O prefácio de O Desespero Humano (1849) é bastante elucidativo da problemática existencial — e religiosa — colocada pelo pensamento kierkegaardiano, e também da sua divisa intelectual existencial-religiosa em oposição ao “totalitarismo” racionalista do Espírito absoluto hegeliano.
“O professor, o mestre de estudos, o estudante e enfim o filósofo, amador ou formado não ficam na dúvida radical — vão ainda mais longe”, escreve ironicamente o filósofo dinamarquês no prefácio do referido livro, aludindo certamente a Descartes, que será nominalmente citado logo em seguida.
Cumpre notar o caráter ambíguo, se não equívoco, da “duvida radical”: não se trata, pois, da dúvida proposta por Descartes, dúvida intelectual e puramente teórica, ceticismo racional e metodológico como condição das verdades claras e distintas do cogito. Trata-se, pelo contrário, de uma dúvida do coração (como em Unamuno): ceticismo religioso como pré-requisito do “salto da fé”.
Segundo Kierkegaard, Descartes “não impôs a todos a obrigação de duvidar, nem proclamou a sua filosofia com veemência porque era um pensador tranquilo e solitário e não um guarda noturno encarregado de dar alarme.” (p. 109)
Na esteira dos Antigos (Sócrates, Platão, Aristóteles…), esses primeiros “racionalistas”, Descartes seria o proponente de uma “douta ignorância”. Duvidar e estar seguro da própria dúvida, com vistas ao saber (episteme) que desponta no horizonte da razão, sabedoria naturalmente lógica, própria do Filósofo (sempre racional, “prudente como a razão”, diz Cioran). Eis o ideal socrático retomado por Descartes, à sua maneira, e do qual divergirá um pensador existencial e religioso como Kierkegaard (pois, originalmente, existencialismo e cristianismo encontram-se unidos, o existencialismo é cristão de nascimento, na figura de Kierkegaard, patrono de todo pensamento existencial[ista]):
Disto fizeram os gregos antigos, algum tanto conhecedores da filosofia, tarefa para toda a vida, porque a prática da dúvida não se adquire assim em poucos dias ou escassas semanas. Tal era o terminus a que chegava o velho lutador já retirado dos combates, depois de haver guardado o equilíbrio da dúvida entre manhas e astúcias, de haver negado infalivelmente a certeza dos sentidos e do pensamento, de haver enfim desafiado, sem fraqueza, os tormentos do amor-próprio e as insinuações da simpatia — tarefa que a todos e para todos serve de iniciação. (p. 110)
Kierkegaard não se detém na dúvida, vai ainda mais longe; “ninguém hoje se detém na fé — vai-se mais longe”, queixa-se ele ironicamente, substituindo “dúvida” por “fé”, enquanto imperativo existencial do espírito e do coração. Reformula, assim a crítica filosófica clássica em termos de crítica religiosa, Antigamente,
era então a fé um compromisso aceite para a vida inteira; porque, pensava-se, a aptidão para crer não se adquire em poucos dias, ou escassas semanas. Quando, depois de ter combatido em luta leal e conservado a fé, o velho lutador experimentado chegava ao ocaso da vida, o coração mantinha suficiente juventude para não esquecer o tremor e a angústia que o tinham disciplinado enquanto jovem e que o homem maduro havia dominado, porque daqueles ninguém se livra inteiramente a menos que consiga ir mais longe desde muito cedo. O terminus onde chegavam essas veneráveis figuras é hoje o ponto de partida para cada um ir mais longe. (p. 110)
Não sem ironia crítica, religiosamente crítica, Kierkegaard não perde a oportunidade de rejeitar o título de “filósofo”, afirmando ironicamente não ter compreendido “nenhum sistema de filosofia se é que existe algum ou esteja concluso.” O seu problema — pessoal, existencial, religioso — não se formula, a partir de uma suspensão cética do juízo, de uma dúvida metodológica (e sempre escorada na matemática e na geometria) como a cartesiana, em termos de ciência e de saber racional-filosófico, mas, a partir da angústia e do desespero (expressões de uma dúvida inquieta, e inquietante, do coração), do temor e do tremor que são provocados pelo sentimento desse Absoluto misterioso e tremendum, no dizer de Rudolf Otto, conhecimento paradoxal e religioso da impossibilidade de toda salvação pela razão, constatação de que o saber racional não pode servir de alento para o coração, por ser puramente lógico-formal e não fornecer nenhum sentido, nenhum “conteúdo” válido ao coração (sendo este, ele sim, o domínio das “esferas que significam“, para falar como Cioran).
A Razão é assim humilhada em sua pretensão de suficiência natural. Ela afunda, cai num abismo de não-saber e dúvida, ao pretender um saber absoluto, ou seja, ao deificar-se (crítica de Kierkegaard a Hegel). De onde a noção de “síncope da liberdade”, esse desmaio ou desfalecimento da consciência subjetiva ao vislumbrar, ao intuir o nada em que se funda a sua própria, e sempre vertiginosa, liberdade.
A sabedoria e a seriedade da angústia, a gravidade do desespero (essa angústia condensada, concentrada, potencializada, ponto-limite do pecado, entre a vida e a morte, a impossibilidade de uma e de outra). O imperativo de fazer um bom uso da angústia (e do desespero, se for o caso), assim como Pascal escrevera, mais ou menos dois séculos antes, uma Prière pour démander à Dieu le bon usage des maladies [Oração para pedir a Deus o bom uso das doenças]. Levar a sério a angústia, enfrentá-la, esgotá-la, mas nunca renegá-la, ocultá-la de si, subestimá-la. Antes mergulhar na angústia, experimentá-la e vivê-la até a exaustão, ao limite do possível e do impossível.
E chegar a desesperar-se, então, não há vantagem maior para o ser humano, pensa Kierkegaard, benefício inestimável vizinho do “milagre” (pois não deixa de ser um milagre, ainda que aparência negativa, o poder-saber-desesperar-se o Homem). Desesperar-se de amor e de ódio, de vida e de morte, por tudo e principalmente por nada, morrer de vida e viver de vertigem. Existir é um milagre de cada instante no fundo desse inferno que é a “Criação fracassada”, obra de um “Fracassado do alto” a julgar por Cioran, mas não por Kierkegaard; e viver, eterno parto de si, eterno parir o ser (é “parir” ou para chorar?)
A divisa do pensamento kierkegaardiano pauta-se pela recusa do filosófico, entendido como razão pretensamente suficiente, e sobretudo do sistemático (nada mais desumano, nada mais exangue, isento de substância vital, do que um sistema filosófico; “a morte do espírito”, acrescenta Cioran). Kierkegaard rejeita para si o título de Filósofo, demasiado confiante na Razão natural e sua lógica da necessidade (vanitas aos olhos do pensador religioso), assim como rejeita a pretensão racionalista do sistema, da Razão pura, sistemática e totalizante: “O presente autor de nenhum modo é filósofo. É, sim, poetice et eleganter, um amador que nem escreve sistemas nem promessas de sistema; não caiu en tal excesso nem a ele se consagrou.”
Distante, portanto, do “mestre de estudos”, professor universitário, do catedrático de Filosofia ou mesmo de Teologia (dependendo de sua natureza), antagonista e alteridade existencial de um Hegel, que encarna como nenhum outro o espírito do Sistema e as pretensões (sempre totalitárias e abstratamente opressivas) da Razão absoluta (que não é outra que a sedução da serpente bíblica, pensa o filósofo dinamarquês: eritis scientes)
Por mais que admire o velho Sócrates, especialmente a ironia de sua sábia ignorância, o seu modelo existencial perfeito (no sentido de uma existência acabada, completa, plenamente realizada) é Abraão, o Cavaleiro da Fé. Para Kierkegaard, “escrever é um luxo suscetível de ganhar tanto mais significação e evidência quanto menos leitores e compradores tiver para as suas obras.” (p. 110). A sequência do que ele diz, sempre delineando a sua divisa existencial e religiosa, em oposição ao filósofo profissional, espírito abstrato, sistemático e cientificista (nenhum filósofo menos “positivista” do que Kierkegaard, pois existencial), não poderia soar mais atual, em tempos de instrumentalização do saber (“saber é poder”), politização integral de todas as esferas da vida e da existência (cf. A Rebelião das Massas de Ortega y Gasset). O autor do Desespero Humano e de Temor e Tremor, irônico como sempre,
não tem dúvidas quanto ao seu destino numa época em que se põe de lado a PAIXÃO para servir a ciência, época em que o autor que aspira a ser lido deve ter a precaução de escrever um livro fácil de folhear à hora da sesta e o cuidado de se apresentar com a cortesia daquele jardineiro do anúncio, que, com o chapéu na mão e o certificado do último a quem servira, se recomenda ao respeitável público. […] Inclino-me com profunda submissão diante de todo CHICANEIRO SISTEMÁTICO.
SÁ MENEZES, Rodrigo Inácio R., “Kierkegaard, precursor do ‘Antifilósofo’ cioraniano”, Portal E.M. Cioran Brasil, 4 de agosto de 2019.