“Os malefícios da coragem e do medo” – CIORAN

Ter medo é pensar continuamente em si mesmo e não poder imaginar um curso objetivo das coisas. A sensação do terrível, a sensação de que tudo acontece contra nós, supõe um mundo concebido sem perigos indiferentes. O medroso – vítima de uma subjetividade exagerada – julga-se, muito mais do que o resto dos humanos, o alvo de acontecimentos hostis. Neste erro aproxima-se do valente que, nos antípodas, só vislumbra em toda parte a invulnerabilidade. Os dois alcançaram o ponto extremo de uma consciência enfatuada de si mesma: contra um, tudo conspira; para o outro, tudo é favorável. (O corajoso é apenas um fanfarrão que abraça a ameaça, que foge ao encontro do perigo.) Um se instala negativamente no centro do mundo, o outro positivamente; mas sua ilusão é a mesma, pois seu conhecimento tem um ponto de partida idêntico: o perigo como única realidade. Um o teme, o outro o busca: não saberiam conceber um desprezo puro em relação às coisas: referem tudo a eles, são demasiado agitados (e todo o mal no mundo vem de um excesso de agitação, das ficções dinâmicas da bravura e da covardia). Assim, esses exemplares antinômicos e parecidos são os agentes de todos os distúrbios, os perturbadores da marcha do tempo; colorem afetivamente o menor esboço de acontecimento e projetam seus desígnios inflamados sobre um universo que – a não ser em um abandono a tranquilos nojos – é degradante e intolerável. Coragem e medo, dois polos de uma mesma doença que consiste em atribuir abusivamente um significado e uma gravidade à vida… É a falta de amargura preguiçosa que faz dos homens bestas sectárias: os crimes mais nuançados, como os mais grosseiros, são perpetrados por aqueles que levam as coisas a sério. Só o diletante não tem gosto pelo sangue, só ele não é criminoso…

CIORAN, E. M., Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

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3 comentários em ““Os malefícios da coragem e do medo” – CIORAN”

  1. eu só sinto coragem na exclusão social, na posição de vítima mesmo. todos os valores heroicos me dão medo e covardia. a minha coragem é ser o adversário, o errado da história. o errado do ponto de vista da maioria. aquele que vai destruir o bom convivio social, é aí que nasce minha coragem. por isso sou tão incompreendido.

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