Só se suicidam os otimistas, os otimistas que não conseguem mais sê-lo. Os outros, não tendo nenhuma razão para viver, por que a teriam para morrer? (Silogismos da amargura)
Poucas são as filosofias capazes de equilibrar, numa rara harmonia na tensão, os princípios ontológicos antinômicos da necessidade e da contingência; ora necessidade, ora contingência, ou uma ou outra, dificilmente necessidade-contingência — negligenciando-se quase sempre um oposto complementar sem o qual o princípio escolhido não teria nenhuma razão de ser.
Diz-se que o drama do sujeito moderno é a sua inaptidão para lidar com (cope with) a contingência ontológica radical da existência, da sua existência. Mas, quanta necessidade não oculta, não pressupõe essa dramática contingência?
Por outro lado, as filosofias fatalistas/deterministas — a afirmar a necessidade do dado, do fatum, a rigidez inexorável de uma lei ou ordem universal — podem muitas vezes perder de vista o caráter contingente, acidental, fortuito, casual, da existência, desse ou daquele acontecimento, ou mesmo de um determinado “destino”.
Como observa Clément Rosset, em A anti-natureza, o oposto de necessidade se diz de muitos modos: acaso, contingência, liberdade…
O drama da condição humana não é (apenas) estar submetida a uma inexorável necessidade (digamos, a morte), nem (apenas) a um acaso imponderável (digamos, as possibilidades infinitas da vida, da existência); o drama da condição humana é duplo, bivalente, duplamente inescapável: o ser humano encontra-se exposto a dois inconvenientes, a duas formas de angústia, a duas “fatalidades”: a certeza da necessidade e a incerteza do acaso, o terror metafísico do ser-para-a-morte e o terror (ou, menos dramaticamente, a vertigem) igualmente metafísico(a) perante o fato de ser-aí, de existir, de estar exposto a todas as possibilidades, alegres ou amargas, da vida.
Cioran captou bem, e mais do que isso, expressou de forma sublime essa ambivalência da condição humana trágica. Ele que, no aforismo tríptico “Variações sobre a morte”, do Breviário de decomposição, escreve: “É porque ela não repousa sobre nada, porque carece até mesmo da sombra de um argumento que perseveramos na vida. A morte é demasiado exata; todas as razões encontram-se de seu lado. Misteriosa para nossos instintos, delineia-se, ante nossa reflexão, límpida, sem prestígios e sem os falsos atrativos do desconhecido. De tanto acumular mistérios nulos e monopolizar o sem-sentido, a vida inspira mais pavor do que a morte: é ela a grande Desconhecida.”
Tal é o poder da “Grande Desconhecida”, e o fascínio irresistível que exerce sobre nós (de onde essa “tentação de existir” que será título de um ensaio de um de seus livros, de mesmo título). O problema (existencial) humano fundamental, para Cioran, é: como evoluir no duplo estranhamento, no duplo horror da morte e da vida, incapaz de assimilar uma e outra? Como tirar proveito dessa inaderência instintiva à vida que é a timidez? (“A timidez é um desprezo instintivo da vida; o cinismo, um racional”, lemos em Amurgul gândurilor) Como tirar proveito das suas obsessões, notadamente a obsessão do Irreparável — a morte?
Eis a tripla aporia cioraniana: “‘Que é a verdade?’ é uma pergunta fundamental. Mas ínfima comparada com: ‘Como suportar a vida?’ A qual por sua vez empalidece ao lado desta: ‘Como suportar-se a si mesmo?’ — Eis a pergunta capital à qual ninguém está à altura de dar-nos uma resposta.” (Écartèlement)
O “ser” humano é um nada em decomposição, composto de necessidade e acaso. E a vida, como escreveu belamente Bergson, em A energia espiritual, é “a liberdade inserindo-se na necessidade e transformando-a em proveito próprio”. A liberdade é tão vertiginosa, tão fatal, como bem intuiu Sartre (“estamos condenados a ser livres”, assim como o Ser de Parmênides não pode não ser), quanto é irrespirável a ausência de liberdade. No limite, só há uma questão: aceitar o desafio absurdo, a “criação sem amanhã” (Camus), ou suprimir-se. Só há dois instantes, duas eternidades: a da vida e a da morte — e elas “evoluem” paralelamente, juntas, unidas, confundindo-se numa mescla de realidade e sonho, ser e não-ser, duração e esgotamento.
Por fim, um aforismo igualmente do Breviário de decomposição: “Lipemania” — outro nome (já caído em desuso) para dizer “melancolia”, “tristeza”, “depressão” (do francês lypémanie, composto dos radicais gregos lype, “pesar”, “tristeza”, e mania). Aí, o autor se coloca a questão desse desafio último, entre a vida e a morte, a tentação de existir e a tentação de deixar de existir:
Por que não tens a força de te subtrair à obrigação de respirar? Por que aguentar ainda este ar solidificado que bloqueia teus pulmões e se despedaça contra tua carne? Como vencer essas esperanças opacas e essas ideias petrificadas quando, alternadamente, imitas a solidão de uma rocha, ou o isolamento de um escarro fixo nas cordas do mundo? Estás mais afastado de ti mesmo que de um planeta não descoberto, e teus órgãos, voltados para os cemitérios, invejam seu dinamismo.
Cisão, ruptura (consigo mesmo); “pensar contra si”, autoabandono, “traição modelo“. Devir objeto: “Outrora tive um “eu”; agora sou apenas um objeto… Empanturro-me de todas as drogas da solidão; as do mundo foram fracas demais para me fazer esquecê-lo. Tendo matado o profeta em mim, como terei ainda um lugar entre os homens?”; devir autômato: “Conformista, vivo, tento viver por imitação, por respeito às regras do jogo, por horror à originalidade. Resignação de autômato: simular fervor e rir disso secretamente; só submeter-se às convenções para repudiá-las às escondidas; figurar em todos os registros, mas sem residência no tempo; salvar a cara, quando seria imperioso perdê-la.”
Em “Lipemania”, são colocadas em questão as razões de existir a partir da meditação acerca das razões da vida e as da morte (“Variações sobre a morte”). Após um elogio dos santos — mais precisamente o elogio desse “dom das lágrimas” que nenhum sentimento de ridículo intimida –, uma das passagens mais belas em toda a obra cioraniana:
Uma preocupação de honorabilidade em nossas “securas” imobiliza-nos como espectadores de nosso infinito amargo e comprimido, de nossas expansões que não acontecem. No entanto, a função dos olhos não é ver, mas chorar; e para ver realmente é preciso fechá-los: é a condição do êxtase, da única visão reveladora, enquanto que a percepção esgota-se no horror do já visto, do irreparavelmente sabido desde sempre.
A existência, o devir mesmo é, para Cioran, uma má duração, má repetição (monótona) do mesmo, é a idiotia do devir simulando “as caretas do absoluto”. Uma intuição e um sentimento não estranhos à filosofia estoica, para a qual não há neste mundo nada digno de surpresa ou espanto, pois tudo está previsto nos limites da necessidade natural. Neste “universo oficial”, nada de extraordinário vem arrancar-nos desse tédio fora do tempo, nada vem perturbar o eleatismo desse “futuro do pretérito” em que consiste a percepção idiota da duração. É o domínio inescapável do “elã em direção ao pior” (élan vers le pire), outra maneira de dizer “demonismo vital” (Nos cumes do desespero), o lugar por excelência desse “horror do já visto” (déjà vu), do irreparavelmente “já sabido (déjà su) desde sempre”. Mas o sabido, no caso, não é apenas a intuição da necessidade positiva, senão também a intuição do acaso imponderável, dessa “grande Desconhecida que é a vida” — é ela que inspira mais pavor, e tanto mais quanto se intui que a morte lhe é imanente , numa espécie de impureza ontológica “demoníaca”.
Na entrevista a Fritz J. Raddatz, Cioran comenta o episódio em que, tendo exclamado “não aguento mais!”, Elvira, a mãe, tocada pelo sofrimento do jovem insone, teria respondido: “Se eu soubesse, teria abortado…”