A Loucura & a Sociedade – Roland JACCARD

Da Idade Teológica à Idade da Razão

É um lugar-comum — mas é preciso não desprezá-los, os cemitérios são lugares-comuns — da sociologia e da etnopsiquiatria afirmar que a doença só tem sua realidade e seu valor de doença numa cultura que a reconhece como tal. Assim, por exemplo, o histérico do século XIX que tinha visões e que apresentava estigmas foi, sob outros céus e em outras épocas, um místico visionário e taumaturgo.

Há, além disso, fenômenos da moda na doença mental: a grande crise histérica descrita por Charcot não se encontra mais em nossos dias, praticamente, e a frigidez, que era considerada virtude não há muito tempo, torna-se hoje um mal e um motivo de queixa. Os biólogos da psiquiatria enfrentam problemas quando se trata de levar em consideração essas variações históricas e culturais.

Os sintomas da enfermidade mental opõem-se sempre, de uma forma ou de outra, à normal social: a escolha do sintoma é determinada negativamente pelas normas sociais ambientes. Como escreve Françoise Laplantine, “ninguém fica louco por querer: a cultura previu tudo. No âmago mesmo da elaboração da neurose e da psicose pela qual procuramos fugir dela, a cultura vem ainda ao nosso encontro para nos dizer que personalidade substitutiva devemos adotar”.

É efetivamente a sociedade que define as normas do pensamento e do comportamento; é ela que determina os limites da loucura. Cheio de suas ilusões, seguro de seu saber, o psiquiatra que se considera independente do contexto social não percebe que, com muita frequência, é a sociedade que faz o diagnóstico e que ele existe simplesmente para dar-lhe seu aval.

As concepções primitivas da loucura constituem uma categoria do sagrado, seja do sagrado religioso, seja do sagrado demoníaco. Ainda no Novo Testamento, vemos a loucura considerada como uma possessão pelos maus espíritos, que é necessário expulsar do corpo do doente, para curá-lo. Roger Bastide observa que, ao mesmo tempo em que triunfa o cristianismo, triunfa também um esquema maniqueu de delírios e atos insólitos que são o fruto do pecado, do lado humano, e da luta de Satã contra Deus pelo domínio do mundo.

É apenas com o Renascimento e a Reforma que uma concepção científica substitui progressivamente uma concepção teológica do mundo. Os loucos não serão mais considerados como “possuídos” pelo demônio, mas como pessoas perigosas ou improdutivas, tal como os criminosos, os debochados e os miseráveis que subsistem graças à mendicância; por essa razão, serão excluídos da sociedade e “internados” com as outras categorias, e por vezes nos mesmos lugares.

“Se, na Idade Teológica, ser humano significava adorar a Deus (Jesus), se ser virtuoso significava ser um cristão de fidelidade a toda prova (um santo) e ser mau significava ser herege (uma feiticeira), na Idade da Razão ser verdadeiramente humano significa adorar a Ciência (a Tecnologia, o Progresso), ser virtuoso significa gozar boa saúde (ser feliz), e ser mau significa estar mentalmente doente (ser infeliz)”, escreve Thomas Szasz, professor de psiquiatria da Universidade de Nova York. Segundo ele, a ideologia da psiquiatria moderna é apenas uma adaptação, à era científica, da ideologia cristã tradicional. O homem já não nasce pecador, mas doente (neurótico ou psicótico). Em lugar de um vale de lágrimas, sua permanência na terra se torna um rio de anomalias patológicas. E tal como na sua viagem do berço ao túmulo era guiado pelo padre, é hoje orientado pelo médico. “Parece-me”, escreve Szasz, “que tal como na Idade da Fé o poder político era monopólio da Igreja e do Estado, assim na Idade da Razão ele é monopólio da Ciência e do Estado. A Igreja glorificava seus valores edificando catedrais e santuários e convertendo autoritariamente os não-crentes, enquanto a Ciência faz o mesmo construindo hospitais e asilos de alienados, em suma, tratando os loucos autoritariamente.

Como não ver, com efeito, que se na Idade da Fé os homens afirmavam a existência e a glória de Deus criando feiticeiras, essas criaturas do diabo,  o que confirmava o poderio divino, na Idade da Razão os homens afirmam a existência e a glória da Razão dando origem aos loucos que, ameaçando não apenas a segurança ou a saúde, mas aquilo pelo que o homem se define, ou seja, a Razão, vão assegurar o seu poder?

Em outras palavras, a ideologia dominante fabrica, em todos os casos, o seu opositor — a Feiticeira, o Louco –, dando-se os meios de vencê-lo — a Inquisição, a Psiquiatria — e, graças a essa vitória — a Fogueira, o Hospício –, de fortalecer o seu poder.

O louco como bode expiatório

Como observa o psiquiatra italiano Franco Basaglia, a norma social expulsa de si mesma, ao identificá-la com o doente mental, a imagem “incompreensível” e “perigosa” de uma possibilidade de transformação que a tornaria totalmente outra, desordenada… “O indivíduo são”, acrescenta Basaglia, “projeta sobre o indivíduo indefeso uma agressividade que não saberia dirigir a outro objeto e que, a todo momento, pode destruí-lo (…) a normalidade de seu ser é assim confirmada pela máscara desumana que fixa no louco: recusando-se a reconhecer-se nele, aceita de bom grado a desumanidade de sua subordinação.” O louco representa bem, então, o negativo que, em contraste, faz surgir a normalidade social ou individual.

Quanto a isso, devemos dizer que a perseguição da feiticeira, como a do louco — mas também a do herege, do judeu, do negro, do homossexual, do dissidente político –, constitui um exemplo de uma prática milenar: o sacrifício do bode expiatório. A sociedade purifica-se, transferindo para uma imagem mítica, e nela fixando, os seus temores e contradições.

Além disso, e é quase uma lei sociológica, quanto maior a distância entre as prescrições morais e o comportamento social real, mais se fará sentir a necessidade de sacrificar os bodes expiatórios para a manutenção do mito social segundo o qual o homem vive de acordo com as éticas que professa oficialmente.

O etnólogo inglês James Frazer foi o primeiro, em fins do século XIX, a salientar que entre os “primitivos” (qualificativo que permite que nos consideremos, sem muita dificuldade, como “modernos”) a existência do fenômeno da projeção, da exteriorização, fora do Eu, do mal, da infelicidade, do pecado. O costume do bode expiatório, o mais conhecido graças a um texto célebre da Bíblia (Levítico XVI, 21-22), proporcionou a Frazer o conceito que designa o conjunto desses ritos de exteriorização: “E Aarão, colocando suas mãos sobre a cabeça do bode vivo, lançará sobre ele todas as iniquidades dos filhos de Israel, e todos os seus crimes, segundo todos os seus pecados, e os colocará sobre a cabeça do bode, e o mandará levar ao deserto. O bode levará consigo portanto todas as iniquidades dos filhos de Israel para uma terra desabitada, e o homem soltará o bode no deserto.”

Na Grécia antiga, uma dessas cerimônias consistia no sacrifício humano. A escolha, a designação, os cuidados particulares e, finalmente, a destruição ritual do bode expiatório (em grego, pharmakós) eram a intervenção “terapêutica” mais importante e mais significativa conhecida pelo homem “primitivo”.

Depois que a prática dos sacrifícios humanos foi abandonada na Grécua, sem dúvida mais ou menos no século VI a.C., a palavra pharmakós (no plural, pharmakoi) acaba por significar “medicamento”, “droga” ou “veneno”. Segundo Murray, ela encerra, literalmente, o sentido de “medicamento humano” ou “bode expiatório”. Martin Nilsson propõe uma explicação ainda mais reveladora: “O pharmakós era qualquer coisa semelhante à esponja com que se limpa uma mesa e que, quando está totalmente impregnada das impurezas que absorveu, é destruída para que, com ela, sejam destruídas as impurezas que contém. É posta fora, é queimada, é lançada no mar.”

Thomas Szasz observa ironicamente que, quando os antigos viam um bode expiatório, reconheciam-no como tal: era o pharmakós. Quando o homem moderno o vê, não o reconhece como tal (ou se recusa a reconhecê-lo); busca, ao contrário, explicações “científicas” para justificar-se.

Além disso, Szasz propõe uma judiciosa comparação entre as sociedades primitivas canibalescas e as sociedades modernas:

A sociedade evoluiu, sem dúvida, ao renunciar ao canibalismo, mas o preço dessa evolução é pago pelo bode expiatório, que continua sendo a vítima indispensável de nossas sociedades não-canibais.

Nas sociedades consideradas primitivas, não só os homens comem carne humana pelas suas características simbólico-mágicas, como atribuem aos animamos qualidades humanas e sobrenaturais. Nas sociedades consideradas modernas, os homens fazem o contrário: renunciam a comer a carne humana e atribuem qualidades animais e subumanas a certas pessoas (como as feiticeiras, os loucos, os judeus, etc.)

Segundo Thomas Szasz, a tendência (talvez devêssemos considerá-la um reflexo) de sacrificar um bode expiatório para salvar o grupo da desintegração e, em consequência, o Eu da dissolução, seria parte da natureza profunda do homem. Segue-se que, quando o homem se recusar a sacrificar bodes expiatórios e se mostrar pronto a reconhecer e assumir as cargas e responsabilidades que são suas e de seu grupo, terá dado um passo fundamental no caminho do desenvolvimento moral, comparável talvez à sua rejeição do canibalismo.

“Enquanto os homens”, escreve ele, “puderem denunciar outros como feiticeiros, de modo que o feiticeiro podia ser sempre considerado como o Outro e nunca como o Eu, a feitiçaria foi um conceito facilmente facilmente explicável e a Inquisição, uma instituição florescente. Só quando o homem deixou de ter fé no poder dos inquisidores e em sua missão religiosa, foi possível pôr fim a essa prática de canibalismo simbólico.” Da mesma forma, conclui Szasz, enquanto os homens se denunciarem uns aos outros (loucos, homossexuais, drogados) como “doentes mentais”, para que o louco seja sempre o Outro, e nunca o Eu, a doença mental continuará como um conceito facilmente explorável e a psiquiatria coercitiva, uma instituição florescente.

JACCARD, Roland, A loucura [La Folie]. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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