Alea, vol.9 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2007
RESUMO: O ensaio procura indicar o método baudelairiano das antíteses de coisas e acontecimentos, de tal forma que o maniqueísmo progressista da dialética hegeliano-marxista é substituído pelo homo duplex pascaliano, e o conceito de ação política e arte engajada é reformulado.
Palavras-chave: Baudelaire; Benjamin; poesia; revolução.
ABSTRACT: The essay attempts to characterize Baudelaire’s method of promoting antitheses between things and events, in such a way that the progressive Manichaeism of Hegelian-Marxist dialectics is replaced by the homo duplex of Pascal, leading to a reformulation of the concept of political action and committed art.
Key words: Baudelaire; Benjamin; poetry; revolution
RÉSUMÉ: L’essai cherche à indiquer la méthode baudelairienne des antithèses des choses et des événements, si bien que le manichéisme progressiste de la dilectique hégéliano-marxiste est remplacé par le homo duplex pascalien et que le concept d’action politique et art engagé est reformulé.
Mots-clés: Baudelaire; Benjamin; poésie; révolution
“Desaparecimento dos vestígios do pecado original”, a modernidade não é desencantamento psíquico e da cultura, mas o tempo que nela reina soberano: o tédio. Em “O Quarto Duplo”, Baudelaire destitui o sujeito de suas prerrogativas clássicas de autor do sentido do mundo, quando a consciência garantia voz de comando sobre toda Natureza e sobre os homens. Personalizando o Tempo, ao grafá-lo em maiúscula, o poeta desfaz a harmonia interior, a intimidade do quarto, os objetos tornados parciais e autônomos com respeito uns aos outros, replicando o que se passa com o próprio Eu que perde permanência, constância e identidade. Assim, cabe ao Sujeito exercer os “cuidados de si”, abjurando a tutela da religião e da ciência, renunciando à ambição de realizar uma “verdade do Eu”: “O homem moderno, para Baudelaire, não é alguém que vai em busca de si mesmo, de seus segredos e de sua esquiva verdade; é alguém que procura inventar-se a si mesmo. Esta modernidade não libera ‘o homem em seu próprio ser’, mas o constrange a enfrentar a tarefa de se produzir a si mesmo.” Na modernidade, produzir-se a si mesmo significa movimentar-se em meio a um mundo em huis clos – o tempo espacializado dos cronômetros e relógios. Associado ao recinto fechado do quarto, o tédio é a intrusão violenta – em um refúgio que deveria ser acolhedor, tranqüilizante e protetor – do “princípio de realidade” moderno: a universalização fetichista do dinheiro que domina todas as esferas da vida e o espírito protocolar e burocrático que o acompanha. Por isso, a “infame concubina”, o “meirinho”, o “oficial do cartório” são sua perfeita tradução.
Em “O Quarto Duplo”, a enumeração das partes do Eu e dos objetos nesse intérieur perverso, desfaz o cosmos e, acentuando a desordem, introduz nele o caos. O que se desenrola na interioridade – do quarto, do Sujeito – é o duplo do mundo externo, cujo horror é o de um “universo morno num horizonte plúmbeo”, com a “fria crueldade de um sol que congela.”, como em “De Profundis Clamavi”: “…por seis meses um morno sol dissolve a bruma,/ E durante outros seis a noite cobre o solo;/ É um país bem mais nu
do que o desnudo pólo/ – Nem bestas, nem regatos, nem floresta alguma!/ Não há no mundo horror que comparar se possa/ À luz perversa desse sol que o gelo acossa/ E à noite imensa que no velho Caos se abriu; Invejo a sorte do animal mais vil,/ Capaz de mergulhar num sono que o enregela,/ Enquanto o Dédalo do tempo se enovela.” O tédio é deserto demoníaco e caos.
Para tratar das transformações sociais e culturais do capitalismo e da cidade de Paris, Baudelaire as entende segundo uma “teologia do inferno”, a modernidade sendo a “queda de Deus”. Não se trata de cisões de dois mundos – céu e inferno – pois esta separação é conseqüência da cultura dualista da qual Deus é o criador, cultura que polariza bem e mal, matéria e espírito, corpo e alma, Deus e Satã. Neste sentido, Baudelaire anota: “A Teologia. O que é a queda? Se é a unidade que se tornou dualidade, foi Deus quem caiu. Em outros termos, não seria a criação a queda de Deus?” Colocando-se acima da cultura dualista, responsável pelo tédio que aflige o mundo moderno, o Poeta e o “dândi revolucionário” surgem por “decreto das potências supremas”, sendo seu dever denunciar a falsidade dos valores sobre os quais essa vida se funda. Operando por antíteses, Baudelaire propõe: “a lei dos contrastes […] governa a ordem moral e a ordem natural (physique)”, por isso há, no homem, “duas postulações simultâneas”, “uma na direção de Deus, outra na de Satã.” E no Poeta, dois sentimentos contraditórios, “o horror da vida e o êxtase da vida”, sendo que esta é “sonho e consciência”, “spleen e ideal”. Na senda de Baudelaire, Benjamin reconhece no capitalismo triunfante um torpor mítico que se abateu sobre o século, o Capital do qual Paris é a capital, é sonho em estado de vigília e, para compreendê-lo, Benjamin reúne o cenário político seiscentista de seu Drama Barroco Alemão do Século XVII ao das arcadas de Paris das Passagens, e indica seu ponto de encontro: “comum a ambos, o tema: teologia do inferno. Alegoria, publicidade, tipos: mártir, tirano-prostituta, especulador”. Mundo dos duplos invertidos – o tirano que é mártir, o mártir, tirano, a prostituta é especulador, o explorado, explorador. Universo dos paradoxos baudelairianos, à modernidade falta um “princípio de razão suficiente”, segundo a fórmula leibniziana que tudo tem fundamento, “nihil est sine ratione”.
Com efeito, entre os séculos XVI e XVII, o Tempo moderno significou o fim do cosmos fechado grego e da transcendência medieval, com o advento do universo infinito. Assim, a physis grega que possuía suas próprias razões imanentes de vir a ser e se transformar, de crescer e desaparecer, era o princípio governado pela “medida prudente e sábia”. A representação antiga de um cosmos finito fazia da natureza norma e limite, a harmonia em que residem leis de funcionamento do mundo e do homem. Ordem estruturante e perfeita, a physis não concorre com os humanos, sua sacralidade preservada por desconhecerem qualquer desejo de ultrapassamento da permanência imutável das coisas. O infinito, ao contrário da “bela Totalidade”, era o ápeiron, o “indefinido”, o inacabado. Na Física, por exemplo, Aristóteles observava ser o infinito imperfeito; o finito o terminado, o acabado, o completo. Deste modo, o que as filosofias do progresso denominaram civilizações tradicionais refere-se a sua defesa, através de um tempo circular, necessário, com respeito à história. Quanto ao tempo meta-histórico da Idade Média, os acontecimentos se inscreviam na história da salvação, e, por isso, consistiu em um período litúrgico, ao qual importa o que perdura e não o que passa. Se a compreensão religiosa grega e a escatológica cristã dos fins últimos da vida e do universo – em que são limitados os horizontes de expectativa, o futuro vinculando-se ao passado – não previnem essas sociedades de disfunções e conflitos, elas não apresentam, porém, um mal-estar próprio à modernidade: “o tédio e o vazio de sentido não parecem ter sido um problema maior para essas sociedades.” O tédio é contemporâneo da filosofia do progresso, do pensamento que baniu milagres da Bíblia, mas também, em conseqüência das transformações culturais e da visão de mundo mecanicista de estilo cartesiano, desvalorizou as coisas criadas, silenciando a natura loquax, instituindo o reino de objetos mortos e regras arbitrárias em um mundo sem esperança de salvação. A modernidade, domínio das mercadorias e do capital, estabeleceu uma Erstaz da fé, os milagres morais do processo histórico… [PDF]