Na República de Platão, em que política e ética se imbricam, submetidas à mesma idéia do Bem, a homonoia determinará uma das quatro virtudes características da alma do indivíduo bem como dessa alma ampliada que é a cidade: ela se definirá como sentido da hierarquia (IV, 432 a) e, com a justiça, virtude da estrutura, ela ordenará o fixismo das diferenças funcionais no interior de uma unidade orgânica. Ao contrário, um consenso de tipo sofístico é o resultado sempre precário de uma operação retórica de persuasão, que produz, em cada ocasião (é o kairos, esse belo jovem careca atrás, e que deve ser capturado pelo seu topete da frente), uma unidade instantânea inteiramente feita de dissensos, de diferenças. Esse substituto plural e temporalizado da identidade ontológica estende o modelo da cidade (homonoia: “consenso”), não apenas à relação das cidades entre si (homonoia: “concórdia”), mas também à maneira pela qual cada indivíduo, por não estar “em guerra consigo mesmo”, se relaciona consigo (homonoia: “acordo de si consigo”, cf. Estobeu, 11, 33,15 = 87 B 44a D.K.): é a unidade do “com” que se torna a matriz da unicidade.
Os retalhos do Peri homonoias, Sobre o consenso (sobre a concórdia, sobre o acordo, como se queira) atribuídos a Antifonte são por demais fragmentários para nos permitir avançar muito: eles nos levam, freqüentemente na forma de provérbio ou de fábula (a do avarento, por exemplo, ver supra), a considerar o tempo e o uso na efetividade das condutas, mas o termo homonoia só aparece para nós no título.
Por outro lado, seu Sobre a verdade, que certos fragmentos, recentemente descobertos, obrigam a repensar, constitui o mais longo texto autêntico que chegou até nós sobre a política de um sofista. Objeto de interpretações proliferantes (a propósito desse texto, falou-se de Hobbes, Rousseau, Kant, Sade), ele instaura, sem dúvida pela primeira vez, a oposição entre natureza e lei, reempregada em seguida, com valorizações contraditórias, por Sócrates e pelo Cálicles do Górgias, de Platão, ou pelo Trasímaco da República. Elas aí se distinguem não por sua idéia, mas por seu uso, sua utilização, sua utilidade, e, em particular, pelas conseqüências acarretadas por sua transgressão. A transgressão da necessidade natural produz um dano “segundo a verdade” (di’aletheian, fr. B, col. 11 e IlI): como testemunhado pela etimologização, não se poderia “escapar” (lathei, de lanthano, “estar escondido”, ibid., cal. II) à natureza, de tal modo que o castigo sempre ocorre. Ao contrário, a transgressão de uma regra convencional só produz efeito “segundo a opinião”, logo radicalmente diferente quando se opera sob o olhar do público ou no secreto do privado. Com esse secreto se opera evidentemente um retorno ao natural, mas a natureza não tem, então, mais nada de primeiro: é uma simples saída — que Antifonte descreve com acentos às vezes sadeanos – do imperialismo dessa legalidade que pretende coagir até mesmo os nossos sentidos e prescrever, por exemplo, aos olhos “o que devem ver e o que não devem ver” (ibid., col. 11 e III). Ora, essas mesmas leis que definem a cidade em que se vive são “o resultado de um acordo” ou “de um consenso” (homologetenta, ibid., cal. I e 11): esse é o papel da homonoia, em toda sua força de novidade e de ruptura em relação à ordem natural. Antifonte chega a inventar um neologismo para dizer que, de saída, o homem não é mais ser de natureza, mas ser de cultura: “cidadaniza-se” (politeuetai tis, ibid., col. I), dito de outro modo, se está no “existe” o âmbito político. Por conseguinte, o homem-cidadão está, de saída, confrontado às leis, embora possa ter interesse, mais uma vez, em entrar o menos possível em atrito com elas, sobretudo se são impotentes para defendê-lo do encadeamento das violências. Reencontra-se assim, de uma maneira que autoriza a crítica da lei após a constatação maciça de sua efetividade, essa substituição do físico pelo político característica da sofística, e a definição da legalidade política como partilha, acordo, e até mesmo – é o sentido próprio de homologia – acordo discursivo.
Antifonte, no muito controverso fragmento A, é sem dúvida o inventor de um outro neologismo: “barbarizar”. “As leis [?] daqueles que moram longe, não as conhecemos nem as veneramos. Nisso, de fato, nos tornamos bárbaros (bebarbarometha, fr. A, cal. 11, 9s.) uns em relação aos outros, ao passo que, por natureza em todo caso, todos, em tudo, da mesma maneira, somos naturalmente feitos para ser, ao mesmo tempo, bárbaros e gregos”: essa simples frase contribuiu para fazer de Antifonte um partidário subversivo e moderno da igualdade absoluta entre todos os homens. Trata-se, em todo caso, de substituir o fundamento natural da diferença grego/bárbaro, invalidado pela universalidade dos caracteres de espécie (“respiramos o ar, todos, através da boca e das narinas”), por um fundamento cultural, e mesmo político: a diferença na maneira de se relacionar com a lei. Sabe-se que “barbarizar” (é o traço incontornável do etnocentrismo) significará, geralmente, mais tarde, “falar de maneira ininteligível”, “fazer barbarismos”: certamente deve-se compreender que, para Antifonte, “barbarizamos” e perdemos nossa identidade de gregos, quando nos relacionamos com a lei de maneira puramente idiossincrática, renunciando à inteligibilidade e à universalidade, tanto as do logos quanto as da homologia. O que confirma, dentre outras coisas, a aproximação com textos da esfera de influência sofística, tal como Orestes, de Eurípides (“barbarizar” é recusar, com Orestes, a “lei comum” dos gregos e recair, assim, na bestialidade, cf. vv. 485-525), ou o diálogo entre Sócrates e Hípias relatado por Xenofonte (Memoráveis, IV, 4,16), em que Sócrates distingue a Grécia do resto do mundo porque uma lei prescreve a seus cidadãos “prestar o juramente de homonoia“. Se, como Bignone, quiséssemos ler Kant em Antifonte, seria, então, não o da autonomia da consciência moral, mas, antes, o da típica da razão pura prática, que recomenda agir como se a lei fosse universal, tão universal quanto uma lei natural.
CASSIN, Barbara, O Efeito Sofístico. Trad. de Ana Lucia de Oliveira, Maria Cristina Franco Ferraz, Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2005.