“Necessidade e Contingência, o ‘Irreparavelmente Já Sabido Desde Sempre’ e o Imponderável do Não-Saber Essencial (Rodrigo Inácio R. Sá Menezes)

Só se suicidam os otimistas, os otimistas que não conseguem mais sê-lo. Os outros, não tendo nenhuma razão para viver, por que a teriam para morrer? (Silogismos da amargura)

Poucas são as filosofias capazes de equilibrar, numa rara harmonia na tensão, os princípios ontológicos antinômicos da necessidade e da contingência; ora necessidade, ora contingência, ou uma ou outra, dificilmente necessidade-contingência — negligenciando-se quase sempre um oposto complementar sem o qual o princípio escolhido não teria nenhuma razão de ser.

Diz-se que o drama do sujeito moderno é a sua inaptidão para lidar com (cope with) a contingência ontológica radical da existência, da sua existência. Mas, quanta necessidade não oculta, não pressupõe essa dramática contingência?

Por outro lado, as filosofias fatalistas/deterministas — a afirmar a necessidade do dado, do fatum, a rigidez inexorável de uma lei ou ordem universal —  podem muitas vezes perder de vista o caráter contingente, acidental, fortuito, casual, da existência, desse ou daquele acontecimento, ou mesmo de um determinado “destino”.

Como observa Clément Rosset, em A anti-natureza, o oposto de necessidade se diz de muitos modos: acaso, contingência, liberdade…

O drama da condição humana não é (apenas) estar submetida a uma inexorável necessidade (digamos, a morte), nem (apenas) a um acaso imponderável (digamos, as possibilidades infinitas da vida, da existência); o drama da condição humana é duplo, bivalente, duplamente inescapável: o ser humano encontra-se exposto a dois inconvenientes, a duas formas de angústia, a duas “fatalidades”: a certeza da necessidade e a incerteza do acaso, o terror metafísico do ser-para-a-morte e o terror (ou, menos dramaticamente, a vertigem) igualmente metafísico(a) perante o fato de ser-aí, de existir, de estar exposto a todas as possibilidades, alegres ou amargas, da vida.

Cioran captou bem, e mais do que isso, expressou de forma sublime essa ambivalência da condição humana trágica. Ele que, no aforismo tríptico “Variações sobre a morte”, do Breviário de decomposição, escreve: “É porque ela não repousa sobre nada, porque carece até mesmo da sombra de um argumento que perseveramos na vida. A morte é demasiado exata; todas as razões encontram-se de seu lado. Misteriosa para nossos instintos, delineia-se, ante nossa reflexão, límpida, sem prestígios e sem os falsos atrativos do desconhecido. De tanto acumular mistérios nulos e monopolizar o sem-sentido, a vida inspira mais pavor do que a morte: é ela a grande Desconhecida.”

Tal é o poder da “Grande Desconhecida”, e o fascínio irresistível que exerce sobre nós (de onde essa “tentação de existir” que será título de um ensaio de um de seus livros, de mesmo título). O problema (existencial) humano fundamental, para Cioran, é: como evoluir no duplo estranhamento, no duplo horror da morte e da vida, incapaz de assimilar uma e outra? Como tirar proveito dessa inaderência instintiva à vida que é a timidez? (“A timidez é um desprezo instintivo da vida; o cinismo, um racional”, lemos em Amurgul gândurilor) Como tirar proveito das suas obsessões, notadamente a obsessão do Irreparável — a morte?

Eis a tripla aporia cioraniana: “‘Que é a verdade?’ é uma pergunta fundamental. Mas ínfima comparada com: ‘Como suportar a vida?’ A qual por sua vez empalidece ao lado desta: ‘Como suportar-se a si mesmo?’ — Eis a pergunta capital à qual ninguém está à altura de dar-nos uma resposta.” (Écartèlement)

O “ser” humano é um nada em decomposição, composto de necessidade e acaso. E a vida, como escreveu belamente Bergson, em A energia espiritual,  é “a liberdade inserindo-se na necessidade e transformando-a em proveito próprio”. A liberdade é tão vertiginosa, tão fatal, como bem intuiu Sartre (“estamos condenados a ser livres”, assim como o Ser de Parmênides não pode não ser), quanto é irrespirável a ausência de liberdade. No limite, só há uma questão: aceitar o desafio absurdo, a “criação sem amanhã” (Camus), ou suprimir-se. Só há dois instantes, duas eternidades: a da vida e a da morte — e elas “evoluem” paralelamente, juntas, unidas, confundindo-se numa mescla de realidade e sonho, ser e não-ser, duração e esgotamento.

Por fim, um aforismo igualmente do Breviário de decomposição: “Lipemania” — outro nome (já caído em desuso) para dizer “melancolia”, “tristeza”, “depressão” (do francês lypémanie, composto dos radicais gregos lype, “pesar”, “tristeza”, e mania). Aí, o autor se coloca a questão desse desafio último, entre a vida e a morte, a tentação de existir e a tentação de deixar de existir:

Por que não tens a força de te subtrair à obrigação de respirar? Por que aguentar ainda este ar solidificado que bloqueia teus pulmões e se despedaça contra tua carne? Como vencer essas esperanças opacas e essas ideias petrificadas quando, alternadamente, imitas a solidão de uma rocha, ou o isolamento de um escarro fixo nas cordas do mundo? Estás mais afastado de ti mesmo que de um planeta não descoberto, e teus órgãos, voltados para os cemitérios, invejam seu dinamismo.

Cisão, ruptura (consigo mesmo); “pensar contra si”, autoabandono, “traição modelo“. Devir objeto: “Outrora tive um “eu”; agora sou apenas um objeto… Empanturro-me de todas as drogas da solidão; as do mundo foram fracas demais para me fazer esquecê-lo. Tendo matado o profeta em mim, como terei ainda um lugar entre os homens?”; devir autômato: “Conformista, vivo, tento viver por imitação, por respeito às regras do jogo, por horror à originalidade. Resignação de autômato: simular fervor e rir disso secretamente; só submeter-se às convenções para repudiá-las às escondidas; figurar em todos os registros, mas sem residência no tempo; salvar a cara, quando seria imperioso perdê-la.”

Em “Lipemania”, são colocadas em questão as razões de existir a partir da meditação acerca das razões da vida e as da morte (“Variações sobre a morte”). Após um elogio dos santos — mais precisamente o elogio desse “dom das lágrimas” que nenhum sentimento de ridículo intimida –, uma das passagens mais belas em toda a obra cioraniana:

Uma preocupação de honorabilidade em nossas “securas” imobiliza-nos como espectadores de nosso infinito amargo e comprimido, de nossas expansões que não acontecem. No entanto, a função dos olhos não é ver, mas chorar; e para ver realmente é preciso fechá-los: é a condição do êxtase, da única visão reveladora, enquanto que a percepção esgota-se no horror do já visto, do irreparavelmente sabido desde sempre.

A existência, o devir mesmo é, para Cioran, uma má duração, má repetição (monótona) do mesmo, é a idiotia do devir simulando “as caretas do absoluto”. Uma intuição e um sentimento não estranhos à filosofia estoica, para a qual não há neste mundo nada digno de surpresa ou espanto, pois tudo está previsto nos limites da necessidade natural. Neste “universo oficial”, nada de extraordinário vem arrancar-nos desse tédio fora do tempo, nada vem perturbar o eleatismo desse “futuro do pretérito” em que consiste a percepção idiota da duração. É o domínio inescapável do “elã em direção ao pior” (élan vers le pire), outra maneira de dizer “demonismo vital” (Nos cumes do desespero), o lugar por excelência desse “horror do já visto” (déjà vu), do irreparavelmente “já sabido (déjà su) desde sempre”. Mas o sabido, no caso, não é apenas a intuição da necessidade positiva, senão também a intuição do acaso imponderável, dessa “grande Desconhecida que é a vida” — é ela que inspira mais pavor, e tanto mais quanto se intui que a morte lhe é imanente , numa espécie de impureza ontológica “demoníaca”.

Na entrevista a Fritz J. Raddatz, Cioran comenta o episódio em que, tendo exclamado “não aguento mais!”, Elvira, a mãe, tocada pelo sofrimento do jovem insone, teria respondido: “Se eu soubesse, teria abortado…”

Aquilo me confirmou que sou fruto do acaso, que não sou nada. É também a razão pela qual pude fazer uma autêntica obra de escritor. Não me impediu — e com isto acabarei com este assunto — de viver e escrever como se tivesse compreendido tudo. Os outros, os grandes filósofos, me pareciam mais ou menos limitados, infantis, ingênuos, vítimas e escravos de seus gênios. Ainda que eu goste da sociedade, sempre me senti um solitário, dividido entre o desprezo e a adoração de mim mesmo. As únicas pessoas com quem me entendi de verdade são pessoas que não deixaram obras. Por sorte ou desgraça, não eram escritores. Eram algo mais: mestres da repulsa. Um deles estudou teologia e estava destinado a ser pope, mas não chegou a sê-lo. Nunca, nunca esquecerei a vertiginosa conversa que tive com ele durante uma noite inteira, fazem cinquenta anos, em Kronstadt (Transilvânia). Depois daquela conversa, me pareceu tão necessário viver como morrer. Se não tens em si a paixão do insolúvel, não podes imaginar os excessos de que a negação é capaz, a impiedosa lucidez da negação. (Entretiens)

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