Versão revisada e ampliada a partir do original “Les révélations de l’insomnie : écriture et autobiographie chez Cioran”, in Anale. Seria Drept, volumul XXVII (2018), la editura Mirton Timisoara, ISSN 1582-9359. Facultatea de Drept şi Administraţie Publică, Universitatea Tibiscus din Timişoara. [PDF]
Resumo: Toda autobiografia espiritual é uma canção do eu, escreveu Harold Bloom. Esta observação do crítico literário americano é relevante em se tratando da obra de Emil Cioran. Esta pode ser lida (o que não significa ser reduzida a) uma autobiografia elegíaca misturada com crítica filosófica; é de fato uma “canção do eu”. Para este autoproclamado Privat Denker [pensador privado], a escritura é escritura de si, autocriação (autopoiesis) e narrativa sobre como se tornou aquele que se é. Cioran escreve para comunicar uma experiência, uma provação um itinerário de vida, sempre fragmentário, sempre precário, pleno de vertigem e desespero. A sua escritura confessional comunica o seu itinerário existencial e espiritual, seus fracassos e apoteoses.
Abstract: Any spiritual autobiography is a song of the self, wrote Harold Bloom. This remark by the American literary critic is quite relevant to the work of Emil Cioran. It can be read as (which does not mean to reduce it to) an elegiac autobiography mingled with philosophical criticism; it is indeed a “song of the self”. For this self-proclaimed “Privat Denker”, writing is self-writing, self-creation (autopoïesis) and narrative of how one has become who one is. Cioran writes to communicate an experience, a test, a life itinerary, always fragmentary, always precarious, full of vertigo and despair. His confessional writing communicates his existential and spiritual itinerary, his failures and apotheoses.
A verdade reside no drama individual. Se eu sofro realmente, sofro mais do que como indivíduo, ultrapasso a esfera do meu eu, reúno-me na essência dos outros. A única maneira de nos encaminhar ao universal é ocupando-nos unicamente do que nos concerne.
De l’inconvenient d’être né
A minha missão é tirar as pessoas do seu sono de sempre, sabendo com isso cometo um crime, e que valeria mil vezes mais deixá-las perseverar nele, pois tão logo despertasse, não teria nada a propor-lhes.
Cahiers: 1957-1972
Queda e narrativa: o estilo da autobiografia
Toda autobiografia espiritual é uma “canção do eu”,[1] escreveu Harold Bloom. Esta observação do crítico literário americano vem muito a calhar em se tratando da obra de Emil Cioran. Sua obra pode ser lida (o que não significa ser reduzida a) uma autobiografia elegíaca misturada com crítica filosófica; é, com efeito, uma “canção do eu” de índole gnóstica. Para este autoproclamado Privat Denker,[2] a escritura é escritura de si, autocriação (autopoiesis) e narrativa de como se tornou quem se é. Cioran escreve para comunicar uma experiência, uma provação um itinerário de vida, sempre fragmentário, sempre precário, pleno de vertigem e desespero. A sua escritura confessional comunica o seu itinerário existencial e espiritual, seus fracassos e apoteoses.
Em Amurgul gândurilor [O Crepúsculo do pensamento], um de seus últimos livros romenos (1940), o jovem autor faz a seguinte distinção:
Dois tipos de filósofos: os que refletem sobre ideias e os que refletem sobre eles mesmos. A diferença entre o silogismo e a infelicidade…
Para o filósofo objetivo, apenas as ideias têm biografia; para o subjetivo, apenas a autobiografia tem ideias; está-se predestinado a viver junto às categorias ou junto a si mesmo. Em última instância, a filosofia é a meditação poética da infelicidade.[3]
A observação de outro crítico literário, Northrop Frye, é igualmente oportuna: segundo ele, o mito é um “exemplo de pensamento que abre às extremidades da possibilidade humana, a projeção de uma visão da realização humana e dos obstáculos enfrentados no caminho à esta realização.”[4] O comentário de Frye possui o valor propedêutico de assinalar o sentido gnóstico do binômio vida-obra do autor nascido em Răşinari. Segundo Nicole Parfait, a vida ulterior de Cioran será determinada, a partir dos acontecimentos que a singularizam, “segundo o esquema da tragédia antiga: como um declínio fatal.”[5] A bem da verdade, seria totalmente fatal não fosse o elemento místico implicado em sua vivência. É uma narrativa de queda, exílio, errância, perda, nostalgia, mas também despertar e lucidez, conhecimento e libertação, conquista e apoteose, triunfo inaudito. A impossibilidade de dormir adquire, para Cioran, uma significação eminentemente espiritual. Como a doença, a insônia possui virtudes metafísicas: ela é princípio de revelação.
As proposições de Bloom e de Frye são propícias para uma hermenêutica da obra de Cioran como a autobiografia de um gnóstico sem credo. Em primeiro lugar, no que concerne à insônia, cuja experiência será crucial para o autor romeno. Ao gênero da autobiografia corresponde uma escritura confessional dedicada à narrativa desta experiência. “Não haveria motivo suficiente para uma autobiografia”, explica Jean Starobinski, “se não houvesse intervindo, na existência anterior, uma modificação, uma transformação radical: conversão, entrada numa nova vida, operação da graça.”[6] O caráter dinâmico da narrativa, dividindo-a entre o antes, o durante e o depois da referida “transformação radical”, é o que distingue a autobiografia do simples retrato, segundo Starobinski:
Se o câmbio não tivesse afetado a existência do narrador, ter-lhe-ia bastado pintar-se a si mesmo de uma vez por todas, e a única matéria cambiante apta a tornar-se o objeto de uma narrativa ver-se-ia reduzida à série dos acontecimentos exteriores: estaríamos então na presença das condições do que Benveniste denomina história, e a persistência mesma de um narrador na primeira pessoa não seria em absoluto exigida. Em contrapartida, a transformação interior do indivíduo – e o caráter exemplar dessa transformação – oferece matéria a um discurso narrativo que tem o eu (je) como sujeito e como “objeto”.[7]
No caso de Cioran, essa transformação interior remete ao drama da perda do sono: é a lucidez que sobrevém, o desdobramento de uma série de atos da consciência que termina por fazê-lo compreender, por sobressaltos, “o lado negativo da vida, que tudo é vazio.”[8] A insônia será decisiva para a sua decisão de dar “adeus à filosofia” (Breviário de decomposição), afim de se dedicar a outro gênero de atividade, notadamente uma “filosofia-confissão”[9] para a qual o estilo representa muito mais que um adorno acessório, uma preocupação puramente literária. Ora, Cioran está sempre falando dele mesmo, inclusive quando fala dos outros. “Há escritores”, observa ele, “mais pudicos que mascaram isso. Pascal, por exemplo, está a meio-caminho, é mais pudico. Ele não emprega a primeira pessoa, recusa o je de Montaigne como sendo uma coisa de mau gosto.”[10] Razão pela qual Cioran considera Montaigne mais escritor, mais estilista que Pascal. Como o autor dos Ensaios, Cioran fala na primeira pessoa, não se priva de empregar o je, usa e abusa dele; e ainda que empregue “o plural implícito de ‘se’ (on) e o plural confessado do ‘nós’”,[11] não é senão dele mesmo, a partir de si (je), que ele fala.[12] Não havendo nenhuma diferença entre o narrador e o “herói”, estando dada a coincidência entre o autor e o objeto da narrativa, a escritura autobiográfica favorece o desenvolvimento de um estilo próprio: o estilo da autobiografia, fragmentária e atópica no caso do autoproclamado “exilado metafísico”.
O valor autorreferencial do estilo remete ao momento da escritura, ao “eu” (moi) atual. […] A bem da verdade, o passado não pode jamais ser evocado senão a partir de um presente: a “verdade” dos dias passados só é tal para a consciência que, acolhendo hoje sua imagem, não pode evitar de lhes impor sua forma, seu estilo. Toda autobiografia – por mais que se limite a uma pura narração – é auto-interpretação. O estilo é aqui o índice da relação entre o escrevedor (scripteur) e o seu próprio passado, ao mesmo tempo em que ele revela o projeto orientado ao futuro, como uma maneira especifica de se revelar a outrem.[13]
A urgência da autobiografia resulta da necessidade de remeter-se ao próprio passado afim de compreender o seu eu atual. Como tornei-me aquele que sou? Como cheguei até aqui? O que me aconteceu? Cioran se perguntaria: como avançar com essa nefasta lucidez que mina as razoes de viver, envenenando a vida mesma? Seja uma questão de acaso ou de predestinação, “um favor da natureza demente” ou um “milagre negativo”,[14] a perda do sono é o princípio de uma revelação capital a exigir um trabalho de reminiscência, elaboração, expressão. Aquele que se entrega à “meditação poética da infelicidade” sente a necessidade de comunicar uma experiência inaudita, algo percebido como extraordinário, prodigioso. Ora, a obra de Cioran descreve um movimento que vai “do centro à periferia” de uma circunferência que “encerra os seres em uma comunidade de interesses e de esperança”:[15] um movimento que leva para fora da comunidade dos viventes e para fora da vida mesma, em tudo o que a vida possui de convencional e social.[16] Esse movimento equivale ao que Chestov chama a “omnitude”:[17] a consciência comum encerrada nos limites da razão pragmaticamente compartilhada. Ele tem início, para Cioran, nas noites em branco. É uma experiência de “saída do tempo” (sortie du temps), interpretada por Jaudeau como uma experiencia tipicamente gnóstica.[18] A lucidez, estado de espírito próprio desta experiência-limite, desertifica o real e torna o ser espectral, uma lembrança, algo déjà-été (“já-sido”). O homem que se torna presa dessa nefasta lucidez, consequência da vigília compulsória, é como
o nada em pessoa, o vazio encarnado: glândulas e entranhas clarividentes, ossos desenganados, um corpo invadido pela lucidez, livre de si mesmo, fora de jogo, fora do tempo, sujeito a um eu congelado em um saber total sem conhecimentos. Onde encontrar o instante que escapou? Quem o devolverá a ti? Por toda parte frenéticos ou enfeitiçados, uma multidão de anormais que a razão abandonou e vêm refugiar-se perto de ti, o único que compreendeu tudo, espectador absoluto, insubmisso para sempre à farsa unânime. Como o intervalo que te separa dos outros não para de aumentar, chegas a perguntar-te se não terias percebido uma realidade desconhecida dos demais. Revelação ínfima ou capital, seu conteúdo permanecerá obscuro para ti.[19]
Nesta passagem de História e utopia, Cioran retoma uma reflexão sobre o êxtase que já havia feito em seu livro de estreia, Nos cumes do desespero: “O verdadeiro êxtase é perigoso. Ele se assemelha à última fase de iniciação aos mistérios egípcios, em que, em vez do conhecimento explícito e definitivo, dizia-se: ‘Osíris é uma divindade negra’, ou seja, o absoluto permanece incognoscível em si.”[20] Cioran não experimenta o êxtase à maneira dos místicos cristãos; trata-se, para ele, de um êxtase “das raízes imanentes da existência”[21] que não supõe a presença de Deus, indispensável numa visão teísta tradicional. É o êxtase de um espírito cuja mística não é exatamente ateia, mas antes anti-teísta. Cioran não crê no teísmo como solução do problema cosmológico.[22] Se há um deus, é indiferente, ou, pior das hipóteses, um “demiurgo malvado”. Esta convicção permanecerá inalterada da juventude à velhice. Em seus anos universitários, o autor de Nos cumes do desespero seria atraído pelo ateísmo trágico de Nietzsche; sua obra posterior, notadamente a partir do Breviário de decomposição, descreverá um distanciamento em relação ao Zaratustra e uma aproximação ao pessimismo de Schopenhauer, ao dualismo do zoroastrismo e do maniqueísmo. Quanto mais avança no tempo, mais herético se pretende, culminando nesta confissão, ao final de Exercícios de admiração: “Embora frequentasse os místicos, no meu foro íntimo estive sempre do lado do Demônio: não podendo me igualar a ele pela força, tentei ser equivalente ao menos pela insolência, pela aspereza, pelo arbítrio e pelo capricho.”[23] A sua obra pode ser lida como um ensaio autobiográfico sobre o exílio, o estrangeirismo, a nostalgia, a alienação da consciência num mundo a que o homem não pertence e no qual a sua existência se constituiu a partir da negatividade, um mundo em que “nada está em seu lugar, começando pelo próprio mundo.”[24]
Os atos da consciência
Cumpre delinear uma série de atos que preparam a fatalidade da consciência a culminar na perda do sono. 1º ato: a descoberta precoce do tédio existencial (ennui), numa tarde de domingo, no verão, aos cinco anos de idade. Experiência que implica a perda da inocência despreocupada no seio desse microuniverso tão familiar, tão hospitaleiro, que é o “paraíso terrestre” de Răşinari: “O céu e a terra me pertenciam, literalmente. Até as minhas apreensões eram alegres. Eu acordava e ia dormir como Mestre da Criação. Eu conhecia minha felicidade, e pressentia que ia perdê-la. Um medo secreto corroía meus dias. Eu não era assim tão feliz quanto o pretendo agora.”[25] Eis o início da “queda no tempo” (chute dans le temps).
2º ato: o momento que ele abandona Răşinari, aos dez anos, a contragosto, por decisão do pai, para instalar-se na vizinha Sibiu e matricular-se num renomado liceu daquela cidade tão cosmopolita. “Quando abandonei aquele mundo, tive o pressentimento de que, para mim, algo se havia rompido para sempre. Eu chorava, e nunca esquecerei aquele dia.”[26] É uma ruptura da harmonia primitiva no seio do “paraíso terrestre”, e o início do que se tornará um “exílio metafísico”, mais do que geopolítico; pois “o despredimento espiritual começa com um desenraizamento do solo.”[27] É em Sibiu que começara o drama da insônia: “Eu errava durante horas pelas ruas, como uma espécie de fantasma, e tudo o que escrevi depois foi elaborado naquelas noites. […] As noites de Sibiu estão, portanto, na origem da minha visão do mundo.”[28]
3º ato: a tomada de consciência do caráter acidental da sua existência individual e da contingência universal do seres, quando, em meio a uma crise de ansiedade, ele se lança sobre o sofá exclamando: “Não aguento mais!” – ao que a sua mãe replica: “Se eu soubesse teria abortado.” Estas palavras, em vez de deprimi-lo, tiveram o efeito de uma “libertação […] pois compreendi que no fundo não passava de um acidente.”[29]
4º ato: as noites berlinenses. Entre 1933 e 1935, Cioran está na Alemanha graças a uma bolsa de estudos. É o apogeu da insônia, que se prolonga agora desde os anos em Sibiu, em seguida em Bucareste. Os êxtases que ele afirma ter experimentado remontam à sua estadia em Berlim e também em Munique. A vulnerabilidade resultante do desespero, cujas causas são subjetivas e objetivas, interiores e exteriores (históricas, culturais, sociais), torna-o suscetível à tentação do fanatismo, desafio à lucidez: sente-se atraído pelo fenômeno alemão do hitlerismo, e sonha então com o acontecimento de um movimento similar na Romênia, algo que possa despertar o seu povo da letargia histórica e alçá-lo ao nível de uma grande nação. Ele encontra-se completamente só, desamparado, dilacerado entre a agitação da vida cotidiana e a passividade contemplativa, o ruído e o silêncio, os acontecimentos da atualidade e o drama metafísico. Para não desabar, lê textos budistas. Mais do que nunca, está “nos cumes do desespero”: “Quando escrevia em romeno Cartea Amărgirilor[30] (vinte e cinco anos?), eu vivia numa tal intensidade que tinha literalmente medo de acabar como um fundador de religião… Em Berlim, e em Munique, experimentei êxtases frequentes – que permanecerão para sempre os cumes da minha vida. Desde então, tive apenas simulacros deles.”[31]
5º ato: da transfiguração à tradução de si. Cioran costumava contar o episódio de quando renunciou ao projeto de traduzir Mallarmé ao romeno e começar a escrever em francês. Ele abandona a sua língua materna e adota o francês definitivamente. Para chegar a dominá-lo, rompe com o seu passado e consigo mesmo. A mudança de idioma implica uma pequena morte e um paradoxal renascimento. O Breviário de decomposição representa essa reviravolta. Cioran fala dessa decisão em termos de uma conversão quase religiosa: “Simone Weil escreveu, em sua Lettre à um religieux, que ‘para um escritor mudar religião é algo tão grave e tão perigoso como mudar de língua.’ […] Não se pertence a uma nacionalidade, pertence-se a uma língua. Fora dela, tudo se torna abstrato e irreal. Então, sim, uma língua é uma pátria, e eu me desnacionalizei. Em certo sentido, me libertei, o que não deixa de ser doloroso.”[32]
“Cair do tempo”: a insônia como experiência gnóstica
Após cair no tempo, Cioran cai do tempo. O pressentimento, a expressão precoce dessa queda ulterior, é o ennui (tédio) da infância de que falamos anteriormente. “Tomber du temps” [Cair do tempo], o último texto de La chute dans le temps, representa, segundo o próprio autor, aquilo que de mais sério ele escreveu.[33] Essas últimas páginas, diz ele, “custaram-me muito, e foram geralmente incompreendidas. Há drama maior do que cair do tempo?”[34]
Os outros caem no tempo; quanto a mim, eu caí do tempo. À eternidade que se erige acima, sucede-se outra, situada abaixo do tempo, zona estéril na qual não se experimenta senão um único desejo: reintegrar o tempo, elevar-se a ele custe o que custar, apropriar-se de uma parcela sua para nela instalar-se, para dar-se a ilusão de um chez-soi. Mas o tempo está cerrado, está fora de alcance: e é da impossibilidade de penetrá-lo que é feita essa eternidade negativa, essa má eternidade.”[35]
Estas não são, contudo, as únicas linhas escritas abaixo (au-dessous) do tempo, fora dele, ao seu lado, apesar dele, contra ele. A obra de Cioran é a longa narrativa de uma queda, de uma separação, de um exílio. Descontinuidade, hiato, intervalo, abismo; o tempo não lhe pertence, e ele não pertence ao tempo. O mesmo em relação à vida. “A vida e eu: duas linhas paralelas que se encontram na morte”,[36] lemos em Amurgul gândurilor [O crepúsculo do pensamento], um de seus livros mais líricos, mais elegíacos. De ponta a ponta, a sua obra está repleta de variações sobre essa experiência degradante, mas também libertadora: o desespero-título do seu livro de estreia, a “decomposição” do seu Breviário blasfematório, o “despedaçamento” (écartèlement) do ser que é o tema de um dos seus últimos livros, as “fraturas”,[37] todos estes signos remetem a uma mesma e única experiência vivida, e ao sentimento essencial que lhe corresponde e, de resto, a uma mesma e única visão da condição humana, do sentido último da humanidade e o seu destino histórico, o seu “élan em direção ao pior”:[38] a queda no tempo, e então do tempo, a história e a pós-história, a busca da utopia e sua degeneração em distopia… “E não se diria que assistimos à agonia do indestrutível? Todo passo adiante, toda forma de dinamismo comporta algo de satânico: o progresso é o equivalente moderno da Queda, a versão profana da danação.”[39]
Num passado imemorial, os homens tinham todo o tempo do mundo, viviam como se fossem imortais, junto às fontes imediatas da vida, sem preocupações nem ansiedade, numa existência tranquila e monótona. Nós, por outro lado, vivemos na correria e compramos nosso tempo, nós o calculamos, capitalizamos. Incapazes de habitá-lo, de nos demorarmos nele e saboreá-lo, contemplá-lo, não sabemos fazer um bom uso do tempo: nós o degeneramos em agenda, calendário; o nosso é história, esse “desafio à contemplação”[40] que leva “os estigmas que definem a uma só vez o tempo e o homem.”[41] Da plenitude à indigência temporal: eis o itinerário do homem, sua queda no tempo e do tempo. O tempo se tornará um dia um bem raro e valioso (um asset), como o será a água. As grandes corporações e os poderosos terão o seu monopólio. Haverá cartões de crédito temporal pelos quais se recarregará e se consumirá o seu capital de tempo. Os desocupados, os fracassados e os pobres trabalhadores serão presos por suas dívidas junto à Administração Central do Tempo; serão impedidos de viver, de mover-se simplesmente, detidos e arrancados do curso temporal, condenados a um sucedâneo do tempo, a suas periferias, a uma sub-existência privada do direito de participar do devir e de desfrutar dele. O seu tempo será temporariamente cortado, como é cortada a eletricidade quando não se paga a conta de luz. A condição orgânica do homem tornar-se-á cada vez mais artificial, protética, virtual, e ele perderá toda familiaridade com a duração, com a vida. Em seus começos, afinal, o homem escolheu a outra árvore, não a da vida. Só lhe restará um tempo fabricado, tornado mercadoria, item de consumo de luxo. Mais ou menos como Cioran, o homem do porvir não terá “direito ao tempo”.[42]
Esse gnóstico veleidoso se quer o precursor do fim da história, o protótipo do “pós-homem”:[43] “Eu creio de verdade que a humanidade chegará ao fim no dia que todos os homens forem como eu. Não é uma presunção.”[44] Ele projeta no futuro a imagem do “homem-fora-de-tudo. Este homem, eu me tornei, eu o incarno agora.”[45] É a situação-limite, a última etapa do homem antes de se tornar espectro, pois o homem experimenta consigo mesmo, com suas potencialidades de ser e de não-ser e, como Nietzsche o afirmou (e Cioran cita-o textualmente), o homem é “o animal doente por excelência”:[46] “sempre diferentes de nós mesmos, não somos nós senão à medida que nos apartamos de nossa definição, o homem sendo, nas palavras de Nietzsche, das noch nicht festgestellte Tier, o animal cujo tipo não foi ainda determinado, fixado.”[47] Razão pela qual o ser humano é incapaz de “permanecer no interior de não importa qual realidade”,[48] razão também pela qual o homem é “fratura e fissura de ser”,[49] “exemplo de antinatureza”,[50] heresia da natureza”.[51] O cúmulo da sua condição seria a singularização infinita, a fragmentação absoluta, ao ponto que, “postados diante de si, não coincidimos com nada, nem mesmo com a nossa singularidade.”[52]
O tempo é condição de possibilidade da vida, a força criadora do devir, o princípio dinâmico e ativo da existência, a fonte do possível e da renovação do vivente. Aquele que cai do tempo encontra-se relegado a uma temporalidade estéril, congelada, morta. Assim fala o homem do sub-tempo:
Eu acumulo o consumado, não cesso de fabricá-lo e de precipitar nele o presente, sem dar-lhe o lazer de esgotar sua própria duração. Viver é sofrer a magia do possível; mas quando se percebe no possível mesmo o consumado por vir, tudo se torna virtualmente passado, e não há mais presente nem futuro. O que distingo em cada instante é o seu ofego e o seu resmungo, não a transição a um outro instante. Eu elaboro tempo morto, me revolvo na asfixia do devir.[53]
Para essa existência destituída de presente e de futuro, tudo já foi (tout a déjà été), e, contudo, nada foi ainda (rien n’a été encore). Ora, não seria essa “má eternidade” a eternidade pura e simples, neste caso irreconhecida, experimentada negativamente, sem que se creia nela? O mesmo questionamento vale para a ideia do absoluto, tão problematizado, tão aspirado por Cioran. Lançar-se em direção à eternidade, ao absoluto, sem estar predisposto a experimentá-los… Enfim, negativa ou positiva, a eternidade se opõe ao mundo do devir, é afirmada em detrimento do caráter definitivo da existência cotidiana, imanente ao mundo, abrindo o existente a uma outra temporalidade, outra realidade. Cioran tematiza e problematiza a imortalidade, muito embora não creia nela, não possuindo a seu respeito nenhuma certeza que seja; pensa nela negando-a. Em todo caso, a sua obra fornece elementos para afirmar que não se cai, por assim dizer, do tempo, não se perde chão do tempo: o mesmo movimento, descrito aqui como queda, é ressignificado, em outros momentos, em termos de uma reintegração ao princípio intemporal de nossas natureza (humana), espécie de retorno às origens, ao fundo primitivo que jaz no fundo de cada um, que não deixa de causar pavor. Este princípio intemporal é aquilo que os antigos gnósticos entendiam como o indestrutível (conceito empregado por Cioran[54]) em si, a “centelha” divina que reside oculta no fundo da alma, subsistindo a toda vicissitude e perecibilidade. É na medida em que desmorona, a ponto de aniquilar-se, tudo aquilo que não coincide com o indestrutível (o corpo, a consciência, a afetividade), que o indestrutível se dá a conhecer e experimentar,[55] sendo que, do ponto de vista da existência mundana, o seu caráter impassível é percebido como insuportável.
A filosofia existencial de Cioran se funda sobre uma metafísica da Queda e do Exílio. Segundo Sylvie Jaudeau, “a experiência pessoal do estrangeirismo não podia deixar de reportar-se ao destino da humanidade e inspirar uma teoria da história que amplia à escala coletiva as consequências de uma crise individual. A reflexão história não sai do campo metafísico. À visão da consciência separadora corresponde a da histórica trágica.”[56] Cioran se pretende estrangeiro em todos os domínios, o estrangeirismo em si mesmo como condição existencial e metafísica: “Quem sois? – Sou um estrangeiro para a polícia, para Deus, para mim mesmo”, lemos em Le mauvais démiurge.[57] Esse estrangeirismo autoproclamado descreveria, afinal, a condição do ser humano enquanto tal, inscrevendo-se na natureza humana como um dado antropológico. O homem é um estrangeiro no mundo, não pertence aqui por tudo o que há de mais profundo nele. Por sua verticalidade interior, e por sua natureza híbrida, dual, anfíbia, ele vive voltado para os acontecimentos e ao absoluto, no tempo e fora dele.
Um dos temas mais recorrentes no antigo gnosticismo é a ideia de que o homem cai em um mundo hostil ao qual no fundo ele não pertence. A sua estadia é um acidente, um erro, um contratempo, uma queda e um distanciamento de sua verdadeira pátria espiritual, à exemplo do que narra o Hino da Pérola.[58] A existência como desvio, errância, deriva, perdição, a morte sendo mais do que uma desintegração, uma reintegração, o retorno ao princípio ou pátria a que pertence, por ascendência, o gnóstico, e a multiplicidade dos seres é um delito, uma traição, uma infração da unidade originária. O mundo é, nas palavras de Marcião, haec cellula creatoris,[59] uma “célula fechada”, a prisão do espírito, a mansão dos mortos, o reino da decomposição e da morte. O homem é lançado, ou cai, nela. Por sua existência material e também psíquica, ele pertence a este mundo ruidoso e opaco, desafio à contemplação e fonte de esquecimento, de embriaguez; por sua dimensão incriada, divina (o espírito, ou pneuma), não pertence a este mundo, permanece aqui um estrangeiro: allogenes.[60] A sua relação com o mundo é, pois, dupla: sua não-pertença corresponde à sua natureza espiritual, a esse “nada” originário que é o absoluto, incognoscível e insondável do ponto de vista da razão. A obra de Cioran nos apresenta uma antinomia trágica entre o que seria o espírito, por um lado, e a vida, por outro, que é preciso iluminar. Da perspectiva da vida encarnada, da razão e das faculdades naturais, a dimensão pneumática do homem apareceria como algo funesto, perturbador, fora de lugar; da perspectiva do espírito,[61] porém, é esta vida aqui que apareceria como algo funesto, princípio de agonia e morte, e a conclusão neste caso seria que “este mundo não foi criado segundo o desejo da Vida”, conforme lê-se num texto gnóstico da Mesopotâmia citado por Cioran, o Ginza.[62]
A atitude existencial de Cioran – o pessimismo, o niilismo, o fatalismo – pode ser interpretada pela ótica gnóstica se admitirmos, a partir de Henri-Charles Puech, que o tempo não representa, no contexto do pensamento gnóstico, um problema particular, específico ou relativamente autônomo, e que “a atitude do gnóstico em relação ao tempo se confunde, de fato, com a sua atitude geral em relação à condição do homem aqui embaixo, e, portanto, ao mundo como um todo, à história deste mundo, do devir que aqui se desenrola, do drama que aqui se encena.”[63] A atitude existencial gnóstica se caracteriza por uma “revolta contra o tempo e o mundo tal como os concebiam – de forma distinta – o helenismo e o cristianismo”, ou seja, grosso modo, contra a concepção cíclica do mundo helênico e a concepção linear-progressiva do mundo judaico-cristão, respectivamente. Neste ponto, como em muitos outros, explica Puech, “a atitude gnóstica é principalmente de negação” (acosmismo, acronismo);[64] e acrescenta:
Por necessidade de salvação imediata, ele [gnosticismo] romperá com a sujeição e a repetição do tempo cíclico do helenismo tanto quanto a continuidade orgânica do tempo unilinear do cristianismo; fará voar em pedaços (a expressão não é demasiado forte) uma e outra. Em termos ainda mais breves e mais imagéticos, a partida é disputada entre três concepções opostas, em que o tempo pode ser respectivamente figurado, na primeira por um círculo, na segunda por uma linha reta, e na terceira, por fim, por uma linha estilhaçada.[65]
Cioran, que frequentou os cursos de Puech no Collège de France, discorre sobre o mesmo ponto:
Para os gnósticos tudo o que está associado ao tempo procede do mal. O descrédito estende-se à totalidade da história, como pertencente à esfera das realidades falsas. Não tem sentido nem utilidade. A passagem pela história é infrutífera. Tal visão afasta-se consideravelmente da escatologia cristã oficial e edulcorada que vê na história e nos males engendrados por ela provações redentoras.[66]
O “acronismo”, que é como denomino essa atitude gnóstica face ao tempo, é também a atitude de Cioran – e a experiência “queda do tempo” me parece uma de suas expressões mais significativas. Queda paradoxal, com efeito, pois uma queda para o alto, em direção aos “cumes do desespero”, a essa zona abismal do ser que se confunde com um nada divino. Em Amurgul gândurilor [O crepúsculo do pensamento], isto fica claro: Os homens caem em direção ao céu, pois Deus é um abismo visto de baixo.”[67] A dualidade antropológica (vida-espírito, necessidade-liberdade, criado-incriado, temporalidade-intemporalidade) determina a condição antinômica e paradoxal da existência a partir da queda no tempo, no tempo da queda. De acordo com Hans Jonas, “os dois lados da ideia do Estrangeiro [Alien], o positivo e o negativo, o estrangeirismo como superioridade e como sofrimento, como prerrogativa da lonjura [remoteness] e como destino da participação, alternam-se enquanto aspectos de um e o mesmo sujeito – a ‘Vida’.”[68] O homem vive assim ao mesmo tempo abaixo e acima do tempo, mas nunca instalado nele, nunca harmonicamente integrado ao mundo do devir. É como um “estrangeiro” neste mundo estranho ao qual não se sente pertencer. Manifestando a nostalgia de um paraíso perdido, de um absoluto interditado ao homem, Cioran diz que, “para concebê-lo, para aspirar a ele, é preciso detestar o devir, sentir seu peso e sua calamidade, desejar a qualquer preço separar-se dele.”[69]
Para além do tempo, a vida é o problema capital do ponto de vista da lucidez proclamada por Cioran. Esta última, apanágio do espírito desperto, sufoca e aniquila aquela. A lucidez torna a vida impraticável. Desde a nossa separação em relação ao todo, a essa unidade imemorial em que “a identidade não cessa de contemplar-se a si mesma”,[70] e da qual a consciência não tem senão um vago recordo, é ela, a vida, que nos falta, que nos é estranha, “é ela a grande Desconhecida”.[71] O título do primeiro capítulo de La chute dans le temps, “L’arbre de vie” [A árvore da vida], alude à árvore desconhecida, intocada, pois desprezada pelo homem, atraído antes pelo conhecimento e pelos perigos que ele engendra. A “queda no tempo” equivale a uma alienação, a um apartar-se das “fontes invioláveis da vida”.[72] Após a queda, vida e morte se confundem e se invertem em função das antinomias do espírito aprisionado na matéria. Essa confusão, fruto de uma ignorância fundamental, não é exclusiva do pensamento gnóstico, estando presente tanto no mundo helênico quanto no cristão;[73] ela resulta do advento da consciência, geradora de oposições, intervalos, separações, dualismos em suma. A partir da consciência, princípio de individuação e de sofrimento segundo Cioran, abre-se um abismo entre o espírito e a vida, entre o infinito e a finitude da existência submetida ao tempo e à decomposição. A lucidez (“monopólio do homem, “culminação do processo de ruptura entre o espírito e o mundo”[74]) é descrita por Cioran como a consciência exacerbada dessa fratura do ser no no existente. Há duas acepções da vida em Cioran: por um lado, a vida submetida ao tempo, ao reino material do demiurgo, vida menor submetida ao devir e à decomposição; por outro lado, a Vida que corresponde ao princípio intemporal e indestrutível de nossa natureza, à qual aspira o espírito à medida mesma que se afasta dela. Enfim, a queda do tempo reconduz o estrangeiro, paradoxalmente, ao mundo e à existência no tempo, doravante transfigurada. Aquilo que, à primeira vista, pareceria uma saída do mundo, revela-se, em seguida, um retorno a este mesmo mundo. A “saída do tempo” (Jaudeau) não é senão a busca, sempre frustrada, da Vida e do Ser verdadeiro para além da inconsistência deste mundo de decomposição.
Aspectos soteriológicos da insônia: gnosiologia do não-saber, ou o “saber sem conhecimentos”
“Desde que Hypnos é irmão de Tanatos”, escreve Mircea Eliade, “compreende-se por que, na Grécia como na Índia e no gnosticismo, a ação do ‘despertar’ tenha uma significação ‘soteriológica’ (na mais ampla acepção do termo)”.[75] “Despertar”, ter o “olho do Conhecimento”,[76] ou seja, libertar-se dos apegos ilusórios do eu, de modo a renascer espiritualmente. A significação soteriológica do ato de despertar, de que fala Eliade, encontra forte ressonância na obra de Cioran. Retrospectivamente, ele afirma não ser de todo mal ter sido visitado pelo demônio da vigília. Ele atribui à insônia o mérito de tê-lo feito “abrir os olhos”, “despertar”, “compreender”:
É uma experiência extremamente dolorosa, uma catástrofe. Mas te faz compreender coisas que os outros não podem compreender: a insônia te coloca fora dos viventes, fora da humanidade. Você está excluído. […] Não há nenhum progresso. Apenas esta imensa noite que está lá.[77]
Esta “imensa noite” é uma noite outra,[78] que se prolonga sobre os dias, obscurecendo-os. O insone não dorme e, no entanto, não está de totalmente desperto. Ele geme num estado intermediário, liminar, da consciência. Não conhece a descontinuidade do sono que permite recomeçar cada dia como se fosse um novo começo. O sono é o “segredo da vida”,[79] alega Cioran. O homem não tem escolha senão entre o esquecimento, a ilusão e o desespero. “É por isso que eu considero que as noites em branco são a maior experiência que se pode fazer na vida, elas te marcam pelo resto da sua existência. […] Este fenômeno me abriu os olhos para sempre, por assim dizer. Minha visão das coisas é o resultado dessas vigílias, ouso dizer as ‘vigílias do espírito’. É pretensioso, mas, enfim, é um pouco isso.”[80] Há algo de positivo nesse estado. Certamente, não poder dormir é um mal. Todavia, “ceder, em meio aos nossos males, à tentação de crer que não terão servido de nada, que, sem eles, estaríamos infinitamente mais avançados, é esquecer o duplo aspecto da doença: aniquilação e revelação; ela nos arranca às aparências e as destrói apenas para nos abrir mais bem à nossa realidade última e, as vezes, ao invisível.”[81] Terminologia espantosa para um suposto cético: “realidade última”, “o invisível”, “o indestrutível”, “o incriado”… São, todos eles, termos-chave para acessar o núcleo místico do pensamento de Cioran; eles compõem uma fenomenologia do absoluto conforme concebido pelo autor de Le mauvais démiurge, a sua metafísica negativa, a sua teologia apofática heterodoxa, na tentativa de comunicar, a partir de suas experiências extáticas, aquilo que haveria para além do mundo das aparências, das corrupções do devir. A despeito de todo ceticismo, Cioran ousa falar e escrever (e o faz apaixonadamente) sobre a eternidade, a imortalidade, o absoluto. Acredita ele em tudo isso? Pode-se muito bem depreender da obra desse “niilista que acredita em tudo”[82] uma mistologia e uma soteriologia a meio-caminho entre a gnose e o budismo, que ele conjuga ecleticamente, e de modo coerente. Encontra-se aí, espalhada entre fragmentos, através dos seus livros, toda uma teoria acerca da redenção, ou libertação (libération, délivrance), em relação ao domínio do temporal, do reino do Demiurgo, ou de Maia, se se preferir. Um autêntico metafísico coexiste lado a lado com o “cético a serviço de um mundo agonizante”.[83] A despeito do “irracionalismo”, da suposta misologia, de toda negatividade a respeito da consciência e ao conhecimento enquanto tal, consequências da Queda, Cioran não deixa de ser um pensador e, à sua maneira, um filósofo. É o caso de colocar em pauta a gnosiologia mística – a teoria do conhecimento religioso – elaborada por Cioran.
Num artigo de juventude, publicado na Revista Teologică, em 1932, Cioran faz uma crítica do racionalismo, afirmando a “preeminência do intuicionismo na cultura contemporânea”.[84] O jovem filósofo critica o procedimento generalizante do pensamento conceitual, com sua tendência a anular o individual, esvaziando-os daquilo que o singulariza concretamente, optando por uma forma de conhecimento que “especifica e diferencia”, pois, se este último – conhecimento intuitivo – “não alcança validades lógicas, aproxima-se mais de uma compreensão vivida do concreto.”[85] A intuição enquanto tal é um “modo de conhecimento direto”, não dialético, não analítico, não progressivo, que se pode aplicar a diversos dados do real, os quais ela se esforça por compreender desde o interior, em virtude de uma simpatia pelo objeto a conhecer; é devido a esse aspecto afetivo da intuição que ela tem sido julgada subjetiva e inválida. “Mas não se deve esquecer”, alerta o autor, “que a experiência subjetiva, se é intensa, pode revelar um conteúdo de vida bastante rico”;[86] assim, por exemplo, “em Was ist Metaphysik?, Martin Heidegger mostra que o tédio (ennui) nos revela o ente como uma totalidade. Quanto a Søren Kierkegaard, ele fala da revelação do existencial no pecado.”[87] A intuição é uma metafísica, no sentido pleno do termo, e mais precisamente, para falar como Bergson: um “empirismo metafísico”, ou uma “metafísica empírica”.[88] Razão pela qual, especialmente “em matéria de religião e de mística, a intuição é uma negação da historicidade”, haja visto que “não se pode atribuir ao absoluto as categorias do devir histórico (por exemplo, o hegelianismo).”[89] Enfim, a intuição aspira a um “conhecimento definitivo, o que explica o sentimento de certeza que o acompanha”, mesmo que se trate, paradoxalmente, da certeza da impossibilidade de toda certeza positiva, racionalmente determinada, a certeza da dúvida em se tratando da “fragilidade de nossas relações com o absoluto.”[90] Quanto ao intuicionismo religioso, é uma variedade específica do conhecimento intuitivo em geral, tendo por objeto, neste caso, “o absoluto, a realidade ontológica, a existência em sua essência”.[91] De acordo com Cioran, “a intuição religiosa, que se encontra em todos os grandes místicos, é uma tentativa de ultrapassar as relatividades da vida e a inconsistência das formas”,[92] em direção a um conhecimento absoluto do absoluto; dito isso, “eu posso conhecer Deus”, argumenta o jovem místico intuitivo, “porque sou a sua criatura. A encarnação do Verbo prova uma identidade de estrutura, sem ser o signo de uma unidade substancial na qual seria impossível efetuar distinções.”[93]
Vejamos algumas ocorrências que exemplificam este tipo de conhecimento místico-religioso no âmbito da obra autobiográfica de Cioran, a partir de Nos cumes do desespero. Neste primeiro livro, encontraremos amostras da intuição religiosa no aforismo “Êxtase”, onde, discorrendo sobre a experiencia extática, ele escreve que “é como se, neste mundo de obstáculos, de misérias e suplício, em que os aspectos individuais da existência se apresentam em sua consistência irredutível, uma porta se abrisse para o âmago da existência, possibilitando-nos apreendê-lo na visão mais simples e mais essencial, no mais esplêndido encantamento metafísico.” E prossegue:
A camada superficial da existência e as formas individuais parecem se fundir no intuito de favorecer o acesso às mais profundas regiões. E me pergunto se a verdadeira sensação metafísica da existência seria possível sem essa eliminação das camadas superficiais e das formas individuais. Somente por meio de uma purificação da existência, em que se eliminem seus elementos contingentes e casuais, é possível atingir uma zona essencial. A sensação metafísica da existência é de natureza extática e toda metafísica tem sua raiz numa forma particular de êxtase.[94]
Logo no aforismo seguinte, a exaltação: “Como é fecundo um pensamento vivo, apaixonado, em que o lirismo circula como sangue pelas veias!” Cioran faz o elogio do pensador orgânico e subjetivo, em oposição ao filósofo objetivo e impessoal; aquele primeiro, torturado por problemas não puramente teóricos, da alçada da epistemologia (problemas destituídos do risco, da loucura e da paixão”, que “não envolvem o fulcro da nossa subjetividade”), mas pelas “convulsões e ardores de sua própria existência”, é o único capaz de desesperar do problema do conhecimento, do conhecimento como problema, de modo que, “com a solução de todos os problemas”, este desesperado apaixonado “não se tornaria menos inquieto, pois sua inquietude emana da estrutura de sua própria existência subjetiva.” Aqui, a intuição metafísico-religiosa é ressignificada em termos de uma filosofia lírica “em que a ideia tem raízes orgânicas, tão orgânicas quanto a poesia.”[95]
Em Lacrimi şi sfinţi [Lágrimas e santos], publicado em 1937 quando Cioran partia rumo à França, também encontramos indícios do conhecimento religioso. Este livro, de uma beleza pungente e comovedora, é escrito no auge de uma crise religiosa iniciada em meio às nuits blanches, estando marcado pela tentação mística e pela obsessão dos santos e santas cristãos. O coração é aí afirmado, em detrimento da razão e dos sentidos exteriores, enquanto órgão privilegiado do conhecimento: “Os olhos não veem nada. Catherine Emmerich tem razão de dizer que ela vê pelo coração! […] O olho tem um campo reduzido, vê sempre desde o exterior. Mas o mundo sendo interior ao coração, a introspecção é o único método para aceder ao conhecimento. O campo visual do coração? O Mundo, mais Deus, mais o nada. Ou seja, tudo.”[96] Mais adiante, lemos que “um filósofo só escapa à mediocridade pelo ceticismo ou pela mística, essas duas formas de desespero frente ao conhecimento. A mística é uma evasão para fora do conhecimento”, leia-se o conhecimento racional, conceitual, e “o ceticismo, um conhecimento sem esperança. Duas maneiras de dizer que o mundo não é uma solução.”[97] Por fim, um terceiro fragmento digno de nota:
Toda versão de Deus é autobiográfica. Não apenas deriva de nós, ela é também nossa própria interpretação. Trata-se de uma dupla visão introspectiva que nos revela a vida da alma como um eu (moi) e como Deus. Nós nos refletimos nele e ele se reflete em nós. […] Eu não me concebo senão através da imagem que me faço dele. É apenas assim que o conhecimento de si pode ter um sentido e um propósito. Quem não pensa em Deus permanece estrangeiro a si mesmo. Pois a única via do conhecimento de si passa por Deus, e a História universal não é mais do que uma descrição das formas que ele adotou.[98]
Em Amurgul gândurilor [O crepúsculo do pensamento], um dos últimos livros de Cioran escritos em romeno antes de abandonar a língua materna, encontra-se um aforismo bastante significativo no que concerne à categoria do religioso, deslocada aqui da esfera do conhecimento em direção ao sentimento, à afetividade. Coloca-se em questão aqui a intensidade da experiência subjetiva que, elevada ao paroxismo, à beira do desespero, transmuta-se em experiência religiosa, mais precisamente mística, revelando eventualmente um conteúdo de vida bastante rico. “O religioso”, argumenta Cioran,
não é uma questão de conteúdo, mas de intensidade. Deus se determina como momento de nossos frenesis, e o mundo em que vivemos raramente se torna objeto da sensibilidade religiosa pelo fato de que só se pode pensá-lo nos instantes neutros. Sem ‘febre’, não ultrapassamos o campo da percepção – o que equivale a dizer que não vemos nada. Os olhos só servem a Deus a partir do momento em que não distinguem os objetos; o absoluto teme a individuação.
A intensificação de qualquer sensação é sinal de religiosidade. Um desgosto, levado ao mais alto grau, nos revela o Mal (a via negativa em direção a Deus). O vício está mais próximo do absoluto do que um instinto imaculado, pois não podemos participar do divino senão à medida em que abandonamos a natureza. […] Quanto mais nos conhecemos a nós mesmos, mais subscrevemos às exigências de uma higiene que busca alcançar a transparência orgânica. Graças a tanta pureza, vemos através de nós mesmos: chega-se assim a assistir ao espetáculo de si mesmo.[99]
No Breviário de decomposição, atenho-me a dois aforismos, “Adeus à filosofia” e “Obsessão do Essencial”. Conjuntamente, eles retomam de Nos cumes do desespero o imperativo, próprio ao pensador orgânico, de erigir o próprio destino em problema filosófico ao mesmo tempo subjetivo e universal, e de Lacrimi şi sfinţi o argumento de que “um filósofo só escapa à mediocridade pelo ceticismo ou pela mística”. “O exercício filosófico não é fecundo; é apenas respeitável. Sempre se é filósofo impunemente: um ofício sem destino que enche de pensamentos volumosos as horas neutras e desocupadas, as horas refratárias ao Antigo Testamento, a Bach e a Shakespeare”.[100] E, debruçando-se sobre a “obsessão do Essencial”, ele dirá que “só prosperam em filosofia os que se detêm no momento oportuno, os que aceitam a limitação e o conforto de um grau razoável de inquietude. Todo problema, quando se toca seu fundo, leva à bancarrota e deixa o intelecto a descoberto: não há perguntas nem respostas em um espaço sem horizonte.”[101] O fundo de todo problema, o “espaço sem horizonte” onde não há perguntas nem respostas, é de natureza afetiva, e por isso mesmo alógica, irracional. De onde esse “insolúvel afetivo”,[102] aporia concreta na qual esbarra o intelecto, sendo levado à bancarrota.
Em “L’arbre de vie”, o texto que inaugura La chute dans le temps, Cioran fala de um conhecimento beatífico fundado na simpatia ingênua entre o sujeito e o objeto do conhecimento, um saber vinculado não à árvore do fruto maldito, mas à Árvore da Vida: tratar-se-ia de uma sabedoria essencial que teríamos desaprendido, uma “ciência inata da vida”[103] preterida em nome do conhecimento do bem e do mal, graças ao qual nos tornamos incapazes de “discernir o absoluto no imediato”.[104] “Conhecer verdadeiramente é conhecer o essencial, engajar-se nele, penetrá-lo pelo olhar e não pela análise, nem pela palavra”[105] – eis o conhecimento religioso, o intuicionismo místico de que falava o jovem Cioran no artigo citado; não um “saber metafisicamente superficial” (e “o espírito em si só pode ser superficial”[106]), mas um “empirismo metafísico” do Essencial, uma auscultação do Ser, comprometida, em profundidade, com “as esferas que significam”,[107] ou seja, a esfera do sentimento. Em outro importante ensaio de La chute… a respeito do nosso tema, “Désir et horreur de la gloire” [Desejo e horror da glória], Cioran propõe que “corrijamos o Gênese: se ele [Adão] pôs a perder sua felicidade inicial, foi menos por gosto pela ciência que por apetite de glória. Desde que se submeteu à sua atração, passou para o lado do diabo”; sendo assim, e uma vez que
nos é interdito recuperar a inocência primordial, podemos, em contrapartida, imaginar uma outra e tentar aceder a ela graças a um saber desprovido de perversidade, purificado de suas taras, mudado em profundidade, “arrependido”. Uma tal metamorfose equivaleria à conquista de uma segunda inocência, a qual, sobrevinda após milênios de dúvida e de lucidez, teria sobre a primeira a vantagem de não mais deixar-se apegar aos prestígios, agora desgastados, da Serpente. Uma vez operada a disjunção entre ciência e queda, o ato de conhecer não lisonjeando mais a vaidade de ninguém, nenhum prazer demoníaco acompanharia ainda a indiscrição forçosamente agressiva do espírito. Nós nos comportaríamos como se não tivéssemos violado nenhum mistério, e veríamos nossas façanhas de todo tipo com distanciamento, se não com desprezo. Tratar-se-ia nada menos que de recomeçar o Conhecimento, ou seja, edificar uma outra história, uma história desagravada da antiga maldição, e na qual nos fosse dado reencontrar essa marca divina que levávamos antes da ruptura com o resto da criação.[108]
Em Le mauvais démiurge, é retomada a questão (presente tanto em Santo Agostinho quanto em seus rivais, os gnósticos maniqueus) do homo duplex: a oposição entre homem interior e exterior. “O criador é o absoluto do homem exterior”, e “toda experiência profunda começa onde acaba o reino do demiurgo”, argumenta Cioran. Ele especula, no melhor espírito gnóstico, que a dualidade que nos determina, princípio de multiplicidade e contrapartida da unidade perdida – essa dualidade fundamental não se limita à nossa existência atual, estando presente já no interior do Éden e na compleição do Criador mesmo.[109] Desgraçadamente, o homem aspirou ao que havia de pior em Deus, ao seu dinamismo, à sua faceta demiúrgica, não à sua “beatitude estacionária”;[110] “talvez pudesse ainda se salvar caso se dignasse a rivalizar com Deus em sutileza, em nuances, em discernimento; mas não, aspira ao mesmo grau de poder”[111] – daí a sua condição de réprobo eterno. Uma vez mais, conforme afirmado em “Désir et horreur de la gloire”, o conhecimento religioso busca fazer o caminho inverso, para fora do domínio do demiurgo e em direção a um “deus adormecido, extenuado por sua eternidade”, “um deus sem atributos”:
A favor do êxtase – cujo objeto é um deus sem atributos, uma essência de deus –, nos elevamos a uma forma de apatia mais pura que a do deus supremo mesmo, e se mergulhamos no divino, nem por isso estamos mais além de toda forma de divindade. Eis a etapa final, o ponto de chegada da mística, o ponto de partida sendo a ruptura com o demiurgo, a recusa de colaborar com ele e de aplaudir a sua obra.[112]
Em dois textos complementares, “Paléontologie” e “L’indélivré”, Cioran conjuga antropologia gnóstica com elementos budistas e hinduístas. “O despertar (éveil)”, argumenta ele, “independe das capacidades intelectuais: pode-se ter gênio e ser um néscio, espiritualmente falando. Em contrapartida, não se está nem um pouco mais avançado com o saber enquanto tal”[113] – ou seja, conhecimento racional. “O ‘olho do Conhecimento’ pode ser possuído por um iletrado, que se encontra assim acima de qualquer sabidão.”[114] Esse “olho”, que busca o simples e foge do complexo, atravessa, com uma única mirada, a totalidade do composto de que somos feitos: primeiro a mente, em seguida a carne, detendo-se por fim naquilo que em nós é o mais elementar, o mais duradouro: o esqueleto. Compreende então que o “eu”, a pessoa, entendida como uma entidade essencial, uma substância, não passa de uma ilusão, uma aparência em todo caso, pertencendo enquanto tal ao reino do demiurgo-maya; um “agregado”, um “constructo”, um encontro fortuito e impermanente de elementos que deve desintegrar-se. Fica evidente aqui o aspecto prático, soteriológico, do conhecimento preconizado por Cioran; não um conhecer por conhecer, puramente contemplativo e especulativo: este saber essencial possui uma função libertadora, redentora, salvífica, operando, naquele que chega a compreender, uma transfiguração, uma transformação salutar. Para tanto, cumpre desprender-se não apenas do vício do conhecimento (indissociável da vontade de glória e de poder), como também do desejo: fonte de insatisfação e sofrimento, estimulante do pensar e do conhecer. “Bem como o desejo”, ao qual ele se parece, o pensamento
se nutre da sua própria substância, ama manifestar-se, multiplicar-se; a rigor, pode tender à verdade, mas o que o define é a agitação (affairement): nós pensamos por gosto do pensamento, assim como desejamos por gosto do desejo. Num e noutro caso, uma febre em meio a ficções, um excesso de trabalho no interior do não-saber. Aquele que sabe está de volta de todas as fábulas que engendram o desejo e o pensamento, sai do corrente, não mais consente com a enganação (duperie).[115]
Mas esta operação não deixa de pressupor atividade intelectiva, um esforço do pensamento, é ela mesma um processo de (auto)conhecimento, uma forma peculiar de saber. Cioran antecipa a objeção: “saber que não se pensa não é ainda pensar? Sem dúvida, mas a miséria do pensamento é superada quando, em vez de saltar de ideia em ideia, permanece-se deliberadamente no interior de uma só, que recusa todas as outras e se anula a si mesma, a partir do momento em que ela se dá como conteúdo de sua própria ausência.”[116] Esta ideia única pode bem ser a ideia de Deus, do absoluto. Aliás, “se a humanidade se apegou durante tanto tempo ao absoluto, é porque não podia encontrar nela mesma um princípio de saúde. A transcendência possui virtudes curativas: sob qualquer disfarce com que se apresente, um deus significa um passo em direção à cura”, afinal, “a saúde vem do ser, não dos seres”[117] – e, idealmente, não do ser senão do não-ser: do nada, do vazio.[118] Da multiplicidade dos seres à unidade do ser, do ser ao não-ser, ou o nada (néant), e deste ao vazio (vide) que é o nada transfigurado, sublimado, destituído de seus atributos negativos, não mais como oposição a um ser fantasmagórico do qual depende, carregando uma aura espectral, para afirmar-se seja como nihil privativum ou nihil negativum. O que importa em todo caso é libertar-se, curar-se da tripla ilusão dolorosa: ser, ser humano, ser si mesmo. “Se tudo é vazio, esta tripla fatalidade também o será. De golpe, a magia do trágico é cortada.”[119] Como fazê-lo? Não importa tanto:
O essencial é menos saber em nome do que se quer liberar-se do que até onde se pode avançar no caminho da libertação. Que se dissolva no absoluto ou no vazio, nos dois casos é uma alegria neutra que se alcançará: alegria sem determinação nenhuma, tão desnuda quanto a ansiedade, da qual se pretende o remédio, e do qual ela não é senão o desenlace, a conclusão positiva.[120]
Enfim, à ilusão de um não-saber que se pretende saber, opõe-se um saber essencial que se sabe fundamentalmente não-saber; um conhecimento negativo, dir-se-ia suprarracional, voltado às questões últimas, ao que é mais importante (na linha de Chestov, a partir da expressão de Plotino, το τιµιωτατον), isto é, tudo o que se situa no extremo limiar entre a vida e a morte, na “dimensão mais íntima de todos os seres vivos”, nesse abismo “que vem de nós mesmos, que é nós mesmos, uma realidade invisível, mas interiormente verificável, uma presença insólita e imutável, que se pode conceber a todo instante e que nunca nos atrevemos a admitir, e que só tem atualidade antes de sua consumação: é a morte, o verdadeiro critério…”:[121] “Sem qualquer relação com o nosso nível intelectual, a morte pertence, como todo o problema privado, a m saber sem conhecimentos. Contactei com muitos iletrados”, escreve Cioran no último (e homônimo) texto de A tentação de existir, “que falavam dela com mais pertinência do que certos metafísicos; tendo identificado por meio da experiência o agente da sua destruição, consagravam-lhe todos os seus pensamentos, de tal maneira que a morte, em vez de ser para eles um problema impessoal, era a sua realidade, a sua morte.”[122] No conhecimento experimental da morte, minha morte, a preposição “da” tem o duplo sentido de referir-se à morte como objeto e como sujeito do conhecer, assim como no conhecimento místico, em chave gnóstica-cristã, o homem conhece a Deus e é conhecido por ele. Enfim, o conhecimento místico-religioso preconizado por Cioran transcende as categorias teológicas ocidentais, Deus enquanto absoluto na cosmovisão cristã, passando por uma cosmovisão gnóstica do mundo como criação de um “mau demiurgo”, chegando finalmente à intuição de um vazio descrito como purificador, luminoso e pleno, “alegre e sem alegria”. É o indestrutível que subsiste para além do transitório, do acidental, do efêmero, do corruptível. Cioran falará deste não-saber essencial uma vez mais na primeira página de Do inconveniente de ter nascido:
Existe um conhecimento que retira peso e alcance ao que fazemos: para ele, tudo está desprovido de fundamento, à excepção de si mesmo. Puro ao ponto de abominar a própria ideia de objeto, ele traduz essa sabedoria extrema segundo a qual é indiferente praticar ou não praticar um acto, e que se faz acompanhar por uma satisfação também ela extrema: a de poder repetir, em todas as circunstâncias, que nenhum gesto que façamos justifica a nossa adesão a ele, que nada é valorizado por qualquer vestígio de substância, que a “realidade” é da alçada da insensatez. Um tal conhecimento mereceria ser chamado póstumo; ele actua como se o conhecer estivesse e não estivesse vivo, simultaneamente ser e recordação de ter sido. “É já passado”, diz ele de tudo o que realiza, no próprio instante do acto, que deste modo fica para sempre destituído de presente.[123]
“Soma de atitudes” irredutíveis sem nenhuma preocupação de unidade,[124] o pensamento de Cioran alterna entre o naturalismo (fisiologismo, biologismo) e um espiritualismo heterodoxo. O homem é apresentado retoricamente como um ser de natureza, um animal, apenas para destacar a sua condição problemática, disfuncional, “antinatural”. O ser humano é concebido como mais do que um animal dotado de necessidade metafísica, para falar como Schopenhauer; um ser de verticalidade, teotrópico, capax dei: um animal místico, dividido – homo duplex – entre a vida interior do espírito e a vida exterior do corpo (inclusive o psiquismo pertenceria à exterioridade), a existência e o absoluto, o tempo e a eternidade. Dito isto, a História aparecerá como a duração e o prolongamento da Queda, negação contínua do absoluto, da unidade e da identidade rompida entre o Ser e os seres; nesta perspectiva místico-religiosa, “cada homem evolui à custa de suas profundidades, cada homem é um místico que se recusa: a terra está povoada de graças goradas e de mistérios pisoteados.”[125] O pensador romeno não abre mão de interpretar o homem como criatura, e o mundo como Criação, muito embora, ao que tudo indica, não a de um Deus definido pela perfeição de seus atributos, como quer a tradição judaico-cristã, com suas sucessivas empreitadas no campo da teodiceia, mas de um “mau demiurgo”, isto é, uma “subdivindade”, ela mesma decaída de um absoluto superior, insondável e infinitamente transcendente; em todo caso, um Criador incompetente e apressado cuja obra é vista por Cioran como “o primeiro ato de sabotagem”.[126] Com fé ou sem ela, aderindo ou não a dogmas, doutrinas, conteúdos religiosos em suma, a natureza religiosa ou mística do ser humano determina-se menos por sua necessidade de absoluto do que por sua inaptidão a aderir a este mundo, a instalar-se nele e fazer dele, inequivocamente, um chez-soi.
O gnosticismo de Cioran é duplamente heterodoxo: primeiro, porque não postula uma gnosis tal como normalmente é entendida: um conhecimento esotérico acerca das realidades divinas e de uma pretensa origem transmundana do homem. A árvore do conhecimento não proporciona um conhecimento libertador; a Serpente não é interpretada como uma auxiliar do homem; um gnosticismo tão mais radical quanto moderado, no sentido de preconizar não uma gnose que se pretende superior à fé pura e simples (pistis), mas uma sábia ignorância, um não-saber essencial que não se opõe, apesar de tudo, à fé – entendida aqui não como adesão a dogmas estabelecidos, mas puramente como atitude existencial e espiritual, um modo de ser no mundo que se basta a si mesmo, aquém de toda pretensão de saber, marcada pela inocência e pela ingenuidade, pela ausência de toda autoconsciência e reflexão. Permanece, contudo, o pessimismo acósmico e acrônico, o dualismo radical: espírito versus vida, homem versus mundo, homem versus demiurgo, demiurgo versus “essência de deus”, ou o “deus sem atributos”, etc. Um gnosticismo atípico, como é o de Basilides, citado por Cioran:
Basilides, o gnóstico, é um dos raros espíritos a ter compreendido, no início de nossa era, o que agora constitui um lugar-comum, a saber, que a humanidade, se quiser se salvar, deve retornar aos seus limites naturais pelo retorno à ignorância, verdadeiro signo de redenção. Este lugar-comum, apressemo-nos a dizê-lo, permanece ainda clandestino: todo mundo o murmura, mas se guarda de proclamá-lo. Quando se tornar um slogan, um passo considerável terá sido dado adiante.[127]
Sylvie Jaudeau observa que “a questão da salvação está constantemente presente em Cioran. É preciso libertar-se do inferno deste mundo.”[128] Ela tem razão, mas esta é apenas uma meia-verdade; tem razão também quando afirma que “ver nele um simples cínico a sobrevoar a realidade com um olhar indiferente e desabusado, ou um cético de soberana indiferença, seria negar a pulsão profunda e sempre ativa de uma inquietude metafísica que nenhum niilismo poderia sufocar.”[129] A “salvação”, ou, melhor dizendo, a redenção ou libertação não apenas é tematizada pelo autor de Le mauvais démiurge. Depreende-se da obra desse “místico que não crê em nada”[130] toda uma teoria da libertação (délivrance), a meio caminho entre a gnose e o budismo, o que levaria Peter Sloterdijk a enxergar em Cioran um “existencialismo da incurabilidade, tingido de tintas cripto-romenas e dácio-bogomilas, parando na fronteira do inexistencialismo asiático.”[131] Afinal de contas, descritores hermenêuticos tão recorrentes na tradição crítica de Cioran, como ceticismo, pessimismo, niilismo, acabam por se revelar, por força de um pensamento infinitamente paradoxal, redutores, inconsistentes e insuficientes em si mesmos. O que não faltam, em sua obra fragmentária e resolutamente contraditória, são elementos para desarmá-los um a um, ainda que provisoriamente, de modo experimental. Aí, nada é definitivo, nada é oficial. Talvez seja isso o que Jaudeau tem em mente ao afirmar que “o pessimismo da obra de Cioran só aparece a aqueles que não penetraram o seu sentido último.”[132] E ficamos a imaginar, desconfiados, tudo o que permanece implícito, sugerido, abafado, em meio ao trabalho demolidor, estrondoso, de uma negação inveterada e programática. É preciso negar, é preciso mesmo lançar-se à aniquilação, para descobrir, quem sabe, o Indestrutível para além das aparências e das ilusões que fazem viver. “Se fazemos a salvação residir no ato, negar é salvar-se, é perseguir um desígnio, exercer um papel.”[133] Por prurido de rigor, por uma exigência de modéstia, de probidade intelectual, para evitar o “perigo do orgulho espiritual”, [134] é preciso “pensar contra si”, duvidar das próprias façanhas, negá-las inclusive e, se possível, esquecê-las ou ignorá-las. E fica a questão: não teria Cioran experimentado a tão almejada redenção sem sabê-lo (à son insu)?
Como vencer-se a si mesmo à son insu, quando o desprendimento exige uma insistente tomada de consciência? […] Dever-se-ia poder esquecer que o desprendimento é um mérito; se não, em vez de libertar, envenena. Atribuir a Deus os nossos êxitos de toda espécie, crer que nada emana de nós, que tudo é dado, eis, segundo Inácio de Loyola, o único meio eficaz de lutar contra a soberba. A recomendação é válida para os estados fulgurantes em que a intervenção da graça parece necessária, mas não para o desprendimento, trabalho de minagem, longo e penoso, do qual o eu é a vítima: como não sacar vaidade disso?[135]
“L’indélivré” [O não-liberto] é, inquestionavelmente, um título autorreferencial, tal como as categorias “réprobo” e do “fracassado” (raté). Mas não recairia sobre elas o mesmo princípio de equivocidade, de artifício, de indução ao engano, que Cioran atribui à sua obra mesma e ao trabalho da escrita? Não obedecem elas ao imperativo de “pensar contra si”, a essa exigência brutal de autocrítica que eleva ao absoluto a irrealização, a impotência, o fracasso? Não seriam expressões ambíguas da confissão de um espírito que desespera da ausência de convicções e certezas sobre tudo, a começar por si mesmo, pelo seu grau de despertar e pelo progresso realizado na busca da redenção? Nada mais difícil, senão impossível, do que suprimir o desejo e, com ele, a atividade intelectiva, a reflexão, fatores de turbação e de apego ao eu. Como superar o dualismo para descansar na mais pura ausência de diferenças, oposições, separações? O drama religioso de Cioran descreve uma série de tentativas, aparentemente malsucedidas, de aceder ao Uno, que as correntes advaita (não-dualistas) do hinduísmo associam ao atman: a alma mundi, o Eu cósmico, absoluto. Quanto mais aspira à redenção, mais Cioran se descobre enfeitiçado pelos poderes do demiurgo, submetido ao reino da diversidade ilusória. Não resiste, então, ao imperativo de vingar-se do “fracassado do alto”,[136] haja visto que “qualquer forma de ódio se dirige em última instância contra ele”:[137]
Enquanto possuímos uma vontade própria e nos apegamos a ela (é a censura que fizeram a Lúcifer), a vingança é um imperativo, uma necessidade orgânica que define o universo da diversidade, do “eu”, e que não tem nenhum sentido no universo da identidade. Se fosse verdade que “é no Uno que respiramos” (Plotino), de quem nos vingaríamos aí onde toda diferença desaparece, onde comungamos com o indiscernível e perdemos nossos contornos? Na realidade, respiramos no múltiplo; nosso reino é o do “eu”, e não há salvação através do “eu”.[138]
Sentindo-se um réprobo, incapaz de desprender-se, de esquecer-se de si, Cioran sonha em estar presente nos funerais do seu próprio desejo: “Abandono-me ao espaço como a lágrima de um cego. De quem sou a vontade, quem quer em mim?[139] O que faz da libertação uma proeza tão difícil é que ela não requer, no fundo, nenhum esforço: sempre ao alcance, algo simples demais para quem está acostumado à complexidade e à complicação, para quem a simplicidade, em matéria de reflexão, de pensamento, é uma façanha hercúlea. Quanto mais a desejamos, quanto mais nos esforçamos, mais longe de alcançá-la estamos, permanecemos perdidos, ofegantes no universo da diversidade. No caso de se possuir uma natureza apaixonada e questionadora, inquieta, ávida de tensão e de problemas, o recurso ao paradoxo é salutar. Trata-se de fazer as ideias colidirem umas com as outras, fazê-las explodir, reduzi-las a pó, para manter-se no interior de uma só. O caminho inverso, para baixo, aparecerá como alternativa, possibilidade paradoxal de salvar-se. Assim, chega-se a negar violentamente aquilo que mais se desejaria obter, aquilo que faz mais falta, apegando-se às suas paixões, sofrimentos e imperfeições: “A salvação acaba com tudo; e acaba conosco. Quem, uma vez salvo, ousa considerar-se ainda vivo? Só se vive pela recusa a libertar-se do sofrimento e por uma espécie de tentação religiosa de irreligiosidade. A salvação só preocupa os assassinos e os santos, os que mataram ou superaram a criatura; os outros chafurdam – bêbados perdidos – na imperfeição…”[140] A salvação preocupa este que não é estranho à tentação da santidade, nem à volúpia de encarniçar-se contra o demiurgo: “Eu queria uma oração com palavras-punhais. Infelizmente, desde que se reza, deve-se rezar como toda a gente. É aí que reside uma das maiores dificuldades da fé.”[141] Este aspirante ao absoluto buscou superar a criatura não pelo esforço ascético com vistas à perfeição, mas por uma vontade louca de chafurdar na imperfeição, elevando o fracasso a um estatuto metafísico. Lucidez e consciência do fracasso são correlatos. É preciso abandonar-se ao tormento da irrealização, à perdição inapelável, é preciso mesmo convencer-se de que não há nenhuma saída, de que se está predestinado a fracassar no essencial, no absoluto: “A certeza de que não existe salvação é uma forma de salvação, é mesmo a salvação. A partir daí, tanto se pode organizar a própria vida como construir uma filosofia da história. O insolúvel como solução, como única saída…”[142] Esta maneira invertida e paradoxal de aspirar a uma salvação improvável é colocada em questão num aforismo de Le mauvais démiurge:
Contar com o que quer que seja, aqui ou alhures, é dar prova de que ainda se arrastam correntes. O réprobo aspira ao paraíso; essa aspiração o rebaixa, o compromete. Ser livre é desembaraçar-se para sempre da ideia de recompensa, é não esperar nada nem dos homens nem dos deuses, é renunciar não apenas a este mundo e a todos os mundos, mas à salvação mesma, romper inclusive com a sua ideia, essa cadeia entre as cadeias.[143]
O que parece questionável, improvável, a julgar pela quase totalidade da obra deste autor que se empenhou na negação (uma negação que se pretende absoluta e incondicional, na antípoda da afirmação nietzschiana), a saber, que a redenção esteve para ele sempre fora de alcance e de cogitação – esta impossibilidade última é posta em xeque a partir de algumas (poucas) passagens de sua própria obra, e também por declarações dadas em a certos interlocutores. Atenho-me, primeiramente, ao seguinte comentário de Cioran a Sylvie Jaudeau, em que lucidez, consciência do fracasso e redenção parecem convergir: “O deserto interior não está sempre fadado à esterilidade. A lucidez, graças ao vazio que deixa entrever, converte-se em conhecimento. É então mística sem absoluto. A lucidez extrema é o último grau da consciência e dá ao ser a sensação de ter esgotado o universo, de ter sobrevivido a ele.”[144] Paraíso e inferno, perdição e salvação, fracasso e apoteose confundem-se, para Cioran, nos cumes do desespero; é no ponto mais baixo de si que experimenta uma estranha forma de êxtase, extraordinária sensação de ter esgotado o universo, de ter transcendido, mesmo que por um breve instante, o inferno deste mundo, o reino do demiurgo. Em meio às chamas do desespero, que consomem sem destruir, despertou para algo de indestrutível no fundo do eu. que E a negação, por mais viciosa que seja, não é total, absoluta; ela tem um limite, um ponto extremo em que se anula a si mesma, transfigurando-se, transmutando-se em afirmação: “Subitamente, necessidade de demonstrar gratidão, não só aos seres mas também aos objetos, a uma pedra porque é pedra… Tudo parece então animar-se como se fosse para a eternidade. De golpe, inexistir parece inconcebível. Que estes calafrios se produzam, que possam produzir-se, mostra que a última palavra talvez não seja a Negação.”[145]
É num lugar improvável que se encontrarão, da forma mais patente, mais reveladora, a descrição (autobiográfica?) da redenção segundo Cioran. Não em La chute dans le temps ou em Le mauvais démiurge, cujos títulos sugerem expressamente um conteúdo religioso ou místico, mas em História e utopia, curiosamente, um de seus livros mais gnósticos. É em meio à reflexão sobre o pesadelo da história e a corrupção temporal que encontraremos, nas últimas páginas, dedicadas ao tema da Idade de Ouro, uma descrição flagrante do que seria para Cioran a beatitude. Nenhum traço de tormento, angústia, ansiedade, nestas páginas marcadas pela leveza e por um fulgor inaudito (a “alegria neutra” de que fala o autor de Le mauvais démiurge). Aí, todo dualismo parece abolido; sugerida está a experiência salutar de unio mystica com o Uno – o Ser, o Eu, a Consciência suprema, impessoal, eterna e infinita, termos associados, na tradição advaita (não-dualista) do hinduísmo, ao Atman (“alegre sem alegria”, conforme lemos em Le mauvais démiurge). Vale a pena citar em extensão a referida passagem:
Por mais implacáveis que sejam nossas recusas, não destruímos totalmente os objetos de nossa nostalgia. De nada vale deixar de acreditar na realidade geográfica do paraíso ou em suas diversas figurações, ele reside de qualquer maneira em nós como um dado supremo, como uma dimensão de nosso eu original; trata-se agora de descobri-lo aí. Quando o conseguimos, entramos nessa glória que os teólogos chamam essencial; mas não é Deus que vemos face a face, é o eterno presente, conquistado acima do devir e da própria eternidade… O que importa, a partir daí, a história! Ela não é o fundamento do ser, mas sua ausência, o não de toda coisa, a ruptura do vivente consigo mesmo; não sendo constituídos pela mesma substância que ela, nos recusamos a cooperar em suas convulsões. Pode nos esmagar à vontade, só atingirá nossas aparências e nossas impurezas, esses restos de tempo que ainda arrastamos, símbolos de fracasso, marcas de escravidão.
O remédio para nossos males é em nós mesmos que devemos buscá-lo, no princípio intemporal de nossa natureza. Se a irrealidade de tal princípio fosse demonstrada, provada, estaríamos irremediavelmente perdidos. Que demonstração, que prova contudo poderiam prevalecer contra a convicção íntima, apaixonada, de que uma parte de nós escapa à duração, contra a irrupção desses instantes em que Deus é supérfluo ante uma claridade surgida subitamente de nossos confins, beatitude que nos projeta para longe de nós mesmos, comoção exterior ao universo? Não há mais passado, nem futuro; os séculos se desvanecem, a matéria abdica, as trevas se esgotam; a morte parece ridícula, e também a própria vida. E essa comoção, mesmo que só a tivéssemos sentido uma vez, bastaria para nos reconciliar com nossas vergonhas e com nossas misérias, das quais ela é sem dúvida a recompensa. É como se o tempo em sua totalidade tivesse vindo nos visitar, uma última vez, antes de desaparecer… É inútil remontar depois ao antigo paraíso ou correr em direção ao futuro: um é inacessível; o outro, irrealizável. O que importa, ao contrário, é interiorizar a nostalgia ou a espera, necessariamente frustradas quando se voltam para o exterior, e obrigá-las a descobrir ou a criar em nós a felicidade da qual, respectivamente, sentimos nostalgia ou esperança. Só há paraíso no mais profundo de nosso ser, e como que no eu do eu; ainda é preciso, para encontrá-lo aí, ter recorrido a todos os paraísos, desaparecidos e possíveis, tê-los amado e detestado com a rudeza do fanatismo, tê-los escrutado e rejeitado depois com a competência da decepção.[146]
Repitamos: “O paraíso reside em nós como um dado supremo, como uma dimensão de nosso eu original… O remédio para nossos males é em nós mesmos que devemos buscá-lo, no princípio atemporal de nossa natureza… só há paraíso no mais profundo de nosso ser, e como que no eu do eu…” – eis a expressão inequívoca da redenção, segundo Cioran. Não teríamos mais motivos para duvidar do que para crer que se trata aí de uma descrição com conhecimento de causa. Todas essas certezas, essas convicções íntimas e apaixonadas, exprimem o desenlace positivo da lucidez: uma admirável demonstração de anti-ceticismo, anti-niilismo, anti-pessimismo; o mal aparece como um detalhe insignificante no inútil episódio da criação. É o grande sim inaudito de Cioran, sua insuspeitada e derradeira afirmação, surgida dos confins do eu, de um êxtase que o projeta, mediante um mergulho interior, para longe de si e de tudo, comoção exterior ao universo e a Deus… Esta passagem apoteótica fornece a chave de acesso à heterodoxa soteriologia cioraniana, a meio caminho entre a gnose cristã e as sabedorias orientais que Cioran tanto apreciava. A aproximação entre Ocidente e Oriente, tal como sugerida por Cioran, não é arbitrária, disparatada; a homologia, a afinidade eletiva subjacente entre gnosticismo e budismo, por exemplo, já foi extensamente explorada por diversos pesquisadores.
Segundo Harold Bloom “a gnose é, inteiramente, a doutrina do eu profundo ou mais profundo. A gnose, em essência, é o ato de distinguir a psique ou alma do eu profundo, um ato de distinção que é também um reconhecimento.”[147] Este re-conhecimento é, em si mesmo, o ato de libertação do espírito, hic et nunc. Trata-se do tema da ressurreição conforme a concebiam os antigos gnósticos. Cioran não emprega esta palavra, mas o que importa é que ela em nada difere, na prática, do que ele quer dizer quando fala em “libertação”, délivrance em francês. Aquilo a que ele aspira, a partir de uma necessidade urgente, não é uma esperada salvação após a morte, baseada na certeza (fé) acerca da imortalidade da alma pessoal, mas a libertação aqui e agora, tal como preconizavam os cristãos gnósticos, por exemplo Valentino, em confronto direto com os cristãos de fé. “Como na religião gnóstica anterior”, explica Bloom referindo-se aos sethianos, “a ressurreição para Valentino não é, visivelmente, uma coisa que ocorre depois da morte. […] Este é o núcleo da ressurreição valentiniana: o saber libera a centelha, e nos levantamos do corpo desta morte. A ignorância se vai, deixamos de esquecer, somos de novo parte da Plenitude.”[148] Esta concepção da ressurreição está presente em dois textos gnósticos citados por Bloom. No Evangelho de Felipe, lê-se: “As pessoas que dizem que primeiro morrerão e depois se levantarão estão enganadas. Se primeiro não receberem a ressurreição enquanto vivas, assim que morrerem não receberam nada. Exatamente isso se diz do batismo: ‘Grande é o batismo!’ Pois se o recebemos, viveremos.”[149] No Evangelho da Verdade, o seguinte: “Desde o princípio, vós [da congregação] tendes sido imortais, e sois filhos da vida eterna. E quisestes que a morte vos fosse destinada para poderdes gastá-la e usá-la, e para que a morte morresse em vós e através de vós. Pois quando anulardes o mundo e não fordes vós mesmos anulados, sereis senhores sobre a criação e sobre toda a corrupção.”[150]
Enfim, a obra de Cioran encontra-se atravessada de elementos místicos de viés cripto-gnósticos e, em alguns casos, manifestamente gnósticos: o “mau demiurgo” e a Criação-Queda, a “queda no tempo” e o “exílio metafísico”, a solidão cósmica e o estrangeirismo, a nostalgia, a errância e a alienação, o despertar e a tomada de consciência do não-pertencimento ao mundo, do princípio intemporal de nossa natureza humana profunda, entre tantos outros. Todas estas ideias reunidas traduzem perfeitamente a atitude existencial que Hans Jonas identifica ao espírito gnóstico, não sem relação com o pensamento existencial moderno.[151] O conhecimento religioso, de que fala o jovem pensador, pode ser perfeitamente compreendido em termos de uma gnose ateia: um conhecimento extático das “raízes imanentes da existência”.[152]
Cioran viveu dividido entre inclinações contraditórias, atraído por duas modalidades de aventura que se excluem: a aventura do escritor, com o papel social que lhe cabe no seu momento histórico, e a aventura vertical, trans-histórica, da mística, “carreira metafísica” que sabota o escritor na medida mesma em que este sabota aquela. Se a tentação de existir e afirmar-se como escritor, sucumbindo assim ao desejo de glória, implica um fracasso no absoluto, a tentação de inexistir e a paixão mística do absoluto implicam, em contrapartida, um fracasso no devir, a autossabotagem do escritor e do artista. Cioran se agitou na história e se agitou nas periferias do absoluto. Seria a escrita, por mais terapêutica que se ofereça, o paliativo a uma salvação impossível? Fracassou Cioran? Em que teria fracassado este “não-liberto”, ou este “não-escritor”? Ele mesmo não saberia dizer, perpetuamente à deriva nessa flutuação do espírito que é o ceticismo orgânico: “É uma eterna interrogação, a recusa instintiva da certeza. […] As raízes da dúvida são tão profundas quanto as da certeza, Aquela, porém, é mais rara, tão rara quanto a lucidez e a vertigem que a segue.” Seu único lamento: “Não tive a sabedoria de deixar inexploradas minhas potencialidades, como os verdadeiros sábios que admiro, os que, de propósito, nada fizeram da vida.”[153]
Destrói-se quem, respondendo à sua vocação e cumprindo-a, se agita no interior da história; apenas se salva aquele que sacrifica dons e talentos para, desprendido da sua qualidade de homem, poder repousar no ser. Se aspiro a uma carreira metafísica, não posso por preço algum conservar a minha identidade: terei de liquidar o menor resíduo que dela possa guardar; se, pelo contrário, escolho a aventura de um papel histórico, a tarefa que me cabe é a de exasperar as minhas faculdades até explodir eu próprio com elas.[154]
Nas últimas páginas de seu livro, Jaudeau se debruça sobre o imperativo cioraniano de “escrever para se desfascinar”, de onde a sua paradoxal “disciplina da esterilidade”; “o paradoxo”, diz ela, “irrompe aos olhos de todos”:
Aquele que aspira a se libertar encerra-se agora no jugo da notoriedade, e logo constrói um monumento à sua glória pessoal. Aquele que difamara o eu parece despertar ao redor dele um verdadeiro culto à sua pessoa. Venera-se suas audácias, suas impertinências, seu grande estilo, seu romantismo eslavo. Perseguem-no como vedetes. Ele tinha-se colocado como tarefa o apagamento e ei-lo aqui alçado sobre um pedestal, herói apátrida que inflama as almas nostálgicas. A tal ponto que ele mesmo, sofrendo de uma popularidade adquirida com contrariedade, esgota-se inutilmente para neutralizar-lhe os efeitos.
Estas considerações nos remetem novamente ao ensaio “Désir et horreur de la gloire”. Jaudeau aponta para uma dualidade fundamental no âmago da unidade entre a vida e a obra de Cioran. “Para inúmeros de seus admiradores”, diz ela, “Cioran transformaria em obra de arte sua natureza, a natureza humana, e transmutaria suas raivas em gozo estético.” Mas o que é certo, em certo nível de leitura, complica-se consideravelmente “do ponto de vista místico, que convém nunca esquecer no caso dele.”[155] O que faz de Cioran tão moderno, no melhor espírito baudelairiano, é que o seu moi, esse que “eu” que escreve, não seria senão “uma máscara, a ficção de uma personalidade unificada em seu furor, bela em seu barroquismo expressivo, mas que devemos evitar considerar na ótica de uma verdade que se colaria à sua vida.” Imaginemos um Cioran cindido em dois, duas dimensões discretamente apartadas e incongruentes de um mesmo homem: uma delas manifesta, positiva, ativa e criativa, a outra oculta, subjacente, contemplativa, negativa e silenciosa, inaudita. O autor e sua obra espantalhos, um duplo artificial, um chamariz, uma isca, uma “negaça” para distrair, desviar, despistar, confundir o público, enquanto um “eu” oculto se dedicaria ao que mais importa, ao essencial, buscando, em seu imo profundo, a quietude, a paz, o repouso na ausência de toda atividade, longe dos holofotes do mundo literário. Cioran escreve para apagar-se, entregando-se a um trabalho ao mesmo tempo literário e ascético, e que poderia ser entendido em termos de désoeuvrement.
O verdadeiro Cioran se encontra não nessa personalidade que tenta definir-se pelas palavras, mas na busca do esvanecimento de si. Ele não é movido por uma ambição de escritor, aquele que busca construir-se numa obra, aquele que assegura sua identidade pelo ato de escrever. O objetivo secreto de Cioran é exatamente inverso. Bem longe de exaltar em si o autor, ele trabalha para abafá-lo. Quanto mais parece, em seus livros, coincidir com o seu personagem, mais se livra dele – ele poderia tomar para si a famosa proposição de Benjamin Constant: “Pode ser que eu não seja totalmente real”. E de fato quanto mais ele se afirma como je nesses escritos, mais se liberta dele. A ilusão seria, portanto, acreditar que ele é verdadeiramente o autor ou o pai de seus livros.[156]
Esse autor, auctor (de onde autoritas), o “pai” de seus livros, é ele mesmo uma metáfora: ícone, monumento, túmulo (sema, em grego) de alguém que já se retirou, que está ausente. A primeira pessoa (esse je que se enuncia e anuncia no ato da escrita) nunca é verdadeiramente primeira, mas sempre segunda, terceira, enésima metáfora de um “eu” que não se apresenta. O autor se quer tão “morto” quanto mais pretende dar vida à obra, afirmando-se como escritor. Criar é um ato sacrificial, uma espécie de suicídio metafórico, uma autodestruição consentida: “Não há obra que não se volte contra o seu autor: o poema esmagará o poeta, o sistema o filósofo, o acontecimento o homem de ação.”[157] Cioran sabe que, a despeito das convenções sociais, da glória associada a um nome, não se pode reconhecer paternidade por algo – uma obra ou um universo – de que se é apenas o instrumento, o veículo, a mão-de-obra contrariada, em que se exerce um trabalho inessencial que não coincide com a atividade-fim. Toda paternidade é metafórica: “Cioran” mesmo não passa de uma metáfora, cujo lugar ou nome original, a rigor inominável, recua e se oculta conforme o leitor avança em busca de sua identidade verdadeira. A orfandade da obra literária é apenas a expressão particular de uma orfandade mais geral, a do “ser” enquanto “ser” (outra metáfora). “Sou um ‘ser’ por metáfora; se eu fosse um de fato, permaneceria sendo-o para sempre, e a morte, desprovida de significação, não teria nenhum poder sobre mim. ‘Trabalheis sem cessar em vossa salvação’ – quer dizer, não vos esqueceis que sois um conjunto fugitivo, um composto cujos ingredientes que não esperam por desagregar-se.”[158]
E somos conduzidos à questão da lucidez e sua função na encruzilhada em que convergem e divergem o autor e sua obra, experiência vivida e experiência literária. “A experiência da lucidez em Cioran”, diz Jaudeau, “avizinha-se da do excesso vivida por George Bataille. Os dois, por vias distintas, tentam cernir essa parte obscura e maldita que geme no âmago do ser e constitui o seu princípio dinâmico.”[159] Lucidez ambivalente, que se manifesta na dualidade entre o silêncio e o verbo, entre o nada e essa ilusão inquietante, contudo eficaz, que os filósofos convencionaram denominar “ser”. Herdamos do Criador, o grande Inconsequente, essa natural incapacidade que cada qual experimenta de permanecer em si mesmo: “engendrar é continuar, de outra maneira e em outa escala, a empresa que leva o seu nome, é, por uma deplorável macaquice, acrescentar algo à sua ‘criação’.”[160] A “demiurgia verbal”,[161] essa poética de “anti-Criação”[162] na qual Cioran se erige como perito, é a sua maneira de reproduzir a baba, a excrescência, a balbúrdia universal que ele encontrou no mundo; trata-se nada menos do que (re)criar, em miniatura, essa “Criação sabotada”, essa “cosmogonia de delirium tremens”[163] – e, tendo-o feito, desejar, como provavelmente ocorreu ao “mau demiurgo”, virar as costas para sua própria criação, abandonando-a ao acaso e recusando-se, no seu foro íntimo, a assumir paternidade por uma aberração tão fascinante.
Não há escritor que não repita, no seu nível, os vícios do mau demiurgo, e Cioran tanto mais que os outros.[…] Ele tenta nos comunicar o seu saber funesto lançando diante de nós essa parte de trevas que predomina e se perpetua até no rastro material de sua escrita, pelo excesso da forma sobre o sentido que nós denominamos literatura. As palavras permanecem, continuando a verter sua cólera quando o que a desencadeou já foi há muito esquecido, rangendo como um mecanismo absurdo largado ao abandono por seu inventor. A obra de Cioran, animada de uma vitalidade autônoma, “ruidosa”, é em si mesma uma figuração do mal.[164]
Essa “parte maldita” não esgota a totalidade da obra de Cioran, a experiência vivida de um autor às voltas com uma lucidez ambivalente e radicalmente dualista. Desnecessário ressaltar a diferença entre a lucidez cioraniana e aquela de Camus (para citar um seu contemporâneo célebre). Ambos têm em comum a postulação do suicídio, em oposição às razões que fazem viver face à absurdidade do mundo, como o problema filosófico por excelência – tão religioso quanto filosófico, no caso de Cioran. Pouca, talvez nenhuma, semelhança entre as suas respectivas concepções da lucidez. Enquanto o escritor argelino exalta um pensamento diurno, meridional, o apátrida romeno evoca um pensamento noturno, surgido nessas “noites infernais”, a partir da “vigília ininterrupta” que é a insônia: “lucidez vertiginosa que poderia converter o paraíso num centro de tortura.”[165] Eis o ponto de partida da obra de Cioran. De acordo com Starobinski, como visto anteriormente, toda autobiografia pressupõe “uma modificação, uma transformação radical: conversão, entrada numa nova vida, operação da graça”, ou des-graça. Nos cumes do desespero é a expressão inaugural dessa experiência capital, se não des-figuradora. É em suas noites em branco, graças às revelações da insônia, que Cioran se vê entregue a essa lucidez luciferina que é a consciência exacerbada do mal. A insônia será o acontecimento a instaurar o seu sentimento religioso da existência, definido não tanto pela relação com Deus ou o absoluto, mas pela inaderência ao mundo, pela inaptidão a instalar-se nele e aí sentir-se em casa. “Quando um ser não encontra o seu assento na existência, encontra-se na presença do Mal. Daí resulta todo fracasso – e o mal sendo imanente ao devir, todos os seres têm de lutar contra ele”, escreve ele em Amurgul gândurilor.[166]
A insônia foi o grande drama existencial da vida de Cioran, e tomaria a significação de um drama religioso peculiar: “Eu terei conhecido até a saciedade o drama religioso do descrente. A nulidade do aqui e a inexistência do alhures… esmagado por duas certezas”, lê-se nos Cahiers.[167] Incapaz de crer, de ter a fé de Abraão que Kierkegaard tanto exalta, a sua carreira religiosa se desenvolverá por outros meios. A fé, que pressupõe uma confiança inabalável no Criador deste mundo, e a certeza de que tudo nele feito para o melhor, não deixa de ser um antídoto ao desespero. Ela é, conforme o próprio Kierkegaard afirma, o exato oposto do desespero. Desesperar-se, na visão do filósofo dinamarquês, é estar em pecado, e desejar, com um orgulho inconfesso, permanecer assim. O desespero, de resto, é para ele o sinal de uma existência inautêntica, em que o eu, síntese de finito e infinito, encontra em Deus, o Criador segundo a Bíblia cristã, o seu poder fundador. O problema é que Cioran não compartilha do pressuposto teológico do luterano Kierkegaard, fundamentalmente o mesmo do cristianismo ortodoxo em cujo seio familiar nasceu o autor romeno. Cioran rejeita o personalismo e o finalismo antropocêntrico do cristianismo oficial, tal como afirmados por Kierkegaard e Unamuno. Em Cioran, o desespero encontra outro antídoto, que não requer o recurso à fé, dispensando-a. Contrariando a tese de que o seu pensamento é a-soteriológico,[168] Cioran apresenta, aqui e ali, elementos suficientes para depreender de sua obra uma teoria soteriológica de viés heterodoxo.
Nenhuma teodicéia racional é satisfatória quando se trata de equacionar os atributos positivos de Deus com a natureza problemática da sua Criação. Apenas a fé (antirracional, contrarracional, na definição de Unamuno) é capaz de conciliar a perfeição de Deus e a existência do mal, justificando-a. Credo quia absurdum, escreveu Tertuliano; e, no entanto, o absurdo que conduz à fé é o mesma que leva para fora dela, ao ceticismo e ao ateísmo, ou ainda ao gnosticismo (que não é incompatível com aqueles, se considerarmos que tais disposições intelectuais constituem-se no contexto de uma tradição teísta). Como fica claro em La chute dans le temps, Cioran recorre ao pecado original como artifício hermenêutico para interpretar a condição humana e sua existência histórica. A diferença é que, para ele, a imputação do mal não recai unicamente sobre “o promotor de nossa raça”, sendo coextensiva ao Criador. Na entrevista a François Bondy, Cioran a sua propensão ao misticismo remete não ao cristianismo ortodoxo do qual o seu pai era representante, mas à “seita gnóstica dos bogomilos, os ancestrais dos cátaros, cuja influência foi muito grande sobretudo na Bulgária; ele afirma ao interlocutor que se sente “próximo da crença profunda do povo romeno segundo a qual a criação e o pecado são uma e a mesma coisa. Em grande parte da cultura balcânica, a criação não cessa de ser colocada em acusação.”[169] Uma certa visão gnóstica descreve que o Criador se enreda nas tramas de sua Criação, caindo junto com ela, dispersando-se e obscurecendo-se no devir. Mais do que simplesmente trágica, a concepção de Cioran acerca da história e do tempo apresenta-os como domínio da repetição mecânica, patológica, repetição-lugar-comum,[170] uma concepção metafísica pessimista que o autor de Le mauvais démiurge remete não tanto a Schopenhauer quanto aos gnósticos. A História é um longo argumento contra o teísmo, contra essa crença “edulcorada” de que os males inerentes ao devir histórico são provações redentoras que hão de se justificar num esperado Juízo Final. Meditando sobre o horror da História, permanece-se diante do dilema entre nenhum deus (hipótese darwinista) e um deus mau (hipótese gnóstica), estando excluída a hipótese teísta. Mas nem tudo é horror, trevas, mal, como vimos.
Por fim, é preciso dissipar um equívoco amplamente difundido, um mal-entendido que consiste em confundir gnosis e episteme: por um lado, conhecimento experiencial e, a rigor, místico, e, por outro, conhecimento racional e científico. Confusão talvez inevitável, uma vez que a gnose dos gnósticos remete normalmente a um conteúdo mistérico, esotérico, hermético, e por isso mesmo intransmissível, incomunicável. No contexto de uma modernidade materialista, naturalista e cientificista, a antiga gnosis reaparecerá secularizada e mitigada, diluída e descaracterizada em meio ao corpus cientifico de saberes instrumentais baseados no princípio da razão natural e suficiente. John Gray mesmo não escapou a este pré-conceito historicamente determinado que consiste em interpretar a gnosis antiga em chave empiricista, cientificista e darwinista:
Hoje em dia, muitas pessoas têm uma visão gnóstica do mundo sem se dar conta disso. Acreditando que os seres humanos podem ser plenamente compreendidos pelos termos do materialismo científico, rejeitam qualquer ideia de livre-arbítrio. Mas não poderiam abrir mõ da esperança de se assenhorar do próprio destino. Passaram então a acreditar que de algum modo a ciência permitirá à mente humana escapar das limitações que determinam sua condição natural. Em boa parte do mundo, e particularmente nos países ocidentais, a fé gnóstica de que o conhecimento pode proporcionar aos seres humanos uma liberdade fora do alcance de qualquer outra criatura tornou-se a religião dominante.[171]
Hoje em dia muitas pessoas têm uma visão naturalista, senão tecnocientífico, da gnose, sem se dar conta disso. “A fé gnóstica”, escreve o filósofo britânico, incorrendo numa flagrante contradictio in adjecto, que passa, provavelmente, pelo filtro do a-gnosticismo: neologismo cunhado pelo biólogo darwinista Thomas Henry Huxley (1825-1895), que acrescentaria o prefixo privativo à gnosis dos antigos gnósticos para definir, no debate na Sociedade Metafísica, em 1869, a sua posição filosófica.[172] Conceitual e praticamente, gnosis e episteme tem muito pouco ou nada em comum, além do fato de ambas poderem ser indistintamente traduzidas por “conhecimento”, ou “ciência”. Mesmo em se tratando particularmente da episteme, do conhecimento racional e demonstrativo, a concepção de ciência dos antigos (digamos, de Aristóteles) é radicalmente distinta da moderna. Gnosis seria antes na acepção clássica, uma “ciência” mistérica e esotérica acerca das realidades extramundanas, dir-se-ia “divinas” (para além do mundo sublunar, para recorrer uma vez mais a Aristóteles); portanto, “ciência” numa acepção nada moderna, nada científica, em absoluto materialista. Gnosis não é ciência natural, da natureza; idealmente, estaria mais para um conhecimento intuitivo e interior do “sobrenatural”, e, a julgar pelo dualismo gnóstico a postular a transcendência radical do Pleroma,[173] “suprateísta”. Recorrendo à máxima délfica endereçada a Sócrates (gnôthi seauton, “conhece-te a ti mesmo”), gnosis é uma forma muito peculiar de autoconhecimento pela experiência interior; nas palavras de Cioran, “uma dupla visão introspectiva que nos revela a vida da alma como um eu e como Deus. Nós nos refletimos nele e ele se reflete em nós.” É, portanto, uma “intuição direta e imediata”, “não progressiva”, do absoluto, ou seja, daquilo que há para além da existência mundana.[174] Trata-se antes de uma sabedoria perene e trans-histórica, em certo sentido metafísica, do que de uma ciência do mundo natural e do homem enquanto ser de natureza (ciências naturais, ciências humanas). O gnosticismo é, por princípio, um espiritualismo radical, para o qual o mundo da matéria (hylé em grego), domínio do demiurgo, é a totalidade do mal e, enquanto tal, do ponto de vista do pneuma, a esfera das falsas realidades: ilusão hipostasiada, fantasmagoria geradora de sofrimento. Por fim, e o que é mais importante, gnosis é autoconhecimento que opera uma transformação radical na estrutura cognitiva e ontológica daquele que é o seu experimentador-portador; e, à medida que o verdadeiro deus dos gnósticos é radicalmente transcendente, aparecendo à consciência como o mais puro nada, um abismo insondável e inefável, mais abismal que todos os abismos, poder-se-ia recorrer ao conceito de teosis, da mística ortodoxa, para dizer que a transformação ontológica que se opera no gnóstico é uma ateosis, resultando numa espécie de ateísmo místico que enxerga o mundo como a criação abandonada de um deus ausente. Por fim, gnosis é autoconhecimento que liberta, ainda que essa libertação provoque desespero, suscitando no conhecedor sentimentos como perturbação, desorientação e perdição. É o que está dito logo nos primeiros versos do Evangelho de Tomé:
Disse Jesus:
Aquele que procura,
continue sempre em busca
até que tenha encontrado;
e quando tiver encontrado,
sentir-se-á perturbado;
sentindo-se perturbado, ficará maravilhado,
e reinará sobre Tudo.[175]
Por fim, reiteremos que a gnose não configura uma cosmovisão e uma atitude de espírito melhoristas, perfectibilistas. É um equívoco, talvez proposital, tributário em grande medida do preconceito ortodoxo (católico, protestante) que atribui o descrédito da religião na modernidade a algo como uma conspiração subterrânea da heresia gnóstica no interior do Ocidente cristão. Não é outra a leitura de Eric Voegelin, e também a de um Olavo de Carvalho. Em se tratando de uma religião obcecada pelo Inimigo, que vê na traição, na perseguição e no martírio as provas maiores da sua verdade, a heresia é uma necessidade: uma sombra, um duplo, o outro em oposição ao qual ela se afirma, se o qual viveria eternamente numa crise de identidade. Estes autores, e John Gray incluído, veem na modernidade, em suas utopias e revoluções (até mesmo na reforma protestante!), um triunfo do antigo gnosticismo, ressuscitado e reabilitado através da aliança entre ciência e política. Não é essa, contudo, a interpretação de Cioran ou de Harold Bloom. A atitude gnóstica verdadeira invoca a ideia de fuga mundi, não pretendendo, nem julgando possível, corrigir ou aperfeiçoar uma criação apodrecida em sua raiz, desde os primeiros princípios. Por mais longe que avance, por mais que aspire a dominar a natureza, manipulando átomos e a estruturas genéticas, produzindo formas de vida artificiais, a razão científica sempre atuará no interior do mundo, de uma natureza dada. Gnosticismo implica, em grande medida, um pessimismo que é de natureza cosmológica e metafísica, supondo o reconhecimento de um mundo do qual se poderia afirmar, de uma vez por todas, o valor (negativo) de pessimum. O gnosticismo excede os limites filosóficos do puramente trágico para erigir, por cima da intuição trágica do acaso, uma afirmação (fatalista) do pior necessário.[176] Há um mundo constituído, uma “criação”, e nada pode fazer o homem para modificar a sua “estrutura”, a sua má “ordenação”, que não se limita a este mundo, mas recobre a infinitude do mundo celeste, marcado por uma necessidade imutável e aprisionadora (acosmismo gnóstico):
Mau ordenamento, mas ordenamento: o mundo está reunido (mal reunido), ele constitui uma “natureza” (má); e é precisamente na medida em que ele é um sistema que o filósofo pessimista poderá declará-lo tenebroso in aeterno, não suscetível de modificação ou melhora. Não somente o pessimista não acede ao tema do acaso, como ainda a negação do acaso é a chave-mestra de todo pessimismo, assim com a afirmação do acaso é aquela de todo pensamento trágico. O mundo do pessimista está constituído de uma vez por todas; donde a grande palavra do pessimista: “Não se escapa”. O mundo trágico não foi constituído; donde a grande questão trágica: “Aí não se entrará jamais.” O “pior” do qual fala a lógica pessimista não tem relações com o “pior” da lógica trágica: o primeiro designa um dado de fato, o segundo a impossibilidade prévia de todo dado (enquanto natureza constituída). Ou ainda, o pior pessimista designa uma lógica do mundo, o pior trágico, uma lógica do pensamento (descobrindo-se incapaz de pensar um mundo).[177]
Escritura e destino: as confissões de um “perito em anti-Criação”
Na vida do espírito, chega um momento em que a escritura, erigindo-se em princípio autônomo, torna-se destino. É então que o Verbo, tanto nas especulações filosóficas quanto nas produções literárias, revela o seu vigor e o seu nada.
A tentação de existir
Nem sempre perseguimos a Verdade; mas quando a procuramos com sede, com violência, odiamos tudo que é expressão, tudo que o que depende das palavras e das formas, todas as mentiras nobres, ainda mais afastadas do que é verdadeiro do que as vulgares.
A tentação de existir
O aspecto fundamental da obra de Cioran é a dualidade: aí, nenhum traço do Uno. Consideremos certas oposições como “o horror e o êxtase da vida”,[178] “desejo e horror da glória”, “eu e o mundo”,[179] melancolia e vulgaridade, profundidade e frivolidade, espírito e vida, existência e absoluto, entre tantas outras antinomias. Dualidade que se concretiza, aqui, como a expressão poética da condição humana, diagnosticada como problemática, disfuncional, aporética, maravilhosamente “antinatural”. O homem, para além ou aquém de toda abstração (Cioran fala sempre a partir de si, da própria existência e experiência de vida, quando discorre sobre o “homem”), é daqui e não é daqui, mundano e extramundano, histórico e trans-histórico; estrangeirismo/estranheza e familiaridade, pertencimento e não-pertencimento: eis a dualidade antropológica apresentada por Cioran, e que se pode remeter ao pensamento gnóstico. “O estrangeiro que não conhece os caminhos da terra estrangeira perambula por aí perdido; se ele aprende estes caminhos muito bem, esquece que é um estrangeiro e então se perde num sentido diferente, sucumbindo à sedução do mundo estranho (alien) e tornando-se separado (estranged) da sua origem. Torna-se então um ‘filho da casa’.”[180] Não deixa de ser o caso de Cioran, que sucumbiu à “tentação de existir”, que amou – contrariado – este mundo horrível.[181] Se há em sua obra tanta negação, tanto conflito, tanto sofrimento, é porque ele quis (quis?) mergulhar na experiência do mundo e do devir, experimentar com paixão as possibilidades e impossibilidades da existência, seus caminhos e descaminhos. Reafirmou incessantemente suas contradições, o seu fracasso paradoxal, triunfal. As suas paixões contraditórias o dilaceram entre a existência e o absoluto, o devir e a eternidade.[182]
A dualidade é a marca do pensamento de Cioran. Nenhuma obra parece, ao mesmo tempo, mais exibicionista e mais misteriosa do que esta: nela, através dela, o seu autor se revela e se oculta, joga com as aparências, com o claro-escuro, com as nuances entre luz e sombra, superfície e profundidade. Poderíamos proceder no sentido de separar o Cioran-em-si, que se oculta, furtivo, e o chamariz, o espantalho-Cioran: o homem e o personagem, com suas variadas personas, sua polifonia, o espírito-regente e o escritor-autômato[183], o “robô elegíaco”.[184] Enquanto o “Pai do logos”, para emprestar uma fórmula de Derrida, a partir do Fedro de Platão, Cioran segue dois caminhos opostos: um que conduz à expressão, à aparência, à superfície, à ação escritural e sua projeção no mundo, o outro em direção à penumbra, ao silêncio, ao repouso, ao recuo e ao fechamento em si, fora do tempo, ao esvanecimento. De onde o seu hamletismo, a sua hesitação entre ser e não-ser, verbo e silêncio, literatura e ascese. “Desfazer, descriar, é a única tarefa a que o homem se pode dedicar, se ele aspira, como tudo indica, a distinguir-se do Criador.”[185] Cioran sente-se inclinado à ascese mística e ao heroísmo que é típico do artista moderno, na linha de Baudelaire; atraído pela libertação mediante uma disciplina da esterilidade e pelo engajamento nas Letras, pelo desprendimento em relação ao eu e pelo apego a um destino. A sua inclinação ascética sabota o seu talento de escritor; sua vocação artística contradiz suas aspirações espirituais, suas pretensões de sabedoria. Abandona-se, então, ao mundo, deixa-se aí escrevendo para retirar-se aos aposentos do espírito.
Mas o paradoxo quer que o aprofundamento interior conduza para fora de si, ao exterior, de onde a escritura; a uma outra exterioridade, o fora para dentro; a linguagem envelopa o silêncio, o silêncio trai o resíduo linguístico, o fundo verbal, de tudo o que se pretende essencial. Ao ruído externo, do mundo, sucede-se então um ruído interior, inaudito. A exemplo da sentença de Heráclito: “A rota para cima e para baixo é uma e a mesma”;[186] Os traços da escritura se fazem imprimir na vida do espírito, assim como a busca do espírito, a contemplação do Essencial, se faz refletir na exterioridade da escritura, na textura do texto. É a mescla impura do essencial e do inessencial que entra tanto na vida do espírito quanto na economia da escritura. O resultado dessa dupla condição, dessa hibridez entre o essencial e o inessencial, desse duplo movimento, centrífugo e centrípeto, endotrópico e exotrópico, é uma obra como fruto de uma criação negativa, negação criadora, subproduto de uma escrita terapêutica em forma de désœuvrement. Obra de um autor cuja identidade, caso seja lícito admitir a sua existência, permanece em grande medida obscura, reticente, desconhecida e incognoscível. Cioran faria suas as palavras de Rimbaud: “Eu é um outro”, e mais ainda aquelas outras, proferidas por Ulisses em resposta ao ciclope que lhe perguntava o seu nome: “Meu nome é Ninguém”.
A atitude gnóstica, extensiva e intensivamente analisada por Hans Jonas, se deixa apreender, de forma paradoxal, tanto na obra quanto na vida de Cioran, em sua junção e disjunção, em sua unidade sempre dual. Por um lado, a busca da expressão, o apelo ao sentido (e aos sentidos), à sensualidade estética da escritura, o manejo das aparências; por outro, a aspiração a uma saúde ideal, à salvação no interior do ser “tão puro quanto o vazio”,[187] a paixão mística – e a nostalgia que a inaugura – de um absoluto fora do mundo, do tempo, da linguagem, da verdade para além das palavras e das formas, contra tudo o que é aparência, ilusão, ou seja, a totalidade do mundo existente. Os silêncios e pontos de suspensão que se interpõem na sua obra fragmentária são os ecos, os rastros dessa busca vertical, ao qual a linguagem se impõe como um obstáculo, e o seu ruído, ruído também do mundo, um fator de desvio e de divertimento (divértissement) no caminho dessa meta espiritual. “Escrever é o ato menos ascético que existe”:[188] uma terapêutica sim, mas em absoluto uma ascética; escrever é um paliativo, um sucedâneo, um compensador da “fragilidade de nossas relações com o absoluto”, do fracasso de nossas aspirações mais profundas, e, por isso mesmo, até que se prove o contrário, irrealizáveis. A escritura, observa mais uma vez Jaudeau, “persiste como traço, desmente suas intenções, afirma o seu caráter excedentário. Dá também o testemunho da maldição do ser, não pelo seu conteúdo, mas por sua própria existência, por sua obstinação em produzir efeitos quando o seu criador já se desligou dela. Ela revela, pelo excesso do ser sobre o sentido, aquilo que numa perspectiva gnóstica se chama o mal.”[189]
Esta excrescência do ser, associada por Jaudeau ao mal pela ótica gnóstica, corresponde ao excesso negativo de uma lucidez que só reconhece o vazio como única (ir)realidade: em todo caso, como fonte de libertação, purificação, remédio eficaz contra o mal de existir. A obra de Cioran suscita, aqui, um caso de consciência notável: a consciência como dilaceramento, crise do vivente, a consciência como “fissura (fêlure) do ser”.[190] Uma vez mais, essa dualidade fundante atravessa toda a obra autobiográfica de Cioran: o “estrangeiro” caído e alienado no tempo, o “fracassado”, o “réprobo”, “filho da casa” (Jonas) – figuras que descrevem o gnóstico enquanto artista, criador, pequeno demiurgo; por outro lado, o místico, o homem interior, em seu princípio intemporal e indestrutível – eis o gnóstico não como “filho da casa”, mas como mero “visitante”, “hóspede” temporário em um mundo ao qual ele não pertence. Esta dualidade se reflete na ambivalência do pensamento de Cioran acerca de Adão. Cioran é pró e contra a causa de Adão: por um lado, amaldiçoa, “anatematiza” o “promotor de nossa raça”,[191] por – a exemplo de Prometeu – ter-nos condenado ao destino histórico e ao fardo da consciência; por outro lado, exalta e celebra Adão, felicita-se dele, pois sem “o velho homem” (le viel homme) não disporíamos de nossa atávica imperfeição, demasiado humana, dessa pletora de vícios e taras que é, segundo Cioran, a matéria-prima da filosofia, da literatura e das artes. Só se cria a partir da queda; esta ideia – o reconhecimento da importância do velho homem, decaído – fica clara na seguinte anotação, extraída dos Cahiers:
Combati todas as minhas paixões e tentei permanecer ainda escritor. Mas isto é quase impossível, pois um escritor só é tal à medida que salvaguarda e cultiva suas paixões, que as excita e exagera. Escreve-se com as próprias impurezas, com os próprios conflitos não resolvidos, defeitos, ressentimentos, restos… adâmicos. Só se é escritor porque não se venceu o velho homem. Que digo? O escritor é o triunfo do velho homem, das velhas taras da humanidade; é o homem antes da Redenção. Para o escritor, o Redentor ainda não veio, efetivamente; ou a sua redenção não surtiu efeito. O escritor se felicita do erro de Adão e só prospera à medida que cada um de nós a renova e a toma para si. É a humanidade tarada em sua essência o que constitui a matéria de toda obra. Só se cria a partir da Queda.[192]
Uma vez mais, escrever é a atividade menos ascética que há. Talvez aí, na relação entre queda, não-redenção, e criação literária, encontremos uma explicação possível para o fato surpreendente de que os grandes místicos produziram tanto, tendo deixado um tão grande número de tratados. “Pensavam certamente celebrar neles Deus e nada mais”, mas isso é “apenas em parte” verdadeiro, desconfia Cioran, pois “não se cria uma obra sem que a ela fiquemos presos, sem que ela nos escravize.” Se desejassem dedicar-se a Deus única e exclusivamente, ter-se-iam contentado com uma disciplina de esterilidade, não se entregariam a uma licenciosidade tal, pois “não há salvação possível fora da imitação do silêncio. Mas nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozoides verbosos, estamos quimicamente ligados à Palavra.”[193] Ora, se inclusive os mais edificantes dos escritos místicos não escapam ao caráter vicioso do “velho homem”, submetidos à condição adâmica anterior à redenção, a pars destruens – a dimensão crítica, negativa, demolidora – da obra de Cioran corresponde “velho homem” não mais do que aquela que poderíamos apontar (a exemplo dos últimos parágrafos de História e utopia, entre outras passagens) como sendo a pars construens da mesma, sua dimensão propositiva, afirmativa, aprobatória, etc. Não importa o teor de um escrito, e as intenções que o fundamentam, produzir é reafirmar-se como réprobo, entregar-se à vaidade associada a uma obra, condescender a fazer um nome e um destino, é ser cúmplice do demiurgo e participante ativo em sua criação, desempenhar um papel, aspirar a ser alguém, jogar o jogo…
A obra de Cioran, nunca é demasiado reafirmá-lo, é uma “soma de atitudes” sem nenhuma preocupação de unidade. Esta divisa de uma obra fragmentária, concebida como anti-sistema, se dá a conhecer na ambivalência do seu autor em relação à figura arquetípica de Adão: pró e contra. Estranha atitude, a do escritor que não se felicita do erro de Adão senão para, logo em seguida, condená-lo por ter-nos feito dependentes do pharmakon da linguagem. Não podemos nos esquecer que, ao menos desde Platãp, o pharmakon é tanto remédio quanto veneno: dependendo de como é preparado e administrado, pode curar ou tornar doente, salvar ou matar. Assim também a escritura, que não escapa, ela mesma, a essa ambivalência irredutível: ao mesmo tempo terapêutica e vício, tranquilizante e inquietante, princípio de purificação (katharsis) e adensadora de impurezas. Por esta ótica, pode-se compreender a tarefa do escritor adâmico, esse artista da Queda, pelas palavras alemãs que designam a poesia e o poeta: Dichtung e Dichter, ou seja, “adensamento” e “densificador” (sic; isto é, aquele que adensa); escrever é adensar – a realidade, o ser, o mundo, as aparências. O artista se ocupa de ilusões, ficções, mentiras em todo caso; ele as adensa, multiplica-as, graças às virtudes teúrgicas da linguagem, e com isso se mantém a meio-caminho, equidistante do Essencial e do inessencial, nessa zona cinzenta intermediária que configura o habitat do ser-aí em sua domesticidade.
É notável como o gênero da autobiografia em Cioran resvala na teologia. Não surpreende, pois, afinal de contas, “pode-se falar honestamente de outra coisa além de Deus ou de si mesmo?”[194] Ademais, conforme se lê em Lacrimi şi sfinţi, “toda versão de Deus é autobiográfica”, e o que a imagem do divino revela sobre o nosso autor é a impureza, a dualidade, sem a qual um homem ou um deus se mostra desprovido de toda profundidade, de todo mistério.[195] Trata-se aqui de uma teologia ateia, própria de um “teólogo incroyant [descrente]”.[196] Este que se pretende o último dos bogomilos conceberá então uma “teologia sumária” – um requisitório da criatura contra o seu criador –, dedicando-se a “deteriorar seu edifício, para tornar ainda mais miserável uma obra já comprometida desde seu início.” Sem dúvida, pondera ele, hesitando por alguns instantes, “seria mais sensato e mais elegante não tocar nela, deixa-la tal e qual, não vingar-nos nela das incapacidades de seu Criador; mas como ele nos transmitiu seus defeitos, não temos por que ter consideração com Ele.”[197] Esta acusação lançada ao alto será retomada em Le mauvais démiurge: “Como todos nós cremos que nossos méritos são desconhecidos ou pisoteados, como admitir que uma iniquidade tão geral seja obra exclusiva do homem? Ela deve remontar mais alto, e confundir-se com alguma tramoia antiga, com o ato mesmo da criação.”[198]
“O universo não se discute; se exprime”,[199] e caberá a ao artista exprimi-lo, mimetizá-lo, dar voz e corpo – mediante uma “demiurgia verbal” – às suas palpitações e convulsões, a “suas oscilações, suas dissonâncias, suas veemências amargas ou alegres.”[200] “Neste mundo nada está em seu lugar, começando pelo próprio mundo”, e terminando por aquele que se entrega ao trabalho da escritura; eis o que a poética cioraniana pretende comunicar, assumindo que “todo ato é apenas um caso especial, aparentemente organizado, do caos original.”[201] A natureza da criação poética, tal como a concebe Cioran, é iluminada pela seguinte passagem, extraída de Amurgul gândurilor:
A necessidade de provar uma afirmação, de buscar argumentos por toda parte, supõe uma anemia do espírito, uma incerteza da inteligência e da pessoa em geral. Quando um pensamento nos invade com força e violência, surge da substância da nossa existência; prová-lo, cercá-lo com argumentos, equivale a enfraquecê-lo e a duvidar de nós mesmos. Um poeta ou um profeta não demonstram nada, pois o seu pensamento é o seu ser; a ideia não se distingue de sua existência. O método e o sistema são a morte do espírito. Deus mesmo pensa por fragmentos: mas em fragmentos absolutos.
Cada vez que se tenta provar uma coisa, situa-se fora do pensamento, ao lado dele, não acima. Os filósofos vivem paralelamente às suas ideias; seguem-nas, pacientes e sábios, e se calha de as encontrarem, não estão nunca dentro delas.
Como pode-se falar do sofrimento, da imortalidade, do céu e do deserto, sem ser sofrimento, imortalidade, céu e deserto?
Um pensador deve ser tudo aquilo que diz. Aprende-se isto dos poetas, e das volúpias e dores que se experimenta vivendo.[202]
Cioran emula Deus, pensando por fragmentos; fala do caos original, da decomposição, do nada, do que quer que seja, sendo caos original, decomposição, nada, o que quer que seja… Mantém-se fiel – custe o que custar, até as últimas consequências – ao princípio de que “um pensador deve ser tudo aquilo que diz”, confundindo-se, para o bem ou para o mal, com o nada de uma obra que aspira a suplantar a totalidade do universo. Mas o drama do criador é que a sua criação termina por voltar-se contra ele; e o paradoxo, a confusão entre os elementos, a transgressão de toda hierarquia e de todo limite, a inversão entre o acima e o abaixo, o dentro e o fora – o pandemônio. De onde o sentimento inevitável do fracasso, essa angústia metafísica proveniente da
condição de um artesão sumamente escrupuloso, cujo objeto não seria outro senão o ser. De tanto analisar, chega à impossibilidade de compor, de terminar uma miniatura de universo. O artista que abandona seu poema, exasperado pela indigência das palavras, prefigura o mal-estar do espírito descontente no conjunto do existente. A incapacidade de alinhar os elementos – tão desprovidos de sentido e de sabor como as palavras que os expressam – leva à revelação do vazio. Por isso o versificador retira-se ao silêncio ou aos artifícios impenetráveis. Ante o universo, o espírito demasiado exigente sofre uma derrota semelhante à de Mallarmé frente à arte. É o pânico ante um objeto que não é mais um objeto, que não se pode mais manejar, pois – idealmente – ultrapassaram-se seus limites.[203]
Podendo-se dizer do criador deste mundo que é um “mau demiurgo”, um ilusionista e um enganador, o poietes cioraniano se lança com volúpia à missão de rivalizar com ele: “perito em anti-Criação”, esse demiurgo-poeta opera no sentido de instaurar um “equívoco universal”,[204] adensando e aprofundando a confusão instaurada desde o primeiro ato da criação. Não se trata, portanto, de um processo dialético de aproximação à verdade, do desvelamento progressivo de um ser oculto ou esquecido (a-letheia, palavra grega que designa a verdade, literalmente “não-esquecimento”), mas de uma concorrência no adensamento dos equívocos e das contradições, da confusão, da fragmentação e do caos original instaurados desde o início dos tempos. “Demiurgia verbal” como trabalho de confecção e urdidura de apate, “ilusão”, o que coloca Cioran nas antípodas da dialética platônica e da tradição metafísica que dela deriva, desembocando na moderna fenomenologia, e o insere na tradição de sofistas e poetas cujo expediente lógico-discursivo não obedece a uma suposta ordem efetiva do(s) ser(es) na sua relação com a linguagem, as palavras e as proposições (onto-logia), mas uma lógica declaradamente ficcional do dizer, uma logo-logia segundo a qual o discurso não corrobora um mundo exterior e independente do discurso, comemorando-o, mas antes é o discurso que faz o ser, que o fabrica; o ser como um efeito do dizer e, portanto, uma discursividade eminentemente performativa, “demiúrgica”, que fabrica o mundo e faz com que advenha.[205] Tal é a compreensão da relação entre linguagem e mundo que fundamenta a obra de Cioran, esse “sofista das literatura”.[206] “As coisas que tocamos e as que concebemos são tão improváveis quanto nossos sentidos e nossa razão; só estamos seguros em nosso universo verbal, manobrável a nosso bel-prazer, e ineficaz. O ser é mundo e o espírito, tagarela. Isso se chama conhecer”, lê-se no Breviário de decomposição. E no ensaio intitulado “Demiurgia verbal”, isto fica ainda mais claro:
O mal-estar que a linguagem suscita em nós em nada difere do que o real nos inspira; o vazio que entrevemos no fundo das palavras evoca o que colhemos no fundo das coisas: duas percepções, duas experiências em que se opera a distinção entre objetos e símbolos, entre a realidade e os signos. No acto poético, esta disjunção assume o aspecto de uma ruptura. Arrancando-se por instinto às significações estabelecidas, ao universo herdado e às palavras transmitidas, o poeta, em busca de uma outra ordem, lança um desafio ao nada da evidência, à óptica do tal e qual. Empenha-se na demiurgia verbal.
Imaginemos um mundo onde a Verdade, enfim descoberta, se impusesse a todos, em que, triunfante, esmagasse o feitiço da aproximação e do possível. A poesia seria, nesse mundo, inconcebível. Mas como, para sua felicidade, as nossas verdades mal se distinguem das ficções, a poesia não é obrigada a subscrevê-las. Assim, formará um universo próprio, tão verdadeiro e tão falso como o nosso.[207]
Não que Cioran seja um poeta stricto sensu, e que a sua obra deva ser lida e entendida como pura poesia. Sem nenhuma intenção de estabelecer divisões rígidas, de compartimentalizar os saberes e os gêneros de produção do espírito, deve-se ter em mente que Cioran é, antes de tudo, um pensador (um Privat Denker, como ele se define) e, à sua maneira, um filósofo. Mais do que um filósofo existencial, e para além de todo ceticismo, é também um metafísico, no que concerne ao alcance de suas ideias. Enquanto tal, ele especula sobre a natureza do mundo, do ser humano e do ser enquanto tal, sobre o fundamento e a finalidade da existência, ainda que chegue à conclusão de que não há nenhum fundamento e nenhuma finalidade, de onde o sem-sentido, o absurdo da existência. A dimensão metafísica do seu pensamento sugere um realismo que contradiz a pura “demiurgia”, enquanto discurso performativo que fabrica o mundo: há um fora, um mundo dado, seres que o habitam… Em todo caso, a poesia, como ademais a música, representa para esse “parasita dos poetas”[208] um modelo de linguagem não conceitual. Cioran é um ensaísta, um aforista e um fragmentista, e a função poética concorre, na economia destes gêneros, para imprimir um ritmo, uma musicalidade, um estilo que são como as impressões digitais, a marca pessoal daquele que escreve. Talvez seja correto afirmar que, uma vez abandonando o seu idioma materno e adotando o francês definitivamente como língua de expressão, a obra de Cioran descreve um movimento de fuga de toda ontologia forte, em direção a um discurso mais acentuadamente “logológico”, por assim dizer. Não obstante, cada livro é um livro, cada aforismo ou fragmento exprime uma experiência particular, e não se pode afirmar em absoluto que essa ruptura com uma determinada ordem do real seja definitiva. O que parece menos questionável é a manutenção do sentido autobiográfico, autorreferencial, confessional mesmo, de uma obra que se pretende radicalmente ancorada na experiência de vida do seu autor (ademais, pouco preocupado com as normas de objetividade). Voltemos à epigrafe deste ensaio, que diz que “a verdade reside no drama individual” e que “a única maneira de nos encaminhar ao universal é ocupando-nos unicamente do que nos concerne.” O verdadeiro, segundo Cioran, é da ordem do subjetivo, é o que é mais eu mesmo, o mais íntimo de mim. Neste sentido, os seres, os objetos e acontecimentos tematizados no conjunto da sua obra têm um papel secundário, coadjuvante, são pretextos para debruçar-se sobre si, desvios pelos quais aquele que pensa e escreve pretende reconduzir-se a si mesmo. Buscando alguma passagem que elucide a significação pessoal (confessional, autobiográfica), bem como a função terapêutica, que tem para Cioran o trabalho da escritura, não encontro nada mais oportuno do que a “Confissão resumida” ao final de Exercícios de admiração:
Escrever é uma provocação, uma visão felizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre de sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnifica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. Nada mais miserável do que a palavra e, no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agentes de um êxtase invertido… Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!
Escrever é um vício de que podemos cansar-nos. Na verdade, escrevo cada vez menos e acabarei sem dúvida não escrevendo mais, por já não achar a menor graça neste combate com os outros e comigo mesmo.
Quando nos dedicamos a um assunto, qualquer que seja, experimentamos um sentimento de plenitude acompanhado de uma ponta de arrogância. Fenômeno mais estranho ainda: essa sensação de superioridade quando evocamos um personagem que admiramos. No meio de uma frase, com que facilidade nos consideramos o centro do mundo! Escrever e venerar não andam juntos: quer se queira ou não, falar de Deus é olhá-lo do alto. A escrita é a desforra da criatura e sua resposta a uma Criação sabotada.[209]
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[…] são de natureza eminentemente autobiográfica (uma “canção do eu”, para falar como Harold Bloom), dir-se-ia confessional, na linha das Confissões, de Agostinho a […]
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