de mundos e quimeras. Uma possibilidade de caminho religioso para quem não está predisposto a aderir a dogmas mirabolantes, sobrenaturezas prodigiosas, essências puras e separadas, absolutos transcendentes para além do mundo fenomênico…
MENEZES, Rodrigo Inácio R. Sá, “Atman e Anatman no pensamento de Cioran: entre a imortalidade e a mortalidade”, Portal E. M. Cioran Brasil, 21 de abril de 2018