Philosophica, 34, Lisboa, 2009, pp. 439-457.
Transcender Deus, transcender o transcendente, como supremo cumprimento da mais perfeita vida religiosa? Pretendemos compreender o sentido desta proposta em dois dos autores que mais explicitamente a formularam – Mestre Eckhart e Angelus Silesius – e ponderar como ela, ao desvelar uma instância não só a-teológica, mas também a-teia, no imo do Infinito e da sua mais radical experiência espiritual, habitualmente designada como “mística”, configura uma “morte de Deus” muito anterior ao multiforme aparecimento do tema na reflexão teológico-filosófica ocidental.
Cabe todavia notar que a formulação ousada e explícita de Eckhart e Silesius se inscreve e prenuncia numa tradição, a Ocidente a neoplatónica, que pensa a partir de e para esse “arrebatamento” sem o qual, como recentemente recorda Peter Sloterdijk, “não há filosofia primeira nenhuma”, pois “o cume da compreensão filosófica, o apex theoriae, como ascensão ao Uno correspondente, não pode ser atingido sem a remoção do sujeito para uma situação excepcional iluminada”. A filosofia primeira seria assim essa mesma experiência pré e trans-discursiva, verdadeira e entusiasta “hora da verdade” que só a posteriori encontra na “metafísica como ontologia teológica” a sobriedade conceptualmente autocompreensiva, enquanto “filosofia segunda que fala da primeira” e que apenas passa por primeira para quem não logre ou esqueça aquele arrebatamento ou visão originários e fundadores. Assim se compreende que, saudoso disso que funda o pensar no que o transcende, no neoplatonismo se viva e conceba todo o des-envolvimento espiritual como “um retorno ao que é”, ao que todo o existente jamais cessou de ser no fundo primordial e último de todas as coisas, possível na medida em que se despoje e o despoje de todos os nomes, modos, propriedades e atributos que lhe são conceptual e extrinsecamente conferidos.
Assim acontece em Plotino, ao reconhecer que o alvo supremo do desejo unitivo da alma, directamente experimentado, embora designado como Uno e Bem, “não é nada para si mesmo” e que “em realidade nenhum nome lhe convém”, sendo apenas “para os outros” e em função da necessidade de nomear que como tal surge e se designa, culminando na radicalidade dialéctico-mística de Damáscio, ao afirmar que mesmo a expressão-limite de um “nada” (ούδέν) “melhor do que o uno” deve, por fidelidade a isso mesmo que se busca expressar, ser ultrapassada numa recusa a designá-lo seja de que forma for, exigindo-se “nem o proclamar, nem o conceber, nem o conjecturar”. O mesmo se verifica no neoplatonismo cristão, pese o maior esforço de conciliar com o absoluto a estrutura e as formas da sua trinitária diferenciação interna, desde a interpretação pelo pseudo Dionísio da experiência de Moisés como uma união perfeita com o que transcende o “tudo” e o “nada”, a mesmidade e a alteridade, “conhecendo além do espírito graças ao acto de nada conhecer”, sendo o próprio eros divino o que inspira e move a suplicante busca de união com isso que, “liberto de tudo”, é inacessível a toda a afirmação e negação, transcendendo toda a ordem de categorias, pois nem é nem não é, não “é um nem unidade, não é divindade ou bondade”. Como se confirma, para ficarmos apenas na vertente ocidental do dionisismo, na leitura panenteísta de João Escoto Erígena, o qual emancipa Deus ou o Bem do ser que dele procede, considerando-o como um supra-ser (superesse), um não-ser por excesso ou um nada por eminência ou “por infinidade”, que ignora, por excesso, toda a quididade, pois “não é um quid objectivado”, permanecendo assim “incognoscível em simultâneo para Ele-mesmo e para toda a inteligência”. A “glória”, todavia, consiste no seu “conhecimento por experiência directa”, além de toda a palavra e de todo o entendimento, além de toda a dicotomia, dualidade e categorização.
É esta possibilidade de experiência imediata do âmago incondicionado de tudo que se destaca no ambiente espiritual de que Eckhart é a mais conhecida e destacada figura. Bernard McGinn usa a expressão “mística do fundo” para designar a experiência espiritual iniciada ou redescoberta por Eckhart, seus contemporâneos e seguidores, que vê sintetizada na afirmação: “o fundo de Deus e o fundo da alma são um fundo”. Grunt abriria assim um “campo de palavra místico” (“mystiches Wortfeld”, expressão de Josef Quint), constituindo uma “metáfora explosiva” (“Sprengmetapher”, no sentido de Blumenberg), enquanto “expressa de modo concreto o que não pode ser capturado em conceitos” e “trespassa anteriores categorias da linguagem mística para criar novos modos de apresentar um encontro directo com Deus”. Este “termo proteico”, irredutível a todo o “esquema definido ou sistema doutrinal”, mostra ser “central” no pregador germânico “a consciência do fundo, uma forma de percepção diferente de todas as outras formas de experiência e conhecimento”. Dos quatro sentidos que Grunt assume no alemão medieval – “solo físico” ou “terra”; fundo de “um corpo, superfície ou estrutura”; “origem”, “causa”, “início”, “razão […] ou prova […] de algo”; “o mais íntimo” e “oculto” de um ser, ou seja, “a sua essência” – , é este último que avulta na experiência eckhartiana, quer referido ao “mais íntimo da alma”, quer referido às “profundezas ocultas de Deus”, para designar o radical imo desse seu fundo único. Univocamente comum a Deus e à alma, o fundo transcende-os enquanto “Deus” e “alma” surgem como algo distinto em si mesmo e na sua relação mútua. Com efeito, metáfora do infinito e do absoluto livre de todo o limite e referência, o fundo é “sem fundo” (gruntlôs grunt) e “um único um” (ein einig ein) que transcende Deus não só “enquanto causa eficiente do universo”, mas também enquanto diferenciado nas pessoas trinitárias: como diz Eckhart, a origem do ser divino e de todas as coisas reside nesse “fundo simples” e “imóvel” ou “deserto silencioso onde jamais a distinção lançou um olhar, nem Pai, nem Filho, nem Espírito Santo”. Sendo a “indistinção” e a ausência de características a “característica distintiva de Deus” como fundo, este é “nu, livre, vazio, puro”. Daí a articulação da metáfora do fundo com outras, tradicionais e emergentes na mística germânica do séc. XIV, como as do “deserto”, do “mar” e do “abismo” (Abgrund), enquanto imagens de espaços de vastidão, indistinção e desobstrução, livres de limites e entidades. Referindo também o incondicionado que há na alma, esse “algo incriado” que nela reside, o fundo é a mais poderosa metáfora que Eckhart usa – acima de outras, como a “pequena centelha” (vunkelîn) e a “cidadela” (burgelîn), apenas referidas à natureza humana – para indicar a presença em cada homem do absoluto e infinito, isso que transcende e identifica o humano e o divino: “Aqui o fundo de Deus é o meu fundo e o meu fundo é o fundo de Deus”, como diz o Leben Meister, veiculando a experiência pessoal da gestação simultânea do Filho na “natureza simples” do Pai e no “mais íntimo do espírito”… [PDF]