Revista CULT, n° 64, 2002 (edição especial “Cristianismo e Modernidade”)
A cotidianeidade social cria uma ética do medo, ao converter a angústia, provocada pelo abismo transcendente, em uma ansiedade banal e (…). Mas ela cria também um fenômeno novo, no qual o medo está ausente e que lhe é mesmo claramente inferior: a banalidade. Seu perigo toma de surpresa inevitavelmente o mundo banal, e quando este é atingido, a liberação do pavor não se realiza por um movimento para o alto, mas sim como queda. A banalidade marca uma instalação definitiva na região inferior, onde não somente a nostalgia de um mundo supremo e a angústia sagrada diante do transcendente não existem mais, mas onde o próprio medo falta. A montanha desaparece do horizonte para sempre, deixando somente uma superfície infinita. A banalidade dissimula o trágico e a angústia da vida; nela, a cotidianeidade social, cuja origem remonta ao pecado, perde a lembrança dessa origem. Ela é plenamente satisfeita e goza da superfície do não-ser; ela marca uma rejeição definitiva na superfície, uma cisão radical com o substrato do ser, o terror de qualquer retorno a uma profundidade. (…). A liberação compreendida comum alívio de todo o fardo da vida, como obtenção do contentamento, engendra inevitavelmente a vitória da banalidade, pois dela resulta um abandono da profundidade e da originalidade, em favor do aburguesamento.
Nicolas BERDIAEV
De la Destination de l’Homme – Essai d’étique paradoxale
L’Age de d’Homme, Lausanne, pgs. 232/234.
A crítica “óbvia” do XIX
O século XIX marcou profundamente o entendimento que hoje temos da religião. Esse entendimento se caracteriza por uma suposta atitude crítica que teria, finalmente, levado a religião para um lugar no qual não mais produziria nada em termos de valor cognitivo. Religião como ópio, alienação, forma dissimulada de hierarquia política, ressentimento dos fracos, projeção da figura paterna ou daquilo que de “melhor” existe no ser humano – projeção essa que teria como desdobramento a perda da capacidade de atuar esse “melhor” pelo fato de colocá-lo fora de si –, enfim, como um modo de funcionamento marcado pela carência noética. Em uma palavra, sintoma psicológico, social, moral, econômico ou político. Arriscaria dizer que, mesmo entre muitos intelectuais que hoje se dedicam à atividade de “cientificamente” compreender a religião, esse diagnóstico se mantém. No que se refere ao dito senso comum, o fenômeno religioso cresce – fala-se num “retorno do religioso”. Tal crítica diria que esse fato se dá porque não teríamos conseguido erradicar suficientemente as causas dessa síndrome indesejável. Penso que essa crítica hoje já atingiu a condição, entre uma certa casta intelectual ilustrada, de uma platitude, ou seja, de uma banalidade “inteligente”. Uma conseqüência direta desse fato, entre outras, é um evidente analfabetismo filosófico-religioso devido ao fato, afinal, de que definir religião como sintoma humano não é um grande diferencial propedêutico, na medida em que o animal humano parece se definir pelo funcionamento sintomático generalizado (o tema da disfunção a priori do ser humano ao qual voltaremos na seqüência). Mesmo a psicologia profunda freudiana atesta esse fato: o homem é um animal doente. Quanto ao pesado resíduo contextual que expulsa a religião de um universo purista platonizante, também não se constitui em um diferencial significativo na medida em que não há no mundo humano nada que não se afogue em alguma espécie de carga contextual. O repouso na suposta evidência dessa crítica leva-nos a uma objetividade duvidosa, na medida em que passa-se a supor (ingenuamente, no mínimo) que o terrorismo cético (esse modo fundamentalista de praticar epistemologia) tem como vítima privilegiada os objetos da religião, “aderindo felizmente” aos demais objetos da cultura humana, o que é um evidente erro de repertório filosófico, erro esse encontrado mesmo entre vários ramos das práticas em ciências e nas atividades intelectuais afins, sendo a própria epistemologia a busca de responder a essa agressão cética feita a condição de agente noético do ser humano.
Entendo que o núcleo duro dessa crítica reside na percepção de que as diversas formas culturalmente instituídas de religião têm como foco unificador a atividade produtora de fantasmagorias (as divindades e suas distintas formas de socorro existencial) que visam acalmar o terror da contingência natural no ser humano – contingência essa materializada nas diversas manifestações localizadas de infelicidades. Essa definição da “essência” da religião enquanto sensação e resposta a essa ameaça é partilhada mesmo por grandes estudiosos da religião como Mircea Eliade. Sacrifícios ou liturgias, qualquer modo que seja de praticar religião teria como raiz essa desestruturação existencial profunda causada pela contínua exposição do homem à sensação de fratura ontológica evidente e a necessidade de enfrentá-la. Isso é, em parte, verdade, mas o modo de abordar esse processo é que normalmente é mal colocado: o homem em geral vive sob esse terror, alguns rezam, outros resistem e pensam, outros simplesmente mentem. No meio intelectual, grande parte hoje só mente, ainda que de modo sofisticado.
Uma outra forma de desqualificação da religião, desta feita, mais especificamente, da sua face filosófica, seria a prática teológica enquanto atitude cognitiva naïf: a submissão da razão à fé e a definição do pensamento religioso como uma espécie de racionalidade interna à dogmática ou como emanação racional desta mesma dogmática. Um exemplo disso é a típica busca de sustentação teórica da existência de Deus. Evidentemente que não pode haver virtú noética no pensamento religioso sem o reconhecimento básico de que Deus não é uma variável passível de controle epistemológico; portanto, parece-me que qualquer tentativa de compreender a validade noética da religião não passará jamais pelo desgaste inútil de uma “prova ontológica” ou, mais na moda atualmente, uma “prova ética quanticamente validada”. Esta, na realidade, é ainda mais miserável noeticamente do que a medieval (refiro-me à teologia escolástica que “provaria” Deus), na medida em que não passa de simples desconhecimento das estruturas conceituais finas da mecânica quântica, desconhecimento esse que acaba sendo instrumentalizado como modo retórico de manobrar a fragilidade do receptor da mensagem “redentora” via acomodação de restos das ciências naturais duras à agenda teológica auto-ajuda.
Ambas acusações, de agenciadora de fantasmagorias ou de desgaste intelectual em nome dessas mesmas fantasmagorias, são modos distintos de uma mesma realidade: a religião seria uma forma de wishful naïvité a serviço de uma pragmática rude de sustentação humana diante da agonia essencial. No caso da luta pela prova racional da existência de Deus, essa atitude instrumental desesperada se localizaria no fato de que Deus seria o argumento sustentador do caráter absoluto desejado por nossas respostas “salvíficas”, enquanto modo de enfrentamento do fracasso ontológico evidente e da violência relativista (e violência relativista implica um alto grau de probabilidade niilista, mesmo se levarmos em conta as ginásticas de um relativismo “benigno”, em favor do “inclusionismo das diferenças”).
Não acho que devamos tomar essas aproximações como termos que esgotam o pensamento religioso. Nem tampouco as ditas manifestações culturais religiosas instituídas são a religião na sua totalidade. Para dialogarmos com o pensamento religioso temos que ouvir o continente intelectual que é esse corpus, e não apenas reduzi-lo ao seu formato mais evidentemente condicionado pelas demandas pragmáticas desesperadas do ser humano. Aliás, contrariamente ao que possa parecer, não aceito a idéia de que seja o pensamento religioso aquele que detém o monopólio do imperativo pragmático de engenharia psico-social da sobrevivência. Penso que, na realidade, todo (pedagogia, psicologia, ciências sociais etc.) o pensamento ocidental vem se preparando para uma virada pragmatizante, virada essa que pode ser tomada ora como pura miséria noética (pensamento rude modelo “auto-ajuda”, “parente próximo” da revolta religiosa contra o naufrágio da existência), ora como manifestação de um certo ceticismo de fundo, às vezes construtivo (dimensão epistemológica consistente do modo pragmático de pensar, que tem um longa tradição, desde os céticos gregos, passando por Montaigne e Bacon, chegando à reflexão utilitarista e epistemológica de viés pragmatizante propriamente dita, essa mais contemporânea). Resumindo: o terror é condição geral do ser humano e o modo “medroso” de enfrentá-lo não é necessariamente religioso, muito pelo contrário.
Abandonando o senso comum
Minha hipótese é que compreender a religião (fora do entendimento do senso comum, e repito, a crítica do XIX é já senso comum, com todas as características de relaxamento nóetico que a postura do senso comum produz) implica muito conhecer aquilo que esses homens e mulheres produziram como esforço intelectual diante das várias dimensões da existência humana (incluindo aí, e isso é fundamental, toda a história filosófica das controvérsias epistemológicas; por isso, para começo de conversa, compreender o que é religião implica sólida formação epistemológica). A hipótese de que religião é essencialmente alívio da condição humana via instrumentos metafísicos inconsistentes é simplesmente falsa historicamente e filosoficamente. É falsa por no mínimo duas razões: primeiramente porque a realidade noética da religião (grosso modo, filosofia da religião) não pode ser definida como, simplesmente, um corpus constituído por instrumentos inconsistentes de socorro existencial. Só a falta de repertório justifica tal suspeita, senão má fé. Segundo, porque esse traço “instrumental metafísico inconsistente” (a “covardia religiosa”) não é de modo algum monopólio da filosofia da religião; ele é, aliás, habitué dos modos anti-religiosos de esclarecimento filosófico em geral (incluindo aí todas as formas distintas de ciências humanas desejantes) a serviço da chamada emancipação moderna – o humanismo moderno é uma forma de metafísica (ou fantasmática) mitigada, nada há que prove um a priori com relação à viabilidade da espécie humana. Afirmo que a maioria das militâncias contemporâneas em ciências humana é escrava desse a priori fantasmático: não é outra a razão da recusa contínua de modos de pensar que são supostamente “pessimistas” e indesejáveis, já que causariam uma depressão (na crença emancipatória) facilmente utilizável pela máquina reacionária.
A hipótese de Deus (e suas categorias associadas) não é um mero recurso repressor do terror cosmológico. Ela é, ao contrário, um campo noético de elaboração do pathos essencial do Homem e de seu estatuto de mera dança macabra entre os átomos, dança essa que acaba por lançá-lo à condição de uma referência vazia. O humanismo narcísico moderno (que não sabe o que fazer com essa angústia) produziu uma das maiores fantasmagorias já existentes, fantasmagoria essa que implica um gigantesco desgaste noético para sustentá-la, desgaste esse que nos coloca o risco de que em breve a condição humana de agente cognitivo seja reduzida à atitude pragmática rude do modelo auto-ajuda disfarçado em discurso pseudoscholar: a “mística” da suficiência ontológica do ser humano (projeto humanista de emancipação) é uma formação reativa ao terror da contingência (esse atavismo humano), e não uma teoria produto de uma base empírica que a verifica – o que a faz irmã do que na religião é tomado pela crítica do XIX como carência noética devido à covardia metafísica. Dito de outra forma: essa fantasmagoria humanista não tem nenhuma virtú noética auto-evidente, trata-se na realidade de uma agenda emancipadora que teme a mesma coisa que o religioso atávico teme: o Homem parece ser ontologicamente uma aporia. Minha hipótese é que o corpus filosófico-religioso é, de certa forma, mais capaz de enfrentar esse pesadelo porque carrega em si uma atividade crítica profunda com relação à condição humana e cosmológica, crítica essa que a maior parte do pensamento não-religioso emancipador não sustenta porque está comprometido com a viabilidade ontológica da existência humana (do contrário se faz niilista, por isso esse espetáculo risível das éticas ao portador atualmente, tentando produzir imperativos categóricos eficientes para recursos humanos…). A hipótese religiosa não é simplesmente a da existência de Deus, mas também um olhar agressivo sobre a crença naïf na viabilidade do Homem que sustenta o lugar de causa suficiente de si mesmo. Como Deus é uma variável sem controle epistemológico, o embate racional não deve se dar no nível da tentativa vã de sua comprovação, nem no do discurso do que se chama “redenção” ou “salvação” – tentativas essas que alimentam a inconsistente crítica do XIX, e que por isso mesmo geralmente soçobram no mar do pragmatismo rude auto-ajuda – mas colocando a atividade noética diante do abismo, realizando o caráter escatológico presente na razão humana: não é só Deus que é uma fantasmagoria cognitiva, o Homem como entidade ontológica diferenciada e axis mundi moral também o é, e o pesadelo materialista (para alguns, e não necessariamente só os religiosos, não é outra a razão que leva muitos religiosos a darem as mãos a não-religiosos na ladainha assustada anti-darwinista e contra a agressividade biotecnológica) está aí para reafirmar essa condição vaga do ser humano.
A hipótese de Deus implica (historicamente e filosoficamente) um método de Deus, método esse (que resumidamente poderíamos dizer que se trata de uma exegese da existência humana a partir “do ponto de vista de Deus”, como fala Heschel em sua obra The prophets, Perennial Classics) que tende a se reduzir na exata medida em que o corpus em questão cede a acordos propostos pelo terror da contingência, acordos esses que abraçam toda e qual forma de recurso pragmático degradado, pouco importando se acomoda compromissos teológicos ou não. Esse método se constitui na profunda e (muitas vezes) insuportável crítica que encontramos em grande parte do corpus filosófico-religioso que se abate sobre o conceito de humano e de cosmos natural (ou natureza), isto é, sobre a idéia de suficiência ontológica – alguns autores chamam isso de “crise profética”. Não é por acaso que a teologia mística (esse núcleo duro da religião) tem um momento duramente desconstrutivo da fisiologia antropológica e cosmológica anterior ao instante extático em si, normalmente sendo este segundo instante impossível de se manifestar sem o momento desconstrutivo que lhe condiciona.
Assim sendo, conhecer religião de modo consistente demanda um diálogo com seu corpus de modo não expropriador de seu conteúdo. Para tal, faz-se necessário deixar que suas categorias tenham voz, e não lançar sobre elas pobres esquemas redutores produzidos em áreas que lhe são estrangeiras. Este “teste de consistência noética” se faz na medida em que pensamos a religião a partir de suas próprias categorias (“direito” lógico comum em qualquer área do saber), e mais, à medida em que pensamos o mundo a partir de categorias religiosas, e aí tentamos ver se seu produto é uma fantasmática inconsistente ou um discurso articulado, capaz de criar algum ruído no debate humano (minha tese é de que justamente esse ruído, e não seus projetos redentores, é que é a raiz reativa do consenso analfabeto com relação ao corpus filosófico religioso: esse ruído é insuportável). Isso é religião como crítica, não só no sentido de uma crítica as coisas do mundo, mas também no sentido de religious criticism como em literatura: indaguemos sua virtú enquanto argumento e enredo (suas categorias estruturais e dinâmicas), que descrevem o drama essencial do ser humano. Neste sentido, descobrimos, por exemplo, que nem todo conceito de Deus é um recurso instrumental rude, e que muito da trama religiosa se dá fora (e mesmo em clara oposição) ao campo de ação dos recursos pragmáticos de sobrevivência – ao contrário do forte viés instrumental que se abate sobre as teorias tardias de emancipação, herdeiras do terror da contingência reprimido (a banalidade alegre ao qual faz referência Berdiaev na citação de abertura desse texto). Neste movimento, percebemos que a radicalidade da hipótese do Homem como aporia ontológica se revela como forte recurso argumentativo próximo ao ceticismo, operando como “teste” para o suposto incontrolável viés pragmático rude e alienante de toda e qualquer articulação noética dentro da religião. É aí, no confronto com a hipótese da aporia, que todo e qualquer pensamento radical deve se dar… [+]