À SOMBRA DAS SANTAS. Todos vivemos em verdades locais. Tudo o que pensamos é circunstancial. O pretexto define não só a qualidade do pensamento, mas também a do mundo; talvez sobretudo a do mundo. Pois não esquecemos que vivemos em um mundo de circunstância. Quantas vezes não somos tomados por um desejo violento de escapar do acidental deste mundo? Quantas vezes não se reduz a uma ilusão nossa paixão pelo fugaz? Para quem apelar então? Para os homens? Deus nos livre! Só para os santos. Sobre esses instantes nos quais a companhia dos santos nos dispensa da dos homens, de qualquer espécie de homens, mesmo dos poetas…
Sente-se a necessidade de ler os santos quando este mundo não pode mais constituir nem sequer uma lembrança, porque esse resíduo de existência que o caracteriza como pretexto, circunstância ou acidente se volatilizou no nada. Os santos não sabem o que significa o lado de cá. Eles carecem da noção de espaço. Por isso se transportam e nos transportam tão facilmente para outros mundos.
Não vamos na direção dos santos buscando consolo, mas para suprir nossa decepção terrena e humana com sensações de não-humanidade. Quem, na companhia dos santos, continue a sentir-se homem, tem ainda muito a aprender do mundo antes de poder desabituar-se dele. A santidade é um desacostumar-se do mundo. Chegamos tarde para entender as palavras da revelação de Santa Teresa: “Tu não deves mais falar com os homens, mas sim com os anjos.”
Santa Teresa D’Ávila – a mulher que reabilita todo um sexo condenado – ensinou-me sobre as coisas terrestres, mas especialmente sobre as celestes, mais do que todos os grandes filósofos. Me incomodaria que me qualificassem de discípulo de Schopenhauer ou de Nietzsche; mas poderia conter minha alegria se me chamassem o discípulo das santas?
O livro mais difícil de escrever, mas também o mais sedutor, creio que seria o que tratasse do processo pelo qual uma mulher se torna santa, ou o é. Quem apreenderá um dia o sentido último da santidade e o processo que leva tantas mulheres a pôr fim à sua condição? Hildegarda de Bingen, Rosa de Lima, Matilde de Magdeburgo, Lidvína de Schiedam, Angela de Foligno, Catarina Emmerich e tantas outras, alguém as devolverá à terra? Ou, para dizer melhor: elas nos reconduzirão ao céu?
Por que as pessoas nivelaram tanto as diferenças entre santos e santas? É verdade que a santidade não tem sexo, mas se esquece que para um homem é mais fácil empreender o caminho da santidade do que para uma mulher. Entre a mediocridade e a santidade está a sabedoria, que não é uma via anormal para o homem, mas o é para a mulher. Até agora não existiu nenhuma mulher sábia. Como chegam então as mulheres à santidade? Pode uma vocação divina explicar esse salto? Enquanto no homem o acesso à santidade é gradual, na mulher só pode ser vertiginoso, saltando por cima da sabedoria ou, mais correntemente, a contornando. Há uma grande renúncia na santidade feminina, mais do que na masculina. A única forma pela qual as mulheres superaram a sua condição medíocre foi a santidade. Só sendo santas é que produziram algo. No amor não acrescentaram nada de novo exceto sua presença.
E, se tentasse isolar do passado os momentos de minha vida mais difíceis de definir, me deteria necessariamente nos que passei lendo Santa Teresa. O delicado ardor de sua sede celestial; uma paixão lânguida pelo desapego terreno; o erotismo divino transfigurado em profetismo e caridade. Se não tivesse estudado a obra dessa santa espanhola, jamais teria entendido o mundo que nos desvela o êxtase e, sobretudo, as sensações que o sucedem. Quem deu um dilacerante encanto, um sabor dramático e uma dolorosa atração ao gosto apaixonado pela morte, resultado da plenitude extática, desse celestial espasmo que esgota o vital, com maior intensidade que Santa Teresa? O excesso interior leva à aspiração mística na direção da morte. Só que Santa Teresa era demasiado cristã para não ver na morte a via para uma grande realização.
Quando não se pode mais suportar as ideias, pode-se viver com os santos e santas em um mundo para além dos pensamentos. Embora tema mais ser santo do que leproso, reconheço nos santos a vantagem com relação às outras formas de realização, vantagem que consiste na distância infinita das ideias. A santidade não conhece a dialética. Ser prevalece sempre sobre pensar; ou, melhor dizendo, o pensamento não acrescenta nada à existência. O que me faz não odiar os santos é sua atitude antifilosófica. Até quando vamos ter de afirmar que as ideias não são um apoio?
A santidade é a genialidade do coração. Do coração nasce um mundo novo; o entusiasmo demiúrgico do coração sobrepõe-se aos mundos. A inspiração criadora do coração é a chave para a compreensão dos santos. O capítulo principal de uma cardiótica, que se ocupasse do sentido e da lógica do coração, teria de tratar dos santos e do infinito de seu coração. Às vezes tenho a aguda impressão de que o coração de Santa Teresa excede as dimensões do mundo e então gostaria de ver-me embalado no coração de uma santa. Na linguagem mística a amplitude do coração não tem equivalente no nosso mundo. E como o teria se nosso mundo não é o dos santos?
Qual pode ser o supremo orgulho para o homem? Infringir as leis da natureza. A massa as confirma e as ilustra continuamente; os outros também… Os heróis e os gênios, raramente; os santos, nunca. Eles não lutam mais com a natureza porque não são mais natureza. Por isso é tão pouco natural ser santo… Confirma e ilustra as leis da natureza aquele que vive no fluxo anônimo do ser. Existe uma região na qual mesmo os santos perdem seu nome. Trata-se da divindade. Os santos só perdem seu nome diante da divindade porque só diante dela a pessoa é um erro. Quem sabe se o anonimato em Deus não é a única presença…

Alguém já ficou olhando com insistência o retrato de um santo? Observou detidamente seu olhar? Gosto desses olhos desprendidos dos objetos, amo os olhos que não olham para a terra, os olhares dirigidos para o alto. Quando penso no retrato de São Francisco de Assis de Zurbarán, começo a entender por que a luz interior cega e torna o olho insensível à luz exterior. Realmente: para que olhar para fora quando o espetáculo interior é um tumulto e uma delícia divina? A fisionomia dos santos expressa a deserção do mundo. O distanciamento extremo do individual, do imediato passageiro, das sugestões do momento confere a seu rosto uma palidez transcendente. O sangue não pode mais palpitar na eternidade.
Nossa completa decadência se manifesta na timidez com que olhamos para o céu. Quantos têm o hábito de olhar para o alto? Creio que nós todos pecamos contra as alturas. O homem moderno, mais ainda que o homem de sempre, só olha em silêncio para baixo. Comparado ao céu todos os nossos ideais são traições. O mistério que há nos olhares dos santos não é uma reação adequada ao claro-escuro do mundo exterior, tal como nos acostumou um certo romantismo, mas o desinteresse pelo jogo fugidio de luz e sombra em que vivemos.
Por mais que a santidade signifique piedade perante as coisas, não as salva em nada porque, da perspectiva de nosso mundo, todo olhar para o alto é uma traição. O céu anula as coisas, e, mesmo se a santidade quer santificar todas elas, só consegue torná-las mais pálidas diante dos esplendores transcendentes. A terra não ganhou nada com os santos, cuja glória só conseguiu salvá-la pelo que ela não é. Seja como for, diante da santidade a terra perde suas cores. Os esforços dos santos não conseguirão nos levar para além da zona intermediária entre o céu e a terra.
Huysmans, que no século passado compreendeu melhor que ninguém os santos e as santas, debruçou-se em um livro sobre a extraordinária vida de Santa Lidvina de Schiedam. Os infinitos sofrimentos desta santa, o caráter fantástico e inimaginável de sua existência só tem um sentido para aquele que quisesse atenuar a amargura de sua própria condição comparando-a com o infinito do sofrimento da santa. Uma leitura objetiva e indiferente converte o monumental desse drama, mais divino que humano, em uma monstruosidade. Realmente: que sentido pode ter para um ser qualquer que Santa Lidvina tenha passado na cama quase quarenta anos? Que nesse tempo não tenha comido mais do que uma pessoa normal comeria em quatro dias? Ou que sua carne tenha se decomposto a ponto de se tornar um cemitério, mas um cemitério da perfeição na bondade? Um acidente de patinação, ocorrido quando tinha dezesseis anos, colocou a sua vida inteira no caminho do sofrimento, isto é, da santidade. De filha mais bela de Schiedam, tornou-se a mais feia. Reduzida só a pele e ossos, oferecia um espetáculo repugnante de perfeição. Passou sua vida chorando ininterruptamente – pois Lidvina não conheceu o sono – não para se lamentar de sua sorte, mas para implorar a Deus para que a tornasse digna de padecer todos os sofrimentos dos outros, para suportar e tomar para si as misérias dos mortais. Em suas bochechas, o fluxo ininterrupto das lágrimas havia cavado dois profundos sulcos. E te perguntas: de um corpo ilusório, como puderam brotar tantas lágrimas? E somos tentados a responder que as lágrimas têm origem celeste e que são outros quem, chorando, as derramam. Santa Rosa de Lima dizia que as lágrimas são o maior dom do homem. Creio que o paraíso também as conheceu…
Mas no leito de morte se consumou o prodígio. Lidvina recobrou sua beleza anterior ao acidente que a condenou à perfeição e à santidade. Os traços de seu rosto se coloriram de um frescor virginal, e de seu corpo emanaram envolventes odores como em um encantamento olfativo.
Na santidade tudo é possível, mas nada é explicável. Aí reside seu equívoco encanto. O indefinível aumenta sua atração, mas aprofunda nossa indecisão e perturba a segurança de nossa atitude. Ninguém pode saber nada de preciso da santidade e ninguém pode estar seguro de seus sentimentos com relação a ela. Ninguém gostaria de ser santo; mas o mundo sem a santidade seria um vazio imenso, assim alguém tem de expiar na santidade nosso nada cotidiano.
A diferença entre um santo e um gênio consiste em que, no primeiro, cada passo na vida é um progresso na santidade, de modo que a maturidade indica sempre um apogeu, enquanto no gênio o aumento da idade traz junto, na maior parte das vezes, uma diminuição da genialidade. Um gênio é uma explosão e um dinamismo que não cabe cultivar na perfeição, porque as criações geniais não se condicionam, não se totalizam e, qualitativamente, não são progressivas.
A santidade, que pressupõe essa genialidade do coração da qual falamos, é desprovida da espontaneidade única da qual nascem as obras geniais; em troca, possui a vibração contínua e ascensional que determina cada vida de santo como uma coroação. Os santos, ao contrário dos heróis, não caem, porque, para eles, o último momento da vida é o cume mais alto, resultado da adição sucessiva de todos os que o precederam, e sua distância do mundo elimina o conflito e suprime a tensão de um dualismo que gera a queda trágica do herói. Os santos, comparados aos heróis e aos gênios, têm uma via segura e direta, embora possam sofrer e sofrem muito mais que estes. Os santos são os únicos seres que tiram proveito do sofrimento. Não em vão esta é sua única recompensa, como dizia Pascal.
CIORAN, Emil, O Livro das Ilusões. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.