“O reverso de um jardim” – CIORAN

Quando o problema da felicidade suplanta o do conhecimento, a filosofia abandona o seu domínio próprio para se consagrar a uma actividade suspeita: interessa-se pelo homem… Atraem-na questões que até então não se dignara abordar, e tenta responder-lhes com o ar mais sério deste mundo. «Como não sofrer?» — é uma das questões que a solicitam em primeiro lugar. Tendo entrado numa fase de cansaço, cada vez mais estranha à inquietação pessoal, à avidez de conhecer, abandona a especulação e às verdades que ferem opõe as que consolam.

Essa esse género de verdades que de Epicuro esperava uma Grécia decadente e submetida, em busca de uma fórmula de repouso e de um remédio para a ansiedade. Epicuro esteve para o seu tempo como o psicanalista está para o nosso: não denunciava também ele a seu modo o «mal-estar na civilização?» (Em todas as épocas confusas e requintadas, há um Freud que tenta desimpedir as almas.) Mais do que com Sócrates, foi com Epicuro que a filosofia começou a deslizar no sentido de uma terapêutica. Curar e, sobretudo, curar-se, era a sua ambição: embora Epicuro quisesse livrar os homens do medo da morte e do dos deuses, ele próprio experimentava ambos. A ataraxia de que se orgulhava não constituía a sua experiência habitual: a sua «sensibilidade» era notória. Quanto ao desprezo pelas ciências, desprezo de que o acusaram mais tarde, sabemos que este é muitas vezes uma característica dos «corações feridos». Este teórico da felicidade era um doente: ao que parece, vomitava duas vezes por dia. Em que misérias não se deverá ter debatido para odiar tanto as «perturbações da alma»! O pouco de serenidade que conseguiu adquirir, reservou-o sem dúvida para os seus discípulos; reconhecidos e ingénuos, estes construíram-lhe uma reputação de sabedoria. Como as nossas ilusões são muito mais fracas do que a dos seus contemporâneos, entrevemos sem dificuldade o reverso do seu Jardim…


CIORAN, E. M., A Tentação de Existir. Trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

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