UM FILÓSOFO POUCO SUSPEITO de complacência para com o pensamento trágico, Jules Monnerot, reconhecia recentemente no fantasma do ”alhures” uma negação fundamental da tragédia: “Não há de uma parte o homem, e de outra parte forças exteriores ao homem, às quais ele também seria exterior. As forças ‘exteriores’, ‘cósmicas’, ‘naturais’ estão também em nós, ( … ) Um homem sozinho contra tudo não é necessariamente trágico. Ele se torna, trágico quando o ‘inimigo’ está também no interior dele mesmo. É o que Hegel exprimia com a máxima clareza, dizendo que o destino é a consciência de si mesmo como de um inimigo. Não há tragédia a não ser que o herói seja o artífice de sua própria perda.”
Se a idéia de exterioridade designa o não-trágico, a idéia de interioridade basta talvez, em contrapartida, para designar o campo específico do trágico, assim como as ligações que unem a tragédia grega as perspectivas modernas abertas pela psicanálise. Situar a fonte do horror, não alhures, mas em si mesmo, é um programa comum a Sófocles e a Freud: mesma recusa de uma força exterior que viria oprimir o homem, mesma descoberta de uma força interior ao homem bastando para descrever a totalidade de suas· desgraças — pelo menos, suas desgraças “psicológicas”. Nada mais trágico, nada mais terrificante para o homem do que aquilo que provem de sua própria profundeza. Nada mais estranho, mais desconhecido: aqui, nesse horror primeiro ante si mesmo, se origina aquilo que Freud descreveu sob o nome de “recalcamento” A idéia de que o que está mais próximo é também o que está mais longe, o mais conhecido é o mais desconhecido, o mais familiar o mais estranho, é um tema que alimenta ao mesmo tempo a tragédia grega, a técnica do enigma policial e o pensamento psicanalítico. Qual é o desconhecido x igualmente buscado pelo herói trágico, pelo inspetor de polícia e pelo psicanalista? Tu mesmo, diz a tragédia; o inocente número um, descrito desde o início como o personagem demasiado familiar para ser suspeito, diz o romance policial; a força desconhecida de ti que em ti recalca, diz a psicanálise.
É nesse sentido que a história contada por Edgar Poe na Carta roubada, antes de ser uma ilustração das teses de Lacan sobre a natureza do significante, é em primeiro lugar e principalmente, como todos os contos de Poe, uma história de horror: oferecendo em estado bruto um modelo de terror do qual os outros contos não fazem, em suma, senão explorar a riqueza. O que relata A carta roubada é, sabe-se, a invisibilidade do visível: a carta que buscada por um oficial de polícia está permanentemente sob seus olhos e contudo não encontra nunca seu olhar, em razão de um leve aumento de visibilidade que, permitindo aos olhos constantemente ver, proíbe-os de, uma vez sequer, olhar. Assim, toda coisa existente pode tornar-se aterradora desde que sua existência esteja, para o observador, tão próxima que se dissimule sob o clarão de sua visibilidade mesma:o terror não designa qualquer invisibilidade (“ninguém teria podido prevê-lo, era invisível”), mas somente a invisibilidade do visível (“eu deveria prevê~lo- e mesmo eu o sabia – pois era evidente”). Assim toda coisa é realmente aterradora, pois que não revela senão posteriormente o seu caráter vizinho: pois o ponto de vista, necessário à visão, não é dado senão quando retirado — ou pelo menos afastado — o objeto a ver. De maneira mais geral e filosófica, dir-se-á que toda existência é trágica na medida em que ela é vivida antes de ser pensada, e o que conta A carta roubada é assim, ao mesmo tempo, a mola primeira do terror e a história de toda tragédia: ou seja, o caráter constitutivamente impensável da proximidade.
Num estudo intitulado Das unheimliche (1919), Freud postulava a equação entre o estranho e o familiar: equação expressa pela noção intraduzível de heimlich, cuja ambigüidade resume o mecanismo do terror. Ver de súbito — e demasiado tarde — o presente; o próximo, o familiar, como ausente, longínquo e estranho, é a experiência trágica por excelência. Ora, de tudo o que está próximo ao homem, nada o está tanto quanto ele mesmo, quanto as forças psicológicas que se agitam nele. Estranheza familiar dos poderes psicológicos, tão afastada de todo. verdadeiro conhecimento que Freud deu-lhe o nome de inconsciente: a possibilidade da relegação ao inconsciente, que se efetua em silêncio, da maneira a mais familiar, mas também a mais desconhecida, definindo assim um dos “pontos” de angústia os mais característicos. Esta visão de Freud encontra-se explicitada num ensaio. ulterior, Inibição, sintoma e angústia, que põe uma questão aqui fundamental: é o conteúdo angustiante de certos temas que leva o homem a recalcá-los, ou é, ao contrário, o mecanismo do recalcamento propriamente dito que suscita a angústia? Questão de importância: a angústia, se se opta pela segunda hipótese, não se define mais por um objeto qualquer, mas pelo modo pelo qual esse objeto foi excluído da consciência. Modo angustiante, nisto de que ela é a obra mais íntima do homem e escapa entretanto a seu controle: o que é o mais “seu” é também o mais estranho a ele mesmo. De que tens medo?, pergunta a psicanálise ao neurótico, ou seja, a todos os homens. Não, talvez, daquilo que há de terrível no que esqueceste, mas daquilo que esqueceste a tua revelia. E de ti que tens medo, dessa pessoa desconhecida de ti mesmo, que ordena em ti o mecanismo em favor do qual admites ou excluís de tua consciência tal ou qual representação — pouco importa, definitivamente, qual. E se tu despertas angustiado, tentando em vão reencontrar o sonho que tanto te aterrorizou, não é o terror de reviver o sonho que te assusta, mas o medo. de encontrar-te face a face com a força desconhecida que age em ti, que surge no instante. mesmo de fazer-te esquecer teu sonho. O que em ti recalca é muito mais angustiante do que aquilo que tu recalcas. Isto é o que ensinou Freud, e o que ensinava já a tragédia grega, notadamente com Édipo rei. O que faz de Édipo um herói tanto psicanalítico quanto trágico, não é que ele seja incestuoso e parricida, mas que ele interrogue uma exterioridade acerca de um tema que. não concerne senão à interioridade.
Que é o mais “familiar” ao homem? Que é isso que as línguas alemã e inglesa denominam a familiaridade sob a expressão heimlich e home? Que é que se conhece de perto, intimamente, sem ter necessidade sequer de falar disso? Um certo calor aconchegante que designa tanto o ambiente próximo quanto o seu eu íntimo, e que define precisamente, pata além da inutilidade de um discurso a seu respeito, uma certa impossibilidade de dele dar conta. O familiar é o “pequeno segredo”: o que nenhum painel indicador serve para assinalar, o que não fala. O que reúne um conjunto qualquer — uma família, por exemplo, mas também o “eu” psicológico — no seio de uma familiaridade, é uma soma de silêncios reunidos, que toda fala tem por efeito criticar e destruir. Tal é bem o recalcamento descrito por Freud: ao mesmo tempo próximo e desconhecido, presente e silencioso. O que no homem recalca é a potência familiar por excelência, mas também uma potência desconhecida: o “grande segredo: para aquele em quem ela habita (mesmo se, para outro, em particular o psicanalista, possa acontecer que ela seja segredo de Polichinelo ). O mecanismo do recalcamento é, assim, o lugar decisivo onde se reúnem o estranho e o familiar: noção moderna para designar o mecanismo dos Trágicos gregos, exclusivo de toda força exterior ao homem tal como a idéia de destino –, afirmador de uma força interior e silenciosa, “capaz”, no sentido geométrico, de todos os terrores e de todas as alegrias acessíveis àquele que dela está investido.
O que afirmam assim conjuntamente os Trágicos gregos e a psicanálise de Freud é a proximidade do silêncio: que — e contrariamente, nesse ponto, à teoria de Lacan — o que no homem é força eficaz não fala, não está “estruturado como uma linguagem”.