As nossas fontes gnósticas, por mais distantes que pareçam, não deixam de inspirar ainda a nossa literatura. Menos de uma maneira direta (poucos escritores de fato conhecem esse período da nossa história reservado aos eruditos) quanto de maneira inconsciente. Eu não falo de uma referência histórica, mas de uma impregnação da sensibilidade por toda uma corrente de pensamento cuja emergência periódica, em certos momentos da nossa história, não tem uma causa apenas acidental, mas se oferece como o sintoma de uma tendência recalcada, latente no fundo do homem ocidental. Uma tendência gnóstica está adormecida na nossa mentalidade, nutrida pelo sentimento de uma dualidade inerente à nossa essência, engendrada por uma civilização do logos.
Sylvie Jaudeau, Cioran ou le dernier homme (1990)
Sylvie Jaudeau é uma das intérpretes mais sensíveis à dimensão gnóstica do pensamento e da obra de Cioran. O núcleo do seu pensamento é místico e deve ser reconhecido como tal; para o autor nascido em Răşinari, “a verdadeira solução pertence à via mística, a uma dimensão paralela ao tempo, a qual nos libera dele radicalmente.” (JAUDEAU 1990: 52) Interpretação que corrobora o pessimismo gnóstico segundo o qual “o tempo é o reino absoluto do mal que nada pode redimir.” (JAUDEAU 1990: 15)
O tema do gnosticismo atravessa o seu Cioran ou le dernier homme [Cioran ou o último homem] (1990) do começo ao fim. No primeiro capítulo, “O Emigrado ou a Queda no Tempo”, são tematizadas as vantagens do desenraizamento e as virtudes metafísicas do exílio, essa condição separada: “Todo homem que se cria raízes está perdido, abdica a uma liberdade essencial. O homem só é verdadeiramente homem quando se opõe ao meio ambiente. O desprendimento espiritual começa por um desenraizamento do solo. […] O exílio no tempo e na história é um meio propício para fazer a experiência dessa condição separada.” (JAUDEAU 1990: 30) Fazendo, graças à insônia, uma experiência de “saída do tempo” (sortie du temps), experiência que Jaudeau interpreta em chave gnóstica, Cioran se inscreve, contra os filósofos da história, numa “tradição de filósofos fora da história.” (JAUDEAU 1990: 35) Tudo isso – desenraizamento, exílio metafísico, desnudamento interior – constituindo sucessivas etapas do que seria uma experiência interior de tipo gnóstico.
A história, essa duração da Queda, é o reino da (má) repetição,[i] da monotonia e da dispersão, um infindável processo de degradação e perda de plenitude a partir de um absoluto originário: “O mal inerente ao dinamismo propulsor contamina toda a cadeia de acontecimentos que se seguem: o mal se confunde com o tempo degradado em futuro.” (JAUDEAU 1990: 38) Nenhum sentido, nenhum telos governa a história, que se prolonga indefinidamente, ao modo de um devir excrescente e idiota. Verdadeira mise-en-scène do Demônio, a História é indefensável. Jaudeau contrapõe o dualismo (de onde o pessimismo) de Cioran ao Uno de Plotino, que (assim como Agostinho) se viu no dever de combater o “falso saber” dos gnósticos da sua época, e cujo pensamento seria determinante enquanto base filosófica da mística cristã (notadamente através do Pseudo-Dionísio Areopagita): “O absoluto originário, em virtude da lei de que há menos ser no efeito do que na causa, se diminui, lembrando a procissão das essências plotinianas, essa inevitável degradação do Uno que preside a existência do mundo.” (JAUDEAU 1990: 48-9) Assim pode ser interpretada a Queda (no tempo) de que fala Cioran: não tanto o efeito de uma transgressão moral (pecado) por parte do primeiro casal (pecado secundário), ao modo tradicional, quanto uma fatalidade cósmica e teológica (exegese heterodoxa do “pecado original”), um processo de degradação e queda no interior da divindade, que se entrega ao despedaçamento de si para que, dos restos do seu desmembramento voluntário, a Criação possa vir a ser: a Criação-Queda como o primeiro pecado.[1] O devir, duração do demiurgo, degradação da eternidade da qual — nascidos do apagamento da divindade — nós caímos no reino da decomposição.
Nesse desprezo do tempo se deixa adivinhar o detrator do cristianismo. Desprendido da ilusão, que faz da provação pelo tempo a condição necessária à espiritualidade, ele recusa toda justificação ao sofrimento. Veremos em seguida como esta posição deve ser nuançada, ao grau das etapas contraditórias de um espírito inquieto, mas é inegável que ela permanece o fundamento das suas exasperações e de uma atitude que reata com a gnose dos primeiros séculos da nossa era. (JAUDEAU 1990: 53)
Jaudeau enxerga em Cioran uma atitude existencial e uma mentalidade de tipo gnóstico, ligadas à experiência da enfermidade, do tédio (ennui), da consciência como fatalidade, do mal de existir: “o sentimento gnóstico nasce de um mal-estar [malaise] do nosso ser no mundo, da consciência de uma ruptura inicial, de um exílio fundamental.” (JAUDEAU 1990: 55) Eis o cenário da experiência gnóstica: a percepção do fato bruto de existir como uma “anomalia”, uma “queda”, o efeito de um erro de partida, de algo que não deveria ser (uma ruptura, uma separação, uma queda), uma proeza a merecer o espanto (e o desespero) de cada instante (de onde a proposição cioraniana de que só existimos e só suportamos a vida graças aos nossos esquecimentos e à nossa desatenção de cada dia). A obsessão do mal nasce sempre de um desequilíbrio vital, de um abalo orgânico, de uma fisiologia conturbada: a um ser saudável – e, portanto, inconsciente – não lhe ocorre questionar por quê o mundo existe, e eu no mundo. A doença é fator de divergência, disfunção, desequilíbrio, geradora de intervalos e abismos; só tomamos consciência de nós mesmos e do mundo, e da dualidade entre um e outro, quando se acentua a mútua exclusão entre nós e o mundo, nós e o tempo, nós e nós mesmos. Cioran se declara um “doente”, um “enfermo” de lucidez, e esta confissão, ao mesmo tempo ética e metafísica, é fundamental para compreendermos a significação gnóstica da sua obra e do seu pensamento. Estar/ser doente significa viver com a contínua consciência do tempo que escoa, e de escoar-se junto com ele… (a angústia como consciência da finitude e da necessidade, da ausência de necessidade e de permanência, em chave kierkegaardiana). Num dos seus livros mais religiosos, e mais melancólicos, Amurgul gândurilor (um dos últimos escritos em romeno, já na França), encontraremos uma consideração esclarecedora: “Quando um ser não encontra o seu assento na existência, encontra-se na presença do Mal. Daí deriva todo fracasso – e o mal sendo imanente ao devir, todos os seres têm de lutar contra ele.” (Le crépuscule des pensées, Œuvres, p. 422)
Segundo Harold Bloom, a gnose se erige como um “protesto contra a fé apocalíptica, mesmo quando o faz dentro de uma dessas fés, como fez sucessivamente no judaísmo, cristianismo e Islã. A religião profética torna-se apocalíptica quando a profecia falha, e a religião apocalíptica torna-se gnóstica quando o apocalipse falha, como felizmente sempre falhou, e devemos esperar, voltará a falhar.”[ii] A experiência gnóstica é uma experiência de fracasso da fé (esperança) na providência de um Deus misericordioso e na narrativa escatológica que atribui um sentido ao sofrimento, universal e individual, ao longo da história, pretendendo assim justificá-lo; experiência de embriaguez, errância, despertar, lucidez, desespero, loucura, numa palavra: conhecimento, em detrimento da aquiescência à fé (cuja carência Cioran confessa ressentir, demasiado condicionado pela teologia e pela moral ortodoxas para afirmar, inequivocamente, a sua própria “experiência interior”, individual e heterodoxa, como uma autêntica experiência religiosa, ou antes mística, mais do que religiosa). Lucidez e desespero são, em Cioran, praticamente sinônimos, muito embora a lucidez cioraniana comunique a possibilidade de voltar-se contra ela mesma para anular, ou para conter, o seu próprio desespero.
Mas por este conhecimento deve-se pagar caro.[iii] Não se trata de uma especulação impessoal e desinteressada, senão de um conhecimento do corpo, dos órgãos, na doença, e na consciência de si que se coloca entre ambos.[2] Conhecimento daquilo que é o mais íntimo em nós: a solidão para a morte; “conhecimento póstumo” (Do inconveniente de ter nascido) do cadáver virtual que existe em cada um de nós… O que nos leva de volta à preocupação de Jaudeau de nuançar o gnosticismo de Cioran, reconhecendo que, “se os fundamentos do seu pensamento repousam sobre uma atitude gnóstica, é inegável que estamos diante de um gnosticismo ateu”, de modo que é mais proveitoso insistir na expressão de “uma gnose que não depende de referências culturais, mas que se desenvolverá a partir de uma crise existencial. É antes de tudo, pelo seu caráter de experiência vivida que se assinala a originalidade da gnose. Formulada em seguida em filosofia religiosa, ela deriva fundamentalmente de uma consciência trágica do nosso ser-no-mundo.” (JAUDEAU 1990: 64) Trata-se, com efeito, de um gnosticismo sem Deus e, se devemos atribuir a Deus a função de salvação, um gnosticismo sem salvação. Com Deus ou sem Deus, pode-se dizer do pensamento existencial e metafísico de Cioran que ele redunda numa verdadeira filosofia religiosa (da redenção, ou da libertação, ao modo de um Mainländer). Que seja ateísta não significa que não contemple nenhuma salvação, ou libertação, no fundo do desespero.
Dentre todos os obstáculos no sentido de sustentar uma exegese gnóstica da obra e do pensamento de Cioran, o ateísmo é o menos difícil. Primeiramente, porque gnosticismo e ateísmo (e niilismo) coexistem sincronicamente, contemporâneos ideais, na Antiguidade ou nos tempos atuais, como demonstrado por Hans Jonas e Ion Culianu. O verdadeiro Deus dos gnósticos, acima do demiurgo, é infinitamente distante e transcendente, de tal modo que se torna ineficaz, inexistente, um “conceito niilista em si”,[iv] como diz Bloom: o puro Nada. Em segundo lugar, não está descartado que o gnosticismo de Cioran, se gnosticismo há, não é necessariamente cristão (marcado, portanto, em suas origens, pelo embate entre cristãos judaizantes e cristãos helenizantes a respeito da continuidade ou não dos Evangelhos em relação ao Antigo Testamento). O gnosticismo cioraniano não é cristocêntrico; a figura de Jesus não lhe é essencial. E apesar da sua obsessão teológica, Deus não lhe é necessário (como não é no budismo). Diríamos que o gnosticismo cioraniano é, num determinado nível, bogomilo (heresia cristã, portanto), mas, num nível ulterior, deslocando-se do centro à periferia da cristandade, em direção ao Oriente, vai ao encontro do maniqueísmo, do zoroastrismo e de determinadas correntes do hinduísmo e do budismo. Voltando a Jaudeau, ela destaca três características definidoras do espírito gnóstico e que se aplicam igualmente a Cioran:
– Uma consciência da separação: o gnóstico não se sente do mundo e não quer pertencer ao mundo.
– Uma visão depreciativa do mundo como limite, prisão, em proveito de um outro mundo, espiritual, o único verdadeiro, o nosso não sendo senão um simulacro, a péssima contrafação perpetrada pelo demiurgo.
– Um desejo de salvação fora da nossa realidade.
O gnóstico vive, portanto, o seu ser no mundo num dualismo radical que condiciona toda as suas estruturas mentais: oposição matéria/espírito, aparência/verdade, pertencimento e não-pertencimento ao mundo. O gnóstico é preso numa rede de antinomias que faz dele um ser perpetuamente dilacerado e sempre em busca de uma impossível unidade. Ele se sente, por consequência, submetido a uma realidade hostil, o mal, e amaldiçoa o seu nascimento, lugar de sua queda. (JAUDEAU 1990: 55)
Este tableau sumário não pretende oferecer uma tipologia exaustiva da mentalidade e atitude gnósticas, mas tão-somente explicar de que maneira elas correspondem ao pensamento e à obra de Cioran. Segundo ela, o gnosticismo representa a chave essência de uma obra representativa das tendências contraditórias do século XX (e do nosso): niilismo, angelismo, revolta e fatalismo. (JAUDEAU 1990: 56) Em meio às tendências apontadas, a segunda nos intriga, como se estivesse deslocada, discrepante: Jaudeau não deixa claro o de que maneira “angelismo” em questão está presente em Cioran. Ao que nos parece, a obra de Cioran está nas antípodas de todo angelismo. Ou não. Vejamos. O CNRTL (Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales) define angélisme como um ‘ismo’ depreciativo: “atitude espiritual ou intelectual que consiste na preocupação excessiva de se conformar a um tipo ideal ignorando ou recusando-se a admitir certas realidades humanas (carnais, morais, sociais, materiais, etc.)”.[v] Noutras palavras: “idealismo” (na acepção vulgar), com a diferença de que angelismo denota certa pretensão (estética, ética, ontológica) de pureza bastante difundida, por sinal, na cultura da autoajuda: “é preciso buscar a pureza interior”; “o ser humano é puro por natureza”; “no final, tudo dá certo; se ainda não está tudo certo, é porque não é o final” — expressões do angelismo contemporâneo. O devaneio purista não passa de uma recusa a ver, de uma incapacidade adquirida de encarar o real. Lembremos desta confissão nos Silogismos da amargura: “O Real me dá asma.” Se Cioran exagera, ao menos o faz acentuando a não-pureza constitutiva do real, erigindo a impureza ao estatuto de categoria metafísica negativa: todo o contrário da autoajuda. O angelismo, aliás, é um dos temas de um dos livros mais importantes de Harold Bloom em matéria de gnosticismo, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade. Bloom se concentra, aí, na relação – tão fortemente alimentada pela cultura popular – entre anjos, sonhos e experiências de quase-morte (NDE, Near-death-experience em inglês).[vi] O seu argumento (de onde a perspectiva gnóstica do crítico literário) é que a obsessão pelos anjos em tempos conturbados, de angústia acelerada, como os nossos, oculta uma experiência (individual, coletiva) antes infernal do que angélica. A autoajuda prospera em tempos de angústia e ansiedade, quando ninguém sabe como ajudar ninguém, a começar por si mesmo. O otimismo new age seria o sintoma, e o efeito paradoxal, de uma civilização em declínio, doente. Enfim, os anjos seriam, segundo Bloom, os arcontes[3] do gnosticismo, travestidos de “mensageiros divinos” – só que não…
Seja como for, tentemos extrair algo de positivo, hermeneuticamente falando, da proposição de Jaudeau, tentemos compreender de que maneira ela enxerga “angelismo” em Cioran. Segundo ela, o ato literário incorre no risco de gnose (e angelismo) porque é, fundamentalmente, “esquecimento da coisa em proveito do imaginário”. (JAUDEAU 1990: 56) Ela estaria a dizer que a atitude gnóstica de Cioran engendra a obsessão de um mundo luciferino criado por um mau demiurgo: a obsessão do mal absoluto, que coincide com o devir mesmo, a despeito de certo “realismo” (que Rosset acolheria bem) segundo o qual as coisas não são bem assim, o mundo não é “mau” nem “bom”, não possui um “criador”, ele simplesmente é (ou nem isso, segundo Rosset, somente há o acaso em devir). Há outra chave hermenêutica do suposto angelismo de Cioran: a sua obsessão da doença – e de uma saúde ideal – a grande saúde – que seria humanamente irrealizável, pois a consciência de si, a reflexão, o espírito, eis a maior enfermidade do homem. Análoga a ela há uma outra obsessão, embora menos tematizada por Cioran ipsis litteris, precisamente a da pureza – em oposição a uma impureza que é, ela apenas, “sinal de realidade” (Breviário de decomposição). Gnóstico sui generis, heterodoxo entre os heterodoxos, Cioran estaria nas antípodas do Cátaros, ou “Puros”. Pode-se verificar em Cioran uma persistente obsessão da doença e da impureza que ocultariam, se Jaudeau estiver correta, a profunda e irreprimível nostalgia de uma saúde e de uma pureza ideais, tão ideais que nem sequer podem ser imaginadas como atributos de seres finitos e mortais, ainda mais conscientes de si.
Muito embora o faça a partir de um termo (“angelismo”) bastante heteróclito em relação ao vocabulário e à gramática cioraniana, Jaudeau nos fornece uma importante pista hermenêutica, tornando a investigação acerca do gnosticismo em Cioran não apenas um estudo em filosofia da religião e da mística, mas também uma reflexão acerca da linguagem, da discursividade, da poética, do estilo de Cioran. Estética e metafísica vão de par. Se é verdade que ato literário, para Cioran, é concebido como “o esquecimento da coisa em proveito do imaginário”, então todo o drama metafísico-religioso de Cioran se confunde com um drama de outra natureza, a saber, a “guerra com o verbo” (JAUDEAU 1990: 57), a luta com as palavras, especialmente quando se escreve num idioma estrangeiro, esse trabalho literário de Sísifo que consiste em impor alguma ordem ao caos do silêncio, alguma necessidade ao acaso, algum estilo à crueldade do real (para emprestar uma fórmula de Rosset). “Caos”, “ordem”, “mundo”, “eu”, “lucidez”, “queda”, “abismo”, “nada”, “transfiguração”, etc.: efeitos de linguagem. Se Jaudeau tem razão, o gnosticismo de Cioran não é uma dimensão oculta do seu pensamento que apenas uma leitura iniciática da sua obra permitiria acessar, mas justamente a excrescência material em que consiste a obra cioraniana, a sua existência efetiva:
Ela persiste como rastro, desmente as suas intenções, afirma o seu caráter excedentário. Testemunha também da maldição de ser, não pelo seu conteúdo, mas pela sua própria existência, pela sua obstinação em produzir efeitos quando o seu criador já se desprendeu dela. Ela revela, assim, o excesso de ser sobre o sentido que se nomeia o mal numa perspectiva gnóstica. Neste sentido, o mal é essa parte excedentária que resiste obstinadamente e que nada pode neutralizar. Excrescência incômoda que testemunha de uma natureza imperfeita gerada por um mau demiurgo e contra a qual se choca a razão. O mal é o único objeto de pensamento que estilhaça e excede o pensamento, que este não pode nem integrar e nem, por outro lado, ignorar. Essa visão gnóstica reconhece ao mal uma existência própria que as hermenêuticas tradicionais lhe recusam, seja porque o assimilam a uma ilusão, seja porque o colocam a serviço do bem. (JAUDEAU 1990: 209-10)
Tudo isso, extraído dos comentários finais de Cioran ou le dernier homme, a propósito do “visitante de um mundo abandonado pelo seu demiurgo”, parece ser a conclusão em resposta à pergunta feita lá atrás, na discussão sobre o angelismo de Cioran: “como o niilismo é compatível com uma criação literária? O ato literário em si mesmo não seria não apenas o sintoma como a causa do niilismo de certa categoria de escritores?” (JAUDEAU 1990: 56) Pergunta retórica cuja resposta é sim, Cioran em primeiro lugar. Segundo Jaudeau, a concepção cioraniana da vanitas de toda palavra, da miséria da expressão, da insuficiência essencial da linguagem enquanto tal, não seria tanto o efeito lógico de uma apreensão niilista do mundo, mas seria, antes, o “niilismo” de Cioran o efeito de determinado recurso às palavras, efeito de linguagem, portanto, como uma função gramatical negativa. A escritura cria o nada, engendra o niilismo que ela mesma acaba assumindo, subsequentemente, como anterior e exterior a ela. “Não estaríamos nós encerrados num círculo em que a escritura engendraria o nada que ela denuncia, e que por sua vez se manifestaria na escritura?” Pode-se muito bem assumir esta perspectiva estetizante, porém, com algumas ressalvas: se tal perspectiva é preponderante no contexto da obra cioraniana em língua francesa, não o é tanto na fase dos seus escritos de juventude. Cioran não se afirmará como escritor, homem das letras, senão após converter-se ao francês enquanto idioma de expressão. Escrevendo em romeno, ele é, ainda, demasiado filósofo, pensador, ergo profundo, tentado pela seriedade (muito embora uma de tipo orgânico), muito pouco irônico; em francês, pode-se dizer que se tornará écrivain no melhor sentido do termo, um estilista admirável, reconhecido pelos grandes nomes da literatura francesa (como Saint-John Perse); um fino ironista, espirituoso, proponente da frivolidade como o “antídoto mais eficaz contra o mal de ser o que se é: graças a ela, iludimos o mundo e dissimulamos a inconveniência de nossas profundidades. Sem seus artifícios, como não envergonhar-se por ter uma alma?” (Breviário de decomposição) Trata-se, com efeito, de um movimento, de um salto qualitativo entre um discurso (logos, pensar-dizer) mais ontológico para um discurso mais logológico:[vii] enquanto a ontologia postula um ser, uma realidade, um mundo em si fora da linguagem, a logologia pretende que todo “ser”, “realidade”, “mundo”, seja um efeito de linguagem, uma fabricação linguística, “demiurgia verbal”; tal concepção parece mais afeita ao écrivain E. M. Cioran do que ao jovem pensador romeno, Emil, “nos cumes do desespero”. Escrevendo em seu idioma natal, Cioran permanece demasiado naturalista, enquanto que, em francês, torna-se um escritor mais artificialista. Nenhum texto melhor do que “Demiurgia verbal” (A tentação de existir) para confirmar essa intuição:
O mal-estar que a linguagem suscita em nós em nada difere do que o real nos inspira; o vazio que entrevemos no fundo das palavras evoca o que colhemos no fundo das coisas: duas percepções, duas experiências em que se opera a distinção entre objetos e símbolos, entre a realidade e os signos. No acto poético, esta disjunção assume o aspecto de uma ruptura. Arrancando-se por instinto às significações estabelecidas, ao universo herdado e às palavras transmitidas, o poeta, em busca de uma outra ordem, lança um desafio ao nada da evidência, à óptica do tal e qual. Empenha na demiurgia verbal. (A tentação de existir)
O ensaio de Jaudeau nos leva a reconsiderar a relação de causa e efeito, em Cioran, entre experiência gnóstica e escritura (ela também gnóstica, em muitos aspectos): seria a gnose a causa da escritura, ou seria a escritura, antes, a causa – e o locus perfeito – para uma experiência gnóstica enquanto logologia e “demiurgia verbal”? Ao mesmo tempo em que faz erigir a questão, a obra francesa de Cioran borra os contornos daquilo que poderia ser uma resposta inequívoca. Em todo caso, sigamos com Jaudeau: “Assim, a escritura como exacerbação da separação, esforço desesperado em direção a uma transparência recusada, e a visão gnóstica do mundo como exílio, distanciamento de uma realidade interdita, se unem na mesma tentação em direção a um alhures que recua sem cessar e na mesma certeza de uma ruptura inicial.” (JAUDEAU 1990: 56-7) Neste sentido, a criatura – no caso Cioran – “repete, pela invenção, verbal a queda da qual é o produto. O escritor a perpetua erigindo-se, por sua vez, em ‘demiurgo verbal’.” (JAUDEAU 1990: 85) Talvez devêssemos questionar se não haveria uma relação causal, uma conjunção necessária de fatores, entre o fato de escrever em francês e o surgimento de Le mauvais démiurge: seria este livro, por força da necessidade, um produto do encontro entre a alma balcânica de Cioran e o rigor canônico da língua francesa, ou esta não seria senão uma relação de contingência, de modo que, em tese, Le mauvais démiurge poderia ter sido escrito em romeno, ainda na Romênia?[viii]
Resta uma questão, mais precisamente uma objeção, a propósito do angelismo que Jaudeau identifica em Cioran: não seria ele um angelismo à rebours (“às avessas”), negativo, um (anti)angelismo da Impureza como única realidade? Não estaria ele, ademais, em franca contradição com a tese (sustentada pela própria Jaudeau) de que em Cioran estamos diante de um gnosticismo ateu? Afinal, ele não parece lá muito interessado em especular, fabular sobre as realidades celestes, os arcontes, as emanações ou procissões do ser, do Uno até a nossa existência mundana e sublunar, efêmera, perecível, etc. É certo que Cioran pretere o “real” em proveito do “imaginário”? A propósito, como se configura o imaginário cioraniano? Esta questão se torna tão mais espinhosa quanto Jaudeau admite, mais adiante, que nada nos impede de qualificar a démarche cioraniana de mística, se definirmos a mística, a partir de Alain Cugno (autor de uma importante biografia de São João da Cruz), como “um retorno ao real por uma destruição do imaginário”. (JAUDEAU 1990: 129) Como conciliar estes dois movimentos: esquecimento do real em proveito do imaginário, por um lado, e retorno ao real por uma destruição do imaginário, por outro? Estariam eles numa relação dialética de antítese? Qual deve prevalecer? Temos, aparentemente, uma dualidade irredutível a dividir o ser mesmo de Cioran, homem de carne osso, entre tendências contrárias e inconciliáveis: a aspiração mística de asceta e a aspiração literária de escritor, o silêncio e a expressão, a “glória essencial” e a “glória dos homens”.[4] Por um lado, busca a salvação (ou libertação), aspira apaixonadamente a ela; por outro, bota-a a perder, sem nenhuma má consciência. Mas inclusive essa contradição, essa dualidade, pode ser reintegrada no (neo)gnosticismo (“ateu”, “sem absoluto”, desencantado) de Cioran, no interstício da escritura entre expressão e silêncio, queda e ascese, decomposição e êxtase. A experiência gnóstica como condição dividida, dilacerada, entre o aqui e o alhures, a existência e o absoluto, o tempo e a eternidade, ou essa “eternidade negativa” que se descobre abaixo do tempo, caso se chegue a experimentar essa segunda queda, mais grave do que a primeira, que é cair do tempo (La chute dans le temps, Œuvres, p. 1152).
Por fim, uma objeção suplementar: mesmo admitindo que “Cioran não encontrou Deus, mas o mal, e que a sua obra, “animada de uma vitalidade autônoma, ‘barulhenta’, é em si mesma uma figuração do mal” (JAUDEAU 1990: 212), Jaudeau afirma que “o pessimismo da obra de Cioran só aparece a quem não penetrou o seu sentido último” (JAUDEAU 1990: 17): afirmação controversa, para dizer o mínimo, cujo tom não pode deixar de soar demasiado “esotérico”, “iniciático”. Qual seria esse sentido último? Em nome de quê pretende ela desqualificar o pessimismo cioraniano? Talvez tenha em mente isso que configura, para nós, o essencial (e o mais controverso) em se tratando do pensamento de Cioran, para além de todo pessimismo, dualismo, niilismo (a sua pars destruens): a hipótese e a possibilidade (virtual? real?) de uma salvação ou redenção possível, contra todas as evidências e probabilidades. Jaudeau observa que “a questão da salvação é continuamente colocada em Cioran. É preciso libertar-se do inferno do mundo.” (JAUDEAU 1990: 62-3) Justo. E ela tem razão em questionar, logo em seguida: “Mas pode-se assimilá-la à busca da gnose?” Afinal, tudo indica que “a salvação indicada por Cioran seja na contramão da concepção geralmente ensinada pelos gnósticos” (JAUDEAU 1990: 63) Quanto a isto, seguiremos a pista deixada por ela, desdobrando os fios da sua exegese gnóstica e acrescentando outros mais à sua tessitura: interessa-nos compreender como o despertar gnóstico está relacionado à experiência da enfermidade, do desequilíbrio orgânico, da debilitação vital. Trata-se, pois, de pensar a relação entre gnose e experiência do corpo, no corpo – gnose e doença (no caso, a patologia da insônia, tal como associada à depressão e à ansiedade). Neste sentido, “não é fortuito que a doença constitua o terreno fértil de um despertar gnóstico. E Cioran, aqui também, testemunha a favor das nossas suposições, pois não cessa de meditar sobre a doença e os seus poderes de despertar (pouvoirs d’éveil). Uma verdadeira experiência metafísica começa pelo sentimento do nosso estrangeirismo em reação ao nosso próprio corpo.” (JAUDEAU 1990: 75) Trata-se, em todo caso, de um gnosticismo sem Deus e, ao que tudo indica, sem salvação. Paradoxo de uma gnose que se respalda menos por referências culturais sedimentadas (gnose valentiana, marcionita, basilidiana, setiana, etc.) do que por uma experiência concreta e pessoalmente vivida, experiência de conhecimento – ainda que se trate de um saber negativo, sem conhecimentos – marcada pelo excesso e pelo desespero, pela consciência da doença e pela lucidez na imanência de um mundo idiota, abandonado pelo seu demiurgo.
Cioran chega a se voltar contra as suas tendências e a recusar a gnose mesma quando ela parece proclamar demais a possibilidade de uma saída. Mas, quanto mais forte é a sua recusa da gnose, mais ele parece consciente do instinto dualista que o habita, mais, em suma, ele pertence, ainda que recusando-o, ao espírito gnóstico. Nós poderíamos falar, ao seu respeito, de um gnóstico envenenado por uma lucidez que nega a fé e a salvação. Um gnosticismo sem deus que despreza a luz e o além-mundo e se afirma na mais completa derrelição, em suma mais gnóstico, pois mais dolorosamente consciente do exílio. (JAUDEAU 1990: 79)
NOTAS:
[1] “Eu me reconheço próximo da crença profunda do povo romeno segundo a qual a criação e o pecado são uma e a mesma coisa. Em grande parte da cultura balcânica, a criação não cessa de ser acusada. O que é a tragédia grega se não a queixa constante do coro, isto é, do povo, a propósito do destino? Dionísio, de resto, veio da Trácia.” CIORAN, E. M., Entretiens, p. 10.
[2] É a divisa cioraniana, postulada em Nos cumes do desespero, e válida para sempre, entre o “pensador orgânico” e o “pensador abstrato”. “É evidente que, diante de questões puramente formais, por mais difíceis que sejam, não se pode exigir uma seriedade infinita, pois elas são exclusivamente produzidas por incertezas da inteligência, sem despontar da estrutura orgânica e total do nosso ser. Só o pensador orgânico e existencial é capaz desse tipo de seriedade, pois só para ele as verdades são vivas, frutos mais de uma tortura íntima e de uma afecção orgânica que de uma especulação inútil e gratuita. Diante do homem abstrato, que pensa pelo prazer de pensar, surge o homem orgânico, que pensa sob a determinação de um desequilíbrio vital que está além da ciência e da arte.” CIORAN, Emil, Nos cumes do desespero, p . 34.
[3] “Se para a Antiguidade tardia o mundo das esferas planetárias é o reino do ‘destino’ (heimarmené), controlando amiúde os eventos terrestres por sua influência, tal é ainda mais o caso na gnose. Para ela o reino dos ‘sete’ (hebdomas) é um poder anti-humano e anti-divino que, refletindo as circunstâncias divinas, é concebido como tirania. De forma mitológica, ele é habitado por ‘demônios’, deuses ou espíritos, que amiúde levam o nome de ‘legisladores’ ou ‘comandantes’ (arcontes); eles às vezes formam reinos inteiros e com um ‘arconte’ à frente.” RUDOLPH, Kurt, Gnosis: The Nature and History of Gnosticism, p. 67.
[4] Em La chute dans le temps, há um ensaio intitulado “Désir et horreur de la gloire” [Desejo e horror da glória]. Numa das passagens, ao meu ver, mais importantes em toda a obra de Cioran (e que teremos a oportunidade de analisar detidamente), especialmente significativa a propósito da aspiração místico-religiosa e do significado soteriológico do seu pensamento, por um viés heterodoxo (gnóstico), lê-se nas últimas linhas de História e utopia: “De nada vale deixar de acreditar na realidade geográfica do paraíso ou em suas diversas figurações, ele reside de qualquer maneira em nós como um dado supremo, como uma dimensão de nosso eu original; trata-se agora de descobri-lo aí. Quando o conseguimos, entramos nessa glória que os teólogos chamam essencial; mas não é Deus que vemos face a face, é o terreno presente, conquistado acima do devir e da própria eternidade…” CIORAN, E. M., História e utopia, p. 125.
[i] Clément Rosset distingue entre dois tipos de repetição: uma má, mecânica, patológica, repetição-lugar-comum, correspondendo a uma concepção pessimista no plano filosófico (Eclesiastes, Schopenhauer, Cioran), e uma boa repetição, esta, por sua vez, operante, diferencial, criadora (como o elã vital de Bergson), correspondendo à concepção trágica no plano filosófico (pluralismo irredutível a qualquer unidade ou síntese, mas ao mesmo tempo jubilatório, salutar). ROSSET, Clément, Lógica do pior, p. 75.
[ii] BLOOM, Harold, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade, p. 31.
[iii] Para Cioran faz toda a diferença se tal o qual pensador pagou pelas suas “descobertas” ou não: “É evidente que um Montaigne não sofreu pelo conhecimento: um sábio, e nada mais, um Pascal, pelo contrário, pagou pela menor afirmação ou negação que se permitiu; vem daí que tudo o que ele diz te um peso que dificilmente se acharia nas palavras dos outros moralistas, todos mais ou menos instalados nas cômodas certezas do azedume, todos resignados com nossa corrupção radical, que não parecem de modo algum corrigir nem sequer abalar. Mais um passo e eles resvalariam para o cinismo, para um desengano sem escrúpulos.” CIORAN, E. M., Prefácio à Antologia do retrato, p. 15.
[iv] BLOOM, Harold, Presságios do milênio: anjos, sonhos e imortalidade, p. 29.
[v] Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales: http://www.cnrtl.fr/definition/ang%C3%A9lisme [acesso: 09/04/2019].
[vi] Caso haja dúvida de que a tríade temática continua mais atual do que nunca, basta conferir a série The OA, disponível na plataforma Netflix. Trata-se de uma jovem, que se descobre em seguida ser na verdade um anjo (OA significa Original Angel), que passa pela traumática experiência, junto com um grupo de outros jovens, de ficar por 7 anos trancada no porão de uma casa por um cientista psicopata que os utiliza como cobaias para estudar a psicologia das NDE. Vida e sonho, morte e dimensões paralelas se misturam nessa trama marcada por um profundo angelismo.
[vii] “Onto-logia: o discurso comemora o ser, tem por tarefa dizê-lo. Logologia: o discurso faz o ser, o ser é um efeito de dizer. Em um caso, o de fora se impõe e impõe que se o diga; no outro, o discurso produz o de fora. […] O discurso sofístico não é apenas uma performance, no sentido epidítico do termo, é inteiramente um performativo, no sentido austiniano do termo: ‘How to do things with words’. Ele é demiúrgico, fabrica o mundo, faz com que advenha.” CASSIN, Barbara, O efeito sofístico, p. 63.
[viii] A este respeito, cumpre citar o artigo de Mara Magda Maftei-Bourbonnais, “Tears and Saints versus The Evil Demiurge”, em que a exegeta contrapõe dois dos livros de Cioran de temática mais explicitamente religiosa: Lacrimi şi sfinţi (1937) e Le mauvais démiurge (1969), separados no tempo por pouco mais de três décadas. MAFTEI-BOURBONNAIS, Mara Magda, “Tears and Saints versus The Evil Demiurge”, in BOLDEA, Iulian; SIGMIREAN, Cornel (eds.), Multicultural Representations. Literature and Discourse as forms of dialogue, p. 142.
[…] de um mundo abandonado pelo seu demiurgo: Sylvie Jaudeau e o gnosticismo ateu de Cioran”. In: Portal E.M. Cioran Brasil, […]
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[…] de um mundo abandonado pelo seu demiurgo: Sylvie Jaudeau e o gnosticismo ateu de Cioran”. In: Portal E.M. Cioran Brasil, […]
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