Arnold Gehlen afirmou que só a realidade ajuda a lutar contra o tédio. Essa não é, em absoluto, uma má sugestão, mas não é possível se apossar assim de um fragmento da realidade. O problema com o tédio, entre outras coisas, é que “perdemos” realidade. A proposta de Gehlen poderia parecer uma solução, supondo-se que o problema já foi resolvido. No entanto, experimentar tédio é experimentar um fragmento da realidade. Em vez de descobrir imediatamente um antídoto para ele, poderia haver algum sentido em deixar-se ficar, e talvez encontrar algum tipo de significado no próprio tédio. Não é possível ignorar por completo o tédio ou algum outro humor — mas podemos escolher entre reconhecê-lo ou reprimi-lo. Bertrand Russel considerava que “uma geração incapaz de suportar o tédio será uma geração de homens pequenos”. Acho que está certo nesse ponto. E sem a capacidade de tolerar certo grau de tédio teremos uma vida desgraçada, que será uma contínua fuga do tédio. Todas as crianças deveriam, portanto, ser educadas para serem capazes de se entediar. Estimular uma criança constantemente é negligenciar uma parte importante de sua educação.
Joseph Brodsky dá uma receita que me parece bastante convincente: “Quando o tédio ataca, jogue-se nele. Deixe que ele o prima, o submerja, até o fundo.” É um bom conselho, mas difícil de seguir, pois não tentar nos desvencilhar do tédio contraria cada fibra de nosso ser. O tédio contém um potencial. Nele ocorre um esvaziamento, e um vazio pede para ser preenchido, embora não necessariamente. O tédio retira as coisas de seus contextos usuais. Abre caminho para novas configurações, e, já as tendo privado de seus significados, permite que adquiram novos. Em razão de sua negatividade, ele contém a possibilidade de uma reviravolta positiva. Como mencionei antes, o tédio nos dá uma perspectiva de nossa própria existência, e nos permite perceber nossa insignificância num contexto mais amplio. Brodsky diz:
O tédio é a intromissão do tempo no sistema de mundo do indivíduo. Põe sua vida em perspectiva, e o resultado líquido é exatamente autoconhecimento e humildade. A primeira dá origem ao segundo, nota bene. Quanto mais você aprende sobre sua própria importância, mais humilde e compreensivo se torna com o próximo, com essa poeira que rodopia no raio de sol ou já recobre, imóvel, o tampo da sua mesa.
O problema para o romântico é exatamente que não reconhece seu próprio tamanho; tem que ser maior que tudo mais, transgredir todos os limites e devorar o mundo inteiro. É por isso que o Romantismo termina em barbarismo — já que apenas os limites tornam algo significativo. Como E.M. Cioran assinalou, “não podemos conceber a eternidade senão eliminando tudo que é transitório, tudo que conta para nós”. Se fôssemos imortais, a existência seria desprovida de significado. O tédio é entediante porque parece infinito; no entanto, trata-se de uma infinidade com que nos deparamos nesta vida, e é, portanto, capaz de nos mostrar nossa própria finitude. As escolhas são importantes porque não podemos fazer um número infinito delas. Quanto mais escolhas e possibilidades houver, menos importância cada uma delas terá. Cercado por uma seleção infinita de objetos “interessantes” que podem ser escolhidos de modo a serem descartados, nada terá valor algum. Por essa razão, a imortalidade, que permitiria um número infinito de escolhas, teria sido imensamente entediante.
Toda vida contém fragmentação, e é quase impossível imaginar uma completamente integrada. A vida, contudo, pode se fragmentar muito, a ponto de quase deixar de ser uma vida, pois esta deve ter sempre um certo grau de uniformidade, certo fio narrativo. É claro também que somos mais fragmentados em alguns momentos de nossa vida que em outros. Há razões para se acreditar que a fragmentação aumentou na modernidade, e que continua a fazê-lo. Nosso senso de identidade está inextricavelmente ligado à identidade do ambiente. A fragmentação de um leva à do outro. Na solidão há uma possibilidade de reconstituir o eu. Mas a solidão também pode ser destrutiva. O isolamento é uma punição terrível, e a solidão pode parecer conduzir à desintegração em vez de à integração. Quando a solidão aumenta, agarramo-nos a qualquer coisa, ou a qualquer pessoa que seja capaz de bani-la. É como se estivéssemos tentando abafar a voz interior que diz que a vida não está funcionando. Mas a voz ressurge quando deixamos de abafá-la. […]
A meu ver, Pascal estava certo ao revelar que o tédio contém autoconhecimento, ou melhor, a possibilidade de autoconhecimento. Ou, segundo Nietzsche: “Aquele que se defende completamente contra o tédio, também se defende contra si mesmo.” Ficamos sozinhos no tédio porque não podemos encontrar nenhum ponto de apoio fora de nós mesmos, e, no tédio profundo, não encontramos nenhum ponto de apoio sequer dentro de nós. De um ponto de vista histórico, a solidão foi muitas vezes vista positivamente, por ser tão adequada à entrega de si mesmo a Deus, a reflexões intelectuais e a exames de consciência. Hoje, no entanto, poucos têm uma ideia positiva da solidão. Poderia isso se dever ao fato de que estamos, como afirma Odo Marquard, perdendo nossa “capacidade de solidão”? Em vez da solidão, abraçamos o egocentrismo, e nele somos dependentes dos olhares de outros: tentamos preencher todo o seu campo de visão, procurando nos afirmar. O egocêntrico nunca tem tempo para si, somente para o reflexo de si que encontra nos outros. Ele nunca encontra paz em relação a seu pequeno e encolhido eu, no entanto é forçado a inflar um eu exterior de enormes proporções — mas trata-se de um eu gigantesco, e quem o inventou tem cada vez mais dificuldade de preenchê-lo. Paradoxalmente, o egocêntrico torna-se mais solitário que aquele que aceita a solidão, pois o primeiro está cercado apenas por espelhos, enquanto o segundo pode encontrar espaço para outros que são genuínos. O egocêntrico só pode pensar “não é fácil ser eu”, ao passo que o solitário é capaz de compreender que não é fácil ser qualquer pessoa.
A solidão, certamente, não é uma boa coisa em si mesma. É muitas vezes experimentada como um fardo, mas também contém um potencial. Todos os seres humanos são solitários, alguns mais que outros, mas ninguém escapa da solidão. Tudo depende de como ela é enfrentada: como ausência ou como possibilidade de serenidade. Olaf Bull escreveu sobre “o estado superior, sensível, da solidão”. Na solidão, há uma possibilidade de se estar em equilíbrio consigo mesmo, em vez de buscar equilíbrio em coisas e pessoas tão fugazes que escapolem constantemente.
Talvez, o sentimento de perda que mencionei anteriormente possa ser visto como um senso de escrúpulo, um senso de minha obrigação de levar uma vida mais substancial. Talvez o tédio me diga que estou jogando minha vida fora. No tédio, a vida parece um nada porque está sendo vivida como tal. O conceito norueguês de samvittighet (consciência) vem do alemão Gewissen, que é uma tradução do latim conscientia, que, por sua vez, é sinônimo do grego syneidesis. Todos esses termos têm algo em comum, que seus prefixos (sam-, ge-, con-, syn-) confirmam. Todos significam uma con-ciência, um conhecimento sobre si mesmo. Estamos falando sobre observar a nós mesmos e fazer julgamentos sobre nossas próprias ações. A consciência pertence à solidão, pois, em última instância, sou sempre eu o culpado. Mesmo que seja universalmente humana, a solidão é inteiramente pessoal. Tem a ver comigo, e, por vezes, sou eu. Assim como a solidão e a consciência são minhas, o tédio é também meu tédio. É um tédio pelo qual tenho responsabilidade.
A consciência favorece a reflexão sobre a vida que levamos. E isso toma tempo. Atualmente, quando a eficiência está na ordem do dia, preferimos que tudo se mova num ritmo acelerado, mas quando refletimos sobre o que nos afeta profundamente, precisamos de tempo. Se não, fica faltando algo de essencial. As condições externas não são particularmente favoráveis para insistirmos no tédio, pois faz parte da experiência de tédio levar tempo. Em vez de nos conceder esse tempo, escolhemos bani-lo. Alguém fica feliz graças a todas as diversões — férias, televisão, bebida, drogas, promiscuidade? Dificilmente, mas a maioria de nós fica, pelo menos, um pouco menos infeliz durante algum tempo. Mesmo assim, perguntamos a nós mesmos: que valor têm esses prazeres, exceto como uma maneira de passar o tempo? Podemos nos imaginar sendo capazes de manter o centro do prazer no cérebro constantemente estimulado, de tal modo que a vida fosse um divertimento ininterrupto, do nascimento à morte, mas isso pareceria extremamente indigno. Renunciar à dor de existir é desumanizar-se. Sentimos necessidade de justificar nossa existência, e uma série de experiências isoladas e sem profundidade simplesmente não é suficiente. Mesmo que possamos justificar todas as nossas ações individuais, o problema de justificar a totalidade delas — isto é, a vida que levamos — permanece. É nosso dever levar uma vida que nos atormente. Ao mesmo tempo, essa vida está sempre em algum outro lugar, para tomar emprestada uma expressão de Kundera. A obrigação de viver nos leva, inevitavelmente, de volta ao tédio. Um tipo de moral do tédio surge: devemos permanecer no tédio porque nele ressoa o eco da promessa de uma vida melhor.
Em seus primeiros cadernos, Wittgenstein escreveu: “O homem pode se tornar feliz facilmente.” Para ele, isso está ligado a uma ideia de Schopenhauer segundo a qual, para sermos felizes, devemos desistir de ter qualquer influência sobre os acontecimentos no mundo. Não acredito que isso seja possível. Não acredito que por nós mesmos, através de um esforço positivo ou negativo da vontade, possamos simplesmente nos tornar felizes ou que os outros possam fazer isso por nós. Trinta anos mais tarde, Wittgenstein escreveu:
A solução do problema da vida está em encontrar uma maneira de fazer o que é problemático desaparecer.
O fato de a vida ser problemática significa que nossa vida não se ajusta à forma da vida. Portanto, devemos mudar nossa vida, e, quando ela se ajustar a essa forma, o que é problemático desaparecerá.
Mas não temos a sensação de que alguém que não veja tal problema está cego para algo importante, para o que há de mais importante realmente?
Não poderia dizer que ele está vivendo sem propósito — cego como uma toupeira, e, se fosse ao menos capaz de enxergar, enxergaria o problema?
Ou talvez eu devesse dizer: aquele que vive corretamente não experimenta o problema como sofrimento, mas sim como alegria, isto é, como um halo brilhante em torno de sua vida, e não como um pano de fundo duvidoso.
Como deveria alguém viver para que os problemas da vida desaparecessem? Não há nenhuma receita universal disponível. E é possível, afinal, ter uma vida que não seja problemática? O decisivo é encontrar uma perspectiva em que se possa viver com os problemas sem se tornar um “miserabilista”, alguém que vive para eles. É ir longe demais afirmar, como o fizeram filósofos de Schopenhauer a Zapffe, que a existência é sem sentido ou trágica, e que toda felicidade é mera ilusão — como, por exemplo, Leopardi insiste em afirmar. Muitos hoje realmente encontram significado na existência, e não compete a filósofos ou a outros lhes mostrar que suas vidas “realmente” não têm sentido. O Eclesiastes declara: “Pois quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento; e quanto maior o conhecimento, maior o desgosto.” Embora Salomão fosse um sábio, acredito que ele — juntamente com o autor do Havamal e muitos outros — está errado ao afirmar a existência de uma ligação óbvia entre conhecimento e melancolia. Para o melancólico, pode haver consolo em imaginar uma extraordinária profundidade na própria vida mental, embora isso seja frequentemente um falso consolo. É possível ser feliz sem ser superficial. O mais comum, no entanto, são pessoas felizes e superficiais. Ao mesmo tempo, eu gostaria de enfatizar que não é função da filosofia mostrar às pessoas que sua melancolia é ilusória. Nunca fui capaz de suportar quem insiste em acender uma vela sempre que eu amaldiçoo a solidão. Elas estão mostrando uma total falta de respeito pela escuridão que permeia nossa existência. A escuridão também é experiência genuína, embora eu pense que T.S. Eliot estava certo ao deixar o convidado desconhecido em The Cocktail Party declarar que, em última análise, não há outra razão para ficar no escuro do que se livrar da ideia de que jamais se esteve na luz.
SVENDSEN, Lars, Filosofia do tédio. Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 155-162