“A solidão – cisma do coração” (E.M. Cioran)

Estamos condenados à perdição sempre que a vida não se revela como um milagre, sempre que o instante já não geme sob um calafrio sobrenatural. Como renovar esta sensação de plenitude, estes segundos de delírio, estes relâmpagos vulcânicos, estes prodígios de fervor que rebaixam Deus a mero acidente de nossa argila? Por meio de que subterfúgio reviver esta fulguração na qual mesmo a música parece-nos superficial, como se fosse o refugo de nosso órgão interior?

Não está em nosso poder fazer voltar os arrebatamentos que nos faziam coincidir com o começo do movimento, tornando-nos donos do primeiro momento do tempo e artesãos instantâneos da Criação. Desta percebemos apenas o despojamento, a realidade lúgubre: vivemos para desaprender o êxtase. E não é o milagre que determina nossa tradição e nossa substância, mas o vazio de um universo privado de suas chamas, afogado em suas próprias ausências, objeto exclusivo de nossa ruminação: um universo solitário ante um coração solitário, predestinados, um e outro, a separar-se, e a exasperar-se na antítese. Quando a solidão se acentua a ponto de constituir não tanto nosso dado como nossa única , cessamos de ser solidários com o todo: heréticos da existência, somos excluídos da comunidade dos viventes, cuja única virtude é esperar, ofegantes, algo que não seja a morte. Mas, libertos da fascinação desta espera, expulsos do ecumenismo da ilusão, somos a seita mais herética, pois nossa própria alma nasceu na heresia.

(“Quando a alma está em estado de graça, sua beleza é tão sublime e admirável que ultrapassa incomparavelmente tudo o que há de belo na natureza, e encanta os olhos de Deus e dos Anjos.” [Inácio de Loyola]
Procurei estabelecer-me em alguma graça; quis liquidar as interrogações e desaparecer em uma luz ignorante, em qualquer luz desdenhosa do intelecto. Mas, como alcançar o suspiro de felicidade superior aos problemas, quando nenhuma “beleza” te ilumina, e Deus e os Anjos são cegos?
Antes, quando Santa Teresa, padroeira da Espanha e de tua alma, prescrevia-te um trajeto de tentações e de vertigens, o abismo transcendente maravilhava-te como uma queda nos céus. Mas esses céus se desvaneceram – como as tentações e as vertigens – e, no coração frio, extinguiram-se para sempre as febres de Ávila.
Por que estranheza da sorte, certos seres, tendo chegado ao ponto em que poderiam coincidir com uma fé, recuam para seguir um caminho que só os leva a eles mesmos – e portanto a parte alguma? É por medo que, uma vez instalados na graça, percam suas virtudes próprias? Cada homem evolui à custa de suas profundidades, cada homem é um místico que se recusa: a terra está povoada de graças goradas e de mistérios pisoteados.)

CIORAN, E.M., Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

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