“Escola de tiranos [3]” (E.M. Cioran)

Todos os homens são mais ou menos invejosos; os políticos o são completamente. Tornamo-nos invejosos quando já não suportamos mais ninguém nem ao lado nem acima de nós. Engajar-se em qualquer empreendimento, mesmo o mais insignificante, é pactuar com a inveja, prerrogativa suprema dos seres vivos, lei e mola dos atos. Se a inveja te abandona, és apenas um inseto, um nada, uma sombra. E um doente. Enquanto ela te sustenta, remedia as fraquezas do orgulho, vigia teus interesses, vence a apatia, opera vários milagres. Não é estranho que nenhuma terapia nem nenhuma moral haja preconizado os benefícios da inveja que – muito mais caridosa que a providência – precede nossos passos para dirigi-los? Ai daquele que a ignora, a negligencia ou a escamoteia! Escapa, de uma só vez, das consequências do pecado original, da necessidade de agir, de criar e de destruir. Incapaz de sentir ciúme dos outros, o que busca entre eles? Um destino de despojo o espreita. Para salvá-lo, seria preciso forçá-lo a tomar por modelo os tiranos, a tirar proveito de seus excessos e de seus delitos. É deles, e não dos sábios, que ele aprenderá como recuperar o gosto pelas coisas, como viver, como degradar-se. Que regresse ao pecado, que se reintegre à queda se quer participar também do aviltamento geral, dessa euforia da condenação em que estão submersas as criaturas. Conseguirá? Nada menos provável, pois dos tiranos ele só imita a solidão. Tenhamos compaixão dele, piedade de um miserável que, não se dignando a alimentar seus vícios nem a rivalizar com ninguém, permanece aquém de si mesmo e abaixo de todos.

Se os atos são frutos da inveja, entenderemos por que a luta política, em sua expressão última, resume-se a cálculos e a artimanhas próprias para assegurar a eliminação de nossos êmulos ou de nossos inimigos. Queres acertar no alvo? Começa por liquidar aqueles que, pensando segundo tuas categorias e teus preconceitos e tendo percorrido a teu lado o mesmo caminho, sonham necessariamente suplantar-te ou derrubar-te. São teus rivais mais perigosos; limita-te a eles, os outros podem esperar. Se tomasse o poder, minha primeira preocupação seria fazer desaparecer todos os meus amigos. Proceder de outra maneira é sabotar a profissão, desacreditar a tirania. Hitler, muito competente na matéria, demonstrou sabedoria ao desfazer-se de Roehm, o único homem a quem tratava de você, e de boa parte de seus primeiros companheiros. Stálin, por sua parte, não ficou atrás, como mostram os processos de Moscou.

Enquanto um conquistador triunfa, enquanto avança, pode permitir-se qualquer delito; a opinião pública o absolve; mas quando a fortuna o abandona, o menor erro se volta contra ele. Tudo depende do momento em que se mata: o crime em plena glória consolida a autoridade pelo medo sagrado que inspira. A arte de fazer-se temer e respeitar equivale ao senso da oportunidade. Mussolini, o típico déspota inábil ou de pouca sorte, tornou-se cruel quando seu fracasso já era manifesto e seu prestígio havia decaído: alguns meses de vinganças inoportunas anularam o labor de vinte anos.

Napoleão foi mais perspicaz: se tivesse mandado matar o duque de Enghien um pouco mais tarde, depois da campanha da Rússia, por exemplo, teria permanecido na história como carrasco; enquanto que agora esse assassinato aparece em sua vida como uma nódoa e nada mais.

Se, em última instância, pode-se governar sem crimes, não se pode fazê-lo, de modo algum, sem injustiças. Trata-se, entretanto, de dosar uns e outras, de cometê-los unicamente por intermitências. Para que te perdoem, deves saber simular cólera ou loucura, dar a impressão de ser sanguinário por inadvertência, tramar manobras terríveis sem perder teu aspecto de bonachão. O poder absoluto não é coisa fácil: só se distinguem nele os cabotinos ou os assassinos de marca maior. Não há nada mais admirável humanamente e mais lamentável historicamente que um tirano desmoralizado por seus escrúpulos.

“E o povo?”, perguntarão. O pensador ou o historiador que emprega esta palavra sem ironia se desacredita. O “povo”, sabe-se muito bem a que está destinado: a sofrer os acontecimentos e as fantasias dos governantes, prestando-se a desígnios que o enfraquecem e o oprimem. Toda experiência política, por mais “avançada” que seja, desenrola-se à sua custa, dirige-se contra ele: o povo carrega os estigmas da escravidão por decreto divino ou diabólico. É inútil apiedar-se dele: sua causa é sem remédio. Nações e impérios se formam por sua complacência nas iniquidades das quais ele é objeto. Não há chefe de Estado nem conquistador que não o despreze; mas aceita este desprezo e vive dele. Se o povo deixasse de ser débil ou vítima, se não cumprisse seu destino, a sociedade se desvaneceria, e com ela a história. Não sejamos tão otimistas: nada no povo permite considerar uma eventualidade tão bela. Tal como é, representa um convite ao despotismo. Suporta suas provações, às vezes as solicita, e só se revolta contra elas para buscar outras novas, mais atrozes que as anteriores. Sendo a revolução seu único luxo, precipita-se em sua direção, não tanto para obter alguns benefícios ou melhorar sua sorte, mas para adquirir também seu direito à insolência, vantagem que o consola de suas decepções habituais, mas que logo perde quando são abolidos os privilégios da desordem. Como nenhum regime assegura sua salvação, o povo acomoda-se a todos e a nenhum. E, desde o Dilúvio até o Juízo Final, a única coisa a que pode aspirar é cumprir honestamente sua missão de vencido.

CIORAN, E. M., História e Utopia. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 20110.

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