“O homem: corda sobre um abismo, passagem e declínio” – NIETZSCHE

Mas Zaratustra olhou para o povo e se admirou. Então falou assim:

O homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem — uma corda sobre um abismo.

Um perigoso para-lá, um perigoso a-caminho, um perigoso olhar-para-trás, um perigoso estremecer e se deter.

Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio.

Amo aqueles que não sabem viver a não ser como quem declina, pois são os que passam.

Amo os grandes desprezadores, porque são os grandes reverenciadores, e flechas de anseio pela outra margem.

Amo aqueles que não buscam primeiramente atrás das estrelas uma razão para declinar e serem sacrificados: mas que se sacrificam à terra, para que um dia a terra venha a ser
do super-homem.

Amo aquele que vive para vir a conhecer, e que quer conhecer para que um dia viva o super-homem. E assim quer o seu declínio.

Amo aquele que trabalha e inventa, para construir a casa para o super-homem e lhe preparar terra, bicho e planta: pois assim quer o seu declínio.

Amo aquele que ama a sua virtude: pois virtude é vontade de declínio e uma flecha de anseio.

Amo aquele que não guarda uma gota de espírito para si, mas quer ser inteiramente o espírito de sua virtude: assim anda ele como espírito sobre a ponte.

Amo aquele que faz, de sua virtude, seu pendor e sua fatalidade: assim quer ele, por causa de sua virtude, ainda viver e não mais viver.

Amo aquele que não quer ter virtudes demais. Uma virtude é mais virtude do que duas, pois significa mais laços em que a fatalidade pende.

Amo aquele cuja alma esbanja a si mesma, que não quer gratidão e não devolve: pois ele sempre doa e não quer se guardar.

Amo aquele que se envergonha quando o dado cai a seu favor, e que então pergunta: sou um jogador desleal? — pois ele quer perecer.

Amo aquele que lança à frente dos seus atos palavras de ouro e faz sempre mais do que promete: pois ele quer o seu declínio.

Amo aquele que justifica os vindouros e redime os passados: pois quer perecer devido aos presentes.

Amo aquele que açoita seu deus porque ama seu deus: pois tem de perecer da ira de seu deus.

Amo aquele cuja alma é profunda também no ferimento, e que pode perecer de uma pequena vivência: assim passa de bom grado sobre a ponte.

Amo aquele cuja alma transborda de cheia, de modo que esquece a si próprio e todas as coisas estão nele: assim, todas as coisas se tornam seu declínio.

Amo aquele de espírito livre e coração livre: assim, sua cabeça não passa de entranhas do seu coração, mas seu coração o impele ao declínio.

Amo todos aqueles que são como gotas pesadas, caindo uma a uma da negra nuvem que paira sobre os homens: eles anunciam a chegada do raio, e como arautos perecem.

Vede, eu sou um arauto do raio e uma pesada gota da nuvem: mas esse raio se chama super-homem. —

NIETZSCHE, Friedrich, Assim falou Zaratustra, Prólogo, § 4. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

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