“Ensaio herético sobre a atualidade da gnose” (Otávio Velho)

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 34-52, jun. 1998

Resumo: O objetivo desta comunicação é sugerir o interesse para os estudiosos da religião em examinar a hipótese da atualidade da gnose (ou do gnosticismo) a partir de recentes trabalhos do escritor Harold Bloom. Ao mesmo tempo, trata de colocar as possibilidades levantadas pela obra desse autor em confronto com os trabalhos de outros autores, algumas questões do pensamento contemporâneo e os estudos recentes de “novos movimentos religiosos”, que permitem pensar novos desdobramentos ou reformulações.
Palavras-chave: gnose, Harold Bloom, movimentos religiosos, religião.

Abstract: The objective of this paper is to suggest the interest students of religion have in examining the hypothesis of the present relevance of gnosis (and of gnosticism) based on the recent works of the writer Harold Bloom. At the same time, we look at the possibilities raised by this author’s work in confrontation with the works of other authors, some questions from contemporary thought and recent studies on “new religious movements” which permit us to consider new developments or reformulations.
Keywords: gnosis, Harold Bloom, religion, religious movements.

Aula inaugural do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), proferida em 23 de março de 1998. Agradeço a Carlos Alberto Afonso, Clara Mafra e Stela Abreu pelos comentários feitos a versões anteriores deste texto.

Some have the knowledge of the exile, while most do not…
The combat is with ignorance and not with sin. … But the battle is
endless, and even the spark that has answered the call cannot go
home to freedom until all the systems and spaces are destroyed.
The Flight to Lucifer

Eis a notícia, já não tão nova: o consagrado e prolífico scholar de Yale, Harold Bloom, autor de trabalhos sobre Shakespeare, Shelley, Blake, Yeats e Wallace Stevens, passou da crítica literária para o que chama de “crítica religiosa”, que se preocuparia com a operação da imaginação religiosa. E, depois de ter se ocupado de uma discussão ainda literária sobre a Cabala, como também sobre a constituição da Bíblia, nos seus últimos livros (Bloom, 1992; 1997) centra-se na questão da atualidade da gnose, que antes abordara na forma de uma ficção científica alegórica (Bloom, 1980). Gnose em que, justamente, o “imaginai” ganha um reconhecimento explícito. Bloom não é o primeiro a apontar para a atualidade da gnose (ver, por exemplo, Filoramo, 1992 e Favre, 1996). Mas, talvez o faça com um talento literário, um envolvimento pessoal e – por que não? – uma autoridade oriunda de uma respeitabilidade adquirida, que emprestam ao seu trabalho uma força e um impacto particulares, que permitem sair do gueto dos especialistas e, até, retroalimentar e confirmar a sua tese. Ao mesmo tempo, evidentemente, abre-se à crítica dos especialistas, já que a sua ousadia, seguidamente, traduz-se num desrespeito aos cânones estabelecidos. Neste texto, pretendo, apenas, informar sucintamente sobre alguns aspectos desse trabalho e chamar a atenção para certos desenvolvimentos e reformulações possíveis a partir da sua confrontação com certas questões do pensamento contemporâneo e outras informações disponíveis.

Um dos aspectos inovadores e pouco ortodoxos da visão que Bloom apresenta da gnose no mundo contemporâneo vem de que ele não está particularmente interessado na gnose explícita e organizada e, sim, em suas manifestações difusas, por vezes desconhecedoras de si mesmas, quase manifestações de um “espírito de época” (Velho, 1997), permeando, mesmo, as experiências religiosas no interior das instituições religiosas tradicionais. E o locus principal dessas manifestações seria a “Religião americana”, contraposta à religião européia, mas com reconhecido poder de disseminação. Batistas, mórmons e pentecostais estão entre os grupos que cita. A New Age e os orientalismos também apresentariam manifestações gnósticas, mesmo que em forma de paródia. Mas uma característica marcante da gnose contemporânea, perturbadora para os tradicionalistas, seria, justamente, uma tendência a deixar de ser uma religião de elites, uma espécie de contracultura, para massificar-se; o que, no caso do Cristianismo, por exemplo, abriria a possibilidade de pela primeira vez a gnose não ser derrotada pela fé ortodoxa. Por isso mesmo, é que o seu interesse não está centrado nas “seitas”; embora, creia eu, talvez devêssemos fazer notar o significado destas enquanto representantes “sacrificiais”, vanguardistas dessa e de outras tendências. De qualquer forma, na medida que a gnose carrega a possibilidade de manifestar-se nas mais diversas religiosidades (como seria o caso, particularmente, do sufismo no Irã e da Cabala no judaísmo, além dos casos orientais e dos xamanismos em sentido lato), é como se estivéssemos diante da possibilidade de um heterodoxo ecumenismo, uma capacidade de comunicação muito atual, atravessando diversas “denominações”.

Outro elemento importante e original da leitura que Bloom faz da gnose e que abre insuspeitadas perspectivas está no fato de não considerar o dualismo como sua pedra de toque. Aliás, para ele, nem sequer no caso do Zoroastrianismo tal se daria, especulando que precisamente a influência da angelologia iraniana é que poderia ter feito com que na Bíblia hebraica não houvesse um princípio do mal independente, Lúcifer constituindo-se muito mais num promotor (em nome de Deus) do que num perseguidor. Diante das versões usuais, isto é bastante provocador e polêmico. Estará Bloom “inventando” uma gnose? Se o estiver, talvez possa justificar-se pelo fato de com isso não mais estar fazendo do que se incorporando ao desenvolvimento de uma narrativa ainda em aberto, fi el ao princípio derivável da própria gnose de que conhecimento e transformação estão associados. Seria algo assim como na ficção científica, onde o próprio futuro, sempre e necessariamente, “já não é o mesmo”, sendo coetâneo de todos os presentes. The Flight to Lucifer, a sua fantasia gnóstica, é, aliás, uma brilhante demonstração da intimidade que adquiriu com a linguagem da gnose.

Mas Bloom também poderia se justificar pelo fato de que, segundo ele mesmo, além de outros autores, a noção que herdamos de gnosticismo (tal como, mais certamente ainda, a noção de religião e a de teodicéia) pode ser considerada moderna (Bloom, 1997, p. 185; Meeks, 1993, p. 85). Diante dele, não restaria outra alternativa senão negar a sua plausibilidade in totum ou aceitar que a sua. “essência” seja aquilo que o olhar de cada época enxerga, esta arbitrariedade servindo, se mais não seja, para revelar o carácter igualmente arbitrário e especulativo das construções anteriores, reificações feitas a partir de elementos díspares às quais, apenas, já estamos mais acostumados. Significativamente, Giovanni Filoramo (1992, p. 151, 165-166), de modo independente, a propósito da inclusão por parte de Hans Jonas do herege Marcion do segundo século da era comum como gnóstico, também expressa a sua discordância em considerar o anticosmismo (associado ao dualismo e ao distanciamento da divindade em relação à criação do nosso cosmos) como a essência do gnosticismo, preferindo ver a essência do mito gnóstico como sendo o encontro com o self na tentativa de reconstrução da unidade andrógina original. E Gershom Scholem, o grande pensador judeu, considerava a própria Cabala como sendo, basicamente, um fenômeno gnóstico. Nisso estão de acordo grosso modo, embora não todos, diversos outros especialistas, mesmo quando varie a opinião quanto à influência sobre a Cabala de um gnosticismo não judeu, acentuado por Scholem, em contraste com uma suposta origem judaica do gnosticismo (Idel, 1988). Scholem (1991, p. 34-35) também não acreditava na necessidade do dualismo na caracterização da gnose: haveria uma gnose judaica monoteísta no primeiro século, que só no século seguinte evoluiria, entre certos grupos, na direção do dualismo… [PDF]

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