“Aniquilação”, ou da Anti-Natureza – Rodrigo MENEZES

Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v. 12, nº 2, p. 80-104, 2019.

RESUMO: Trata-se de analisar o filme “Aniquilação” (2018) à luz da filosofia trágica de Clément Rosset (1939-2018), particularmente seu livro de 1973, A anti-natureza. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma homenagem ao filósofo, que faleceu semanas após o lançamento de “Aniquilação”, em março deste ano. Recorre-se ao conceito rossetiano de “anti-natureza” (anti-nature) para discutir a temática de “Aniquilação” e levantar toda uma problemática concernente à antiga questão filosófica que se interroga acerca da natureza e do ser, enfim, da realidade última do que existe.
Palavras-chave: Aniquilação, Anti-natureza, Phýsis, Arkhé, Necessidade, Acaso, Artifício, Filosofia Trágica.

ABSTRACT: This paper undertakes a philosophical analysis of the original motion picture “Annihilation” (2018) in light of Clément Rosset’s tragic philosophy, namely his book released in 1973, L’anti-nature. It is all at once a hommage to the philosopher who passed away just weeks after the debut of “Annihilation”, in Mars 2018. We shall deploy Rosset’s concept of “anti-nature” to discuss the film’s argument and raise a set of questions concerning the old philosophical issue that questions nature, being, and the ultimate reality of what exists.
Key-words: Annihilation, Anti-nature, Phýsis, Arkhé, Necessity, Chance, Artifice, Tragic Philosophy. (English version)


“Conjunções o todo e o não todo, o convergente e o divergente, o consoante e o dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas.”

Heráclito

“A natureza é obstinada e lenta em suas operações. Quando se trata de distanciar, aproximar, unir, dividir, amolecer, condensar, endurecer, liquefazer, dissolver, assimilar, ela sempre caminha para seu objetivo com os mais imperceptíveis passos. Já a arte se apressa, cansa e relaxa. A natureza gasta séculos para preparar rusticamente os metais; a arte se propõe a aperfeiçoá-los em um dia. A natureza gasta séculos para formar as pedras preciosas, a arte pretende imitá-las num instante.”

Diderot, De l’interpretation de la nature

“Quanto mais natureza se é, menos se é artista.”

Cioran, Breviário de decomposição

A anti-natureza é o título de um livro do filósofo francês Clément Rosset (1939-2018), mas serviria muito bem de subtítulo a “Aniquilação” (Annihilation, 2018), longa-metragem protagonizado por Natalie Portman e dirigido por Alex Garland. Nesta ficção científica, uma equipe de mulheres de diferentes áreas de especialização tem a missão de adentrar uma região florestal isolada pelo governo dos EUA por causa de um campo magnético anômalo que ali se instalou após um meteorito atingir o farol numa praia próxima. O campo está se expandindo numa velocidade vertiginosa e, caso não seja controlado, tende a englobar todo o planeta.

Nenhuma das equipes enviadas anteriormente retornou para relatar o que acontece no interior da chamada “Área X”. Na verdade, uma única pessoa conseguiu escapar de lá: Kane, o marido de Lena (Portman), um dos cientistas da última expedição. Ao embarcar na expedição, anos antes, ele não pudera revelar à esposa aonde estava indo nem o teor da missão. Sabia que poderia nunca voltar. Após mais de um ano desaparecido, então, reaparece em casa um dia, para a surpresa – e felicidade maior – de Lena. Mas ele está claramente estranho, diferente, outro. Não demora muito para que Kane comece a passar mal e ter convulsões hemorrágicas. Lena chama uma ambulância e segue junto com ele. No caminho, porém, carros pretos sem identificação e em alta velocidade interceptam a ambulância, arrancando o casal de dentro para levá-lo com eles. Ela acorda dentro de um laboratório na base militar instalada perto da “Área X”. Seu marido também encontra-se lá, na UTI, com falência múltipla dos órgãos.

O interrogatório da Razão

A cena inicial mostra uma sala de interrogatório inteiramente branca: homens hermeticamente protegidos por roupas antirradioativas interrogam Lena, abatida, desorientada. Atrás de uma parede de vidro, um grupo de cientistas acompanham o interrogatório, atentos. Ela é a única sobrevivente da missão. Um dos interrogadores lhe diz que ela e suas companheiras permaneceram dentro da “Área X” durante meses. Lena responde que, na sua percepção, é como se tivessem ficado lá apenas dias.[1] Ela é questionada sobre o destino de suas companheiras. Confirma que duas delas morreram, mas à pergunta sobre o destino das outras duas, responde, com um ar cansado: “Eu não sei”. O sentido profundo desta frase – filosoficamente tão significativa, tão “socrática” –, repetida diversas vezes ao longo do interrogatório, transcende o âmbito do conhecimento factual sobre o paradeiro das companheiras desaparecidas; é, mais do que isso, a resposta a uma pergunta de ordem metafísica. O que vemos ali é a Razão interrogando a Natureza e esperando dela respostas satisfatórias. Insatisfeito com a insuficiência destas, o interrogador insiste: “Mas então o que você sabe?”  Lena abaixa a cabeça e se cala, sem resposta.

Concepções da phýsis: de naturezas e anti-naturezas

“Aniquilação” prima por colocar, como pano de fundo à narrativa, a clássica questão filosófica que se interroga acerca da natureza – phýsis, em grego –  constitutiva dos seres. O argumento do filme alinha-se à posição geralmente associada aos sofistas e céticos da Antiguidade, em oposição aos filósofos que, como Platão, postulavam a existência disto que nomeamos, a partir do latim, “natureza”. Ora, o conceito de natureza (phýsis, natura), em seu sentido filosófico profundo, vai muito além do que se costuma entender ordinariamente por “natureza”. A que se refere quando se fala de uma “natureza”, de algo que é, que ocorre naturalmente? O que é “(o) natural”? A vida que se gera, desenvolve e morre? A evolução das espécies? A ordenação hierárquica dos seres, do mineral ao vegetal e ao animal? A que se opõe, afinal, “o natural”? O oposto do natural (tò physikon) pode ser dito de muitas maneiras.

Diferentemente do seu entendimento nos dias de hoje, herdado em grande medida da ciência moderna, a phýsis é, em suas origens, um conceito eminentemente metafísico. Por “metafísica”, entenda-se uma racionalidade especulativa e transcendental que busca ir além das aparências e da experiência imediata dos sentidos.[2] Desde os pré-socráticos, como Tales, Heráclito, Demócrito, Empédocles, entre tantos outros, a filosofia se pôs a indagar sobre o princípio (a arkhé) e a natureza última dos seres, dos fenômenos, de tudo o que vem a ser, dos entes que existem. Este princípio, esta causa não é apenas mais uma dentre aquelas determinadas no interior do mundo fenomênico (espaço e tempo): trata-se de pensar a Causa primeira, o primeiro Princípio, transcendente à experiência sensível, à empiria. Para Tales de Mileto, era a água (ou uma substância primordial de natureza análoga); para Anaximandro, conterrâneo seu, era o ápeiron, um princípio puramente indeterminado, ilimitado, infinito, eterno, sem nenhuma analogia com nenhum dos elementos físicos; para Empédocles, os quatro elementos (fogo, ar, terra e água). Phýsis é o resultado da ação de phýestai, “brotar”, “nascer”, “surgir”.

Tudo o que existe surge de um princípio único, ou múltiplo, conforme a concepção do pré-socrático. Da mistura de diversos elementos, ou do desdobramento a partir de um único, surge então a diversidade de tudo o que existe, a multiplicidade de formas possíveis e atuais, dentro dos limites fixados pela necessidade. A categoria do necessário (enquanto atributo da phýsis), em seu sentido ontológico/metafísico, opõe-se ao acaso e à contingência (inércia da natureza inanimada), por um lado, e à liberdade e à arbitrariedade, por outro (abertura do homem ao indeterminado e ao imprevisível, a partir do espírito criador). Ela tem a força de uma lei universal e inexorável contra a qual, segundo o poeta Simônides de Ceos (c. 556-468 a.C.), nem mesmo os deuses podem lutar. Todas as coisas, todas as existências submetem-se às condições e limitações impostas pela Necessidade, correspondendo, na mitologia, à divindade chamada Ananké: mãe das Moiras, é senhora do Destino e dos destinos, do Fatum. “Tem de ser assim… Não pode ser de outra forma… É necessário que… e não…” – eis como se expressa Ananké, que reina soberana sobre todos os seres, mortais e imortais. A necessidade ontológica que circunscreve e delimita o domínio do ser circunscreve e delimita também o domínio da razão (logos), fazendo-os coincidir onto-logicamente: os limites e condições do ser correspondem aos limites e condições do conhecer.

A anti-natureza, de Clément Rosset, é ao mesmo tempo um tratado de antimetafísica e um manifesto artificialista. A tese central do livro é que devemos abandonar o conceito de natureza por tratar-se de um pré-conceito atávico, uma superstição metafísica, uma “miragem naturalista” em suas palavras.[3] “Natureza” que se define, segundo o autor, como um terceiro domínio, distinto da matéria inerte (acaso) e do artifício arbitrário do gênio humano.[4] Opõe-se, por um lado, ao artificial e ao técnico (conotação antropomórfica), e, por outro, ao acaso e ao inerte. É pelo que possui de arbitrário, imponderável, imprevisível, “espontâneo”, que a arte/artifício do homem opõe-se ao puramente natural.[5] Essa entidade universal – estofo e princípio gerador de tudo o que vem a ser – não passa, segundo Rosset, de uma “miragem”, uma convenção ontológica.

Tarefa inglória, essa de argumentar contra o conceito e a ideia mesma de Natureza, a julgar pela força atávica do preconceito naturalista, praticamente inextirpável da psique uma vez que apela a necessidades e anseios profundos do homem, sempre em busca de fixidez, estabilidade, permanência. “Aniquilação” é uma produção que assume esta tarefa em forma de narrativa ficcional. Muitas teorias antinaturalistas e artificialistas, propostas e contrapostas há séculos ao paradigma naturalista dominante, subjazem à problemática do filme. A história da filosofia da anti-natureza empreendida por Rosset aborda as principais delas. Sua preocupação é eminentemente filosófica, e enquanto tal é inevitável que entre em conflito com as ciências modernas que, muito embora otimistas em relação à possibilidade de domínio da natureza mediante o artifício da técnica, não concluíram, se é que concluirão, o projeto de desmitificação da ideia de natureza. Pelo contrário, “não é totalmente evidente que o progresso da ciência moderna tenha conseguido problematizar seriamente os fundamentos do naturalismo”, “tamanha é a profundidade da ancoragem naturalista na consciência humana.”[6]

Desmitificar a ideia de Natureza não é tarefa das ciências naturais, cujo caráter eminentemente pragmático, não crítico-especulativo, não deixa de exigir algum grau de mistificação, preconceito, crença pura e simplesmente (quanto a isso, nada mais incômodo do que o ceticismo). Por outro lado, ela vem sendo desmitificada há milênios por pensadores cuja preocupação é antes filosófica e artística do que científica, metafísica do que técnica. De Górgias[7] a Lucrécio, de Pascal a Leopardi, de Nietzsche a Cioran, toda uma tradição de pensadores, poetas e artistas vêm minando as estruturas da ideia de Natureza, sem no entanto sugerir “remédios práticos destinados a impedir os efeitos terríveis dessas pseudoforças provenientes de um acaso que se disfarça em pseudonatureza.”[8] Fora dos continentes metafísicos da Natureza, nos aproximamos do território do Trágico, pois a anti-natureza nega que exista, na “natureza”, algo mais necessário do que o artifício, que por sua vez se liberta da necessidade para ser cúmplice do acaso.

A modernidade perdeu o sentido metafísico profundo da ideia de Natureza, doravante imanentizada, de onde a redução da problemática que lhe corresponde a um escopo meramente técnico e experimental, destituído de toda espessura, de toda transcendência, de toda unidade subjacente. O fato de que os antigos se debateram com a ideia de uma Natureza vista como indomável e inimitável, e que eles, muito mais do que os modernos, contestaram a fundo essa ideia tão arraigada na psique ocidental, “mostra que o debate entre natureza e artifício não se situa na perspectiva de uma natureza reprimida pelo artificio (natureza moderna), mas no panorama de uma interrogação mais vasta e mais profunda que abarca as noções de necessidade e de acaso.” [9] Segundo Rosset, a concepção naturalista vem resistindo a ataques tão frequentes quanto violentos:

Desde a Antiguidade, por Empédocles, pelos Sofistas e Lucrécio; até o início da filosofia moderna, por Bacon – talvez o primeiro pensador a denunciar a distinção entre artifício e natureza – e seus principais contemporâneos (com exceção de Descartes); por Nietzsche: “A vida não é senão uma variedade da morte, e uma variedade bastante rara”; pela biologia moderna, cuja tendência seria, preferencialmente, considerar o natural como o artificial continuado, como um caso particular – e favorável – do artifício, e, contrariamente à assertiva de Diderot, a natureza, de ordem fundamentalmente artificial, somente se distinguiria do artifício humano ao proceder de maneira bem mais rápida que ele.[10]

A Anti-Natureza

O autor chama a atenção para o fundamento antropomórfico do preconceito naturalista, de onde o seu profundo enraizamento na psique. O “natural” seria “o que se faz sem o homem”,[11] sendo que grande parte disso que se produz a despeito dele, ele não seria capaz de realizar nem com todos os seus esforços, apesar de toda ciência, tecnologia, engenhosidade. Como poderia ele reinventar a vida, inventar a imortalidade? (limitação à parte, não é outra a sua ambição titânica, o desejo de dominação da natureza, algo que a mitologia antiga intuiu tão bem[12]). Fascinado e espantado com a multiplicidade dos seres, com a riqueza dos fenômenos em seu contínuo vir-a-ser, ele tende a projetar, em sua indiferença muda, que nada tem a nos dizer, qualidades e sentidos humanos. Nosso apego à ideia de Natureza é mediado e reforçado pela ideia de uma “natureza humana”; se não fosse por esta, que mais diretamente nos diz respeito, o preconceito naturalista perderia sua força. Dois preconceitos que se reforçam mutuamente: se há uma natureza humana, uma essência do homem na qual eu participo, então todas as coisas devem possuir a sua natureza própria, a sua “essência”, o seu modo natural e necessário de ser.

A oposição entre natureza (metafísica) e acaso, natureza e artifício, entre necessidade e contingência, necessidade e liberdade, possui implicações cruciais para a existência humana e para a vida em geral. Pensemos, por exemplo, numa célula cancerígena, um tumor: não seria ele, esta anomalia destrutiva que se devora a si mesma e tudo mais ao seu redor, apenas um modo possível de ser da “natureza”? Ou seria a natureza “demente”? Não seria o câncer algo “natural”, previsto na ordem da vida? Como determinar a fronteira entre o natural e o antinatural, o normal e o paranormal, o necessário e o extraordinário? Se tudo é, no fundo, a manifestação de um jogo de artifícios do acaso, por que não pensar a morte como um acidente, um erro, algo que não deveria ser? Este dilema parece colocar-nos entre duas alternativas: ou o câncer é natural e está circunscrito no campo da necessidade, ou então a Natureza mesma está entregue ao imprevisível, à anomalia, ao estado de exceção: puro artificio do acaso.


Muito embora seja fácil contrapor o racionalismo empírico à crendice e à fabulação mítica, calcadas na imaginação e na afetividade, não se pode ser ingênuo em subestimar os laços estreitos que vinculam a religião (e toda forma de misticismo) à ideia de “natureza”, mesmo que seja para rebaixá-la. Poetas e cientistas são igualmente comovidos pelo espetáculo da mãe-Natureza. O maravilhamento contemplativo e o êxtase da unio mystica dificilmente resistiriam à suspeita íntima de uma intencionalidade, de um desígnio, de uma finalidade, de uma razão dos fenômenos naturais. “A ideia de natureza precede a ideia de sobrenatureza e, longe de criticá-la, favorece-a”,[13] reforça-a, legitimando-a por uma relação de oposição complementar na qual a primeira deriva, e depende, da segunda; “o teísmo é uma semi-opção que procura infiltrar-se entre a opção materialista e a opção teológica, valendo-se de uma natureza que se encontra a meio caminho entre o acaso e a ordem divina.”[14] Eis um diálogo entre Lena e Kane, deitados na cama enquanto contemplam o céu à luz do dia:

Kane: É tão estranho ver a lua, assim, durante o dia…
Lena: Como se Deus tivesse cometido um erro. Ele deixou as luzes da sala acesas.
Kane: Deus não comete erros. Faz parte desse lance de “ser um deus”…
Lena: Tenho certeza que ele comete, sim…

O ateísmo típico de um homem ou de uma mulher da ciência não impede o devaneio teísta, a especulação metafisica. Para aparecer, para surgir, é preciso aparecer e surgir de alguma coisa, a partir de um princípio (arkhé). A cosmovisão bíblica, alheia à ideia grega de phýsis, postula a Criação ex nihilo, a partir do nada. Este nada constitui o mundo, a criação e a criatura, em oposição ao Ser absoluto que é Deus; o fundamento da Natureza não reside nela mesma, mas no poder de um Criador que transcende a sua criação, não se confundindo com ela. “A ideia de acaso”, observa Rosset, “é, talvez, dentre todas a mais difícil de ser assumida por sua afetividade, pois implica a insignificância radical de todo acontecimento, de todo pensamento e de toda a existência.”[15] É a ideia trágica por excelência, perante a qual o arbítrio e a determinação do homem perdem vigência. Surgida menos de uma necessidade lógico-intelectiva do que de uma carência afetiva, a ideia de “natureza” desfruta de amplo prestígio justamente por prover aquilo que o acaso não pode oferecer. Ela fundamenta tanto as lendas da mitologia quanto as teorias cientificas. Um(a) cientista imbuído de uma visão de mundo desencantada, da qual forças sobrenaturais estão ausentes, nem por isso deixa de apoiar-se na certeza – crença – de uma natureza dada, com a qual a inteligência pode contar, se comunicar, trocar perguntas e respostas, estabelecer uma relação da qual possa sacar benefícios. É o axioma clássico da identidade entre phýsis e logos, natureza e razão, ser e pensar: o que é, pode ser pensado; o que não pode ser pensado, não é. É um modo reconfortável de pensar, pois dá o sentimento de eliminar toda insignificância, vazio, ausência de sentido.


O filósofo escocês David Hume (1711-1776), um cético, argumentava que é apenas por hábito, pela inércia da repetição cotidiana, que nós contamos com o nascer do sol todos os dias, não com base em um conhecimento lógico-dedutivo, a uma certeza transcendental e a priori, em linguagem kantiana. Não é porque o sol nasceu todos os dias até hoje que temos a certeza dedutiva de que nascerá sempre, para a eternidade. Na concepção naturalista, o natural se torna previsível, confiável, instrumentalizável.

“Aniquilação” explora as potencialidades do jogo entre o previsível e o imprevisível, o familiar e o estranho, o natural e o antinatural. O filme é cheio de surpresas, a primeira delas sendo o reaparecimento de Kane, após anos desaparecido. O espectador é forçosamente levado a suspeitar, na cena em que ele chega em casa, com uma aparência estranha, de que seja uma projeção da imaginação de Lena, um delírio, um sonho ou mesmo um fantasma (como em Ghost – do outro lado da vida). Mas, ao que tudo indica, é ele mesmo, em carne e osso.

Após o desaparecimento do seu marido, e antes de sua própria expedição, Lena está trabalhando como professora de biologia numa importante universidade. Numa das cenas iniciais do filme, ela está na sala de aula, mostrando aos alunos a projeção em grande escala de uma célula cancerígena que se expande freneticamente. “Como todas as células”, explica a professora, “ela derivou de uma célula existente… Uma se tornou duas. Duas se tornaram quatro. Então oito. Dezesseis. Trinta e duas. O ritmo do par que se divide, e que se torna a estrutura de todo micróbio, folha de grama, criatura do mar ou terrestre, e humana. A estrutura de tudo o que vive e – a câmera corta para o rosto de Lena – de tudo o que morre.” Num diálogo entre Lena e a doutora Ventress,[16] líder da expedição, a protagonista questiona por que o seu marido teria se voluntariado para uma missão suicida. “Você está confundindo suicídio com autodestruição”, responde a psicóloga; “quase nenhum de nós comete suicídio. A maioria se autodestrói. De alguma maneira, em alguma parte de nossas vidas… A autodestruição não está codificada em nós? Programada em cada célula?”

Os diálogos das personagens sugerem a missão à “Área X” como uma forma de suicídio ou, no mínimo, autodestruição deliberada. O que levaria cada uma destas mulheres a lançar-se à aniquilação provável? A motivação de Lena é, primeiro, tentar encontrar respostas e o antídoto para a doença do marido; em segundo lugar, e talvez mais importante, a necessidade de seu perdão, uma vez que Kane havia descoberto que Lena mantinha um caso extraconjugal com um professor, colega da faculdade. A motivação de Kane para embarcar na missão anterior estava determinada por esta descoberta. Lena é devorada pela culpa e pelo remorso. Não tem nada a perder adentrando a mesma zona mortal de onde seu marido conseguira escapar apenas para entrar em coma. Ao longo do filme há cenas de sexo, algumas entre Lena e seu marido e outras com o seu amante. Em ambos os casos, a mesma direção de arte e dos atores, a mesma naturalidade e a mesma intimidade – ela parece entregar-se aos dois homens com igual volúpia. O final do filme, inesperado como se revela, confirma uma intuição suscitada por essa indiferença na exibição do ato sexual ora com o marido, ora com o amante. Essa intuição nos remete à metafísica da Vontade de Schopenhauer. Segundo o autor da metafísica do amor (sexual)”, o que se costuma considerar romanticamente como o amor entre duas pessoas não passaria de um pretexto, um truque, uma artimanha da Vontade de vida para realizar o seu propósito de perpetuação indeterminada, à custa dos seres que ela gera para se reproduzir a si mesma indefinidamente. A individualidade do amor romântico não significa nada frente aos interesses da Natureza; somos apenas veículos do seu desejo impessoal de perpetuação:

O que se anuncia na consciência individual como impulso sexual em geral que não se dirige para um indivíduo determinado do outro sexo é simplesmente a Vontade de vida em si mesma, e fora do fenômeno. O que aparece porém na consciência como impulso sexual orientado para um indivíduo determinado é, em si mesma, a Vontade enquanto querer-viver de um indivíduo precisamente determinado. Neste caso, o impulso sexual, embora sendo de fato uma necessidade subjetiva, sabe pôr, com habilidade, a máscara de uma admiração objetiva, iludindo assim a consciência: pois a natureza precisa deste estratagema para atingir seus fins. O fato de que por mais objetiva e sublime que possa parecer essa admiração, todo estar-enamorado tem em mira unicamente a procriação de um indivíduo de determinada índole, logo se confirma por não ser o essencial a simples correspondência amorosa, mas a posse, isto é, o gozo físico.[17]

A experiência lisérgica de Darwin que termina em pesadelo

“Aniquilação” prima não apenas por levantar a questão filosófica acerca da phýsis, mas por, no limite, dissolver o conceito de Natureza com o qual estamos acostumados. O filme tem a virtude de criar uma narrativa trágica em que, por uma série de reviravoltas, o espectador é deslocado e expropriado, junto com as existências (personagens) enredadas na trama, daquilo que tem de mais “natural”, “familiar”, mais “próprio”, mais “si mesmo”, e por isso mesmo conhecido, confiável, viável. Será que o que nos aparece é o que pensamos ser? Aí, a Natureza, como a conhecemos, está ausente, é desnaturalizada e suplantada por outra, uma insólita e obscura presença, uma “natureza” outra. É a representação cinematográfica perfeita da intuição antinaturalista trabalhada por Rosset: puro artifício, arbitrariedade, capricho, originalidade, extravagância.[18]

O ecossistema ao redor do Shimmer[19], o núcleo do campo magnético, é o grande atrativo estético do filme. A direção de arte prima pela atmosfera criada no ambiente: onírica e paradoxal, realista e surrealista, uma combinação do natural com o fantástico. A luminosidade, suave e ao mesmo tempo intensa, a predominância da cor roxa ou do lilás, derivada dos raios de luz que incidem permanentemente através das árvores, tudo isso dá a sensação de sonolência numa eterna manhã ensolarada. Por vezes somos lembrados da selva escaldante de Apocalypse now. Outra referência estética, esta por sua vez mais distante no tempo, são os quadros do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516), com suas criaturas meio fantásticas, meio diabólicas.

Vista de fora, a “Área X” aparece envolta numa membrana translúcida, colorida como uma bolha de sabão, fluindo incessantemente. Lá dentro um rico bioma, com uma fauna e uma flora abundantes de espécies. Mas por toda parte, estranhezas, mutações, anomalias, aberrações que se tornam mais frequentes – e alarmantes – conforme as cientistas adentram a floresta. Elas observam, analisam, dissecam, catalogam. Fascinante e/ou assustadora, a floresta não cessa de inquietar, gerando estranhamento e fascínio. Formas de vida multicoloridas e infinitamente complexas brotam dos troncos das árvores, desenhando sobre a sua superfície rugosa; imensas formações semelhantes a colônias de bactérias espalham-se por todos os lados; árvores de cristal de bordas irregulares irrompem da areia; plantas antropomórficas, ou talvez sejam anthropoi vegetais, brotam nos campos. As formas de vida mais extraordinárias, sublimes ou grotescas, habitam aquele meio-ambiente.

“Aniquilação” parece situar-se por vezes em algum ponto a meio caminho entre a tese antinaturalista e um pressuposto naturalista heterodoxo. Há algo de encantado naquele lugar, um feitiço, um magnetismo, um miasma. Parece habitado por uma força sobrenatural misteriosa. Pode-se dizer que há mesmo uma certa ordem, uma lógica própria, uma “inteligência”, talvez a presença de um genius loci, ou uma legião deles. A diferença é que essa inteligência, macroscopicamente fractal, é distinta da nossa, é obscura, insondável, abismal.

Pode-se esperar do puro acaso formas de vida tão idiossincráticas, tão inventivas, tão preciosistas? Elas podem parecer ora extremamente grotescas e repulsivas, ora verdadeiros “prodígios”, “maravilhas da natureza”.

É a Natureza-Artista, com tendências grotescas ou macabras, dotada de uma imaginação terrível (deinós, em grego), se não de mau gosto. Apenas a necessidade está suspensa; anarquia ontológica, orgia dos elementos: nada está em seu lugar, tudo parece fora da ordem prevista, tudo se desloca, se desvia, se deturpa, se deforma. Num dos momentos mais significativos do interrogatório, Lena recorda: “As mutações eram sutis a princípio, e mais extremas conforme nos aproximávamos do farol. Corrupção de formas. Duplicatas de formas. Ecos. Parecia um sonho.” O interrogador pergunta: “Como um pesadelo?” “Nem sempre”, responde ela, concluindo: “às vezes era lindo” (dualidade que fica patente para nós, espectadores).

Aí, o capricho não é a exceção, mas a regra, atuando em todos os níveis. A necessidade não é da fixidez, da determinação, da identidade, mas da mutação, do deslocamento, da impermanência, da mistura, da confusão. Caso tivesse conhecido a “Área X”, Darwin escreveria A revolução das espécies, seguido de O niilismo das espécies.

Poder-se-ia questionar se é concebível a inexistência de toda phýsis, ou se o pensamento, a racionalidade humana, em sua atividade mesma de pensar, especular, conhecer, já não pressupõe algo (uma natureza, um mundo) a ser conhecido. Noutras palavras, questionar se a não-natureza, a ausência ou privação de toda phýsis não conduziria, de um modo ou de outro, de volta à ideia de phýsis, a não-natureza sendo, então, uma natureza outra, “alienígena”, não mais a mesma, para sempre divergindo, desviando, engendrando novas formas de multiplicar as diferenças na tessitura da existência. Se a razão é incapaz de qualquer atividade sem contar com o fundamento sólido da ideia de natureza, então a causa da filosofia antinaturalista e artificialista fracassa antes mesmo de começar, pois só se abandona uma concepção da phýsis para cair em outra, por mais negativa que esta se pretenda. Nega-se a existência de toda natureza pela limitação humana para conhecer e compreender outras possibilidades de geração e organização da vida, de princípios e leis naturais diferentes daqueles que constituem a existência a que estamos habituados. Por não podermos pensar para além da oposição entre uma determinada concepção de natureza e a sua negação, chegamos à conclusão de que não existe nenhuma natureza.

Dissolução programada

A incursão na “Área X” é, ao mesmo tempo, a saída do domínio da Natureza a que estamos habituados. Num primeiro nível de leitura, a entrada é um movimento de fora para dentro, da Natureza para uma Anti-natureza. Num nível mais profundo, o movimento é de dentro para fora: a velha Natureza deixada para trás é, ela sim, a Anti-natureza disfarçada sobre o manto da normalidade, ausentando-se para ceder lugar à verdadeira (anti-)Natureza, combinação de acaso e artifício (se não uma má Natureza fundada numa má necessidade, uma inteligência perversa ou coisa que o valha). Numa cena em que estão remando ao longo de um rio, Lena e uma companheira conversam sobre suas vidas e se informam sobre as histórias das demais integrantes. Os comentários sobre suas vidas pregressas, e as motivações que as levaram a aceitar a missão, revelam o caráter problemático, contraditório, inconsistente da condição humana (Nietzsche diria “doente”). A incursão na “Área X” – zona de não-necessidade, não-identidade – não faz senão revelar o caráter problemático da “Natureza” deixada para trás.

As mutações moleculares e as alterações psíquicas começam a acontecer nelas muito antes que seus efeitos se tornem perceptíveis, ao nível da pele e da consciência. Já estão em curso a partir do momento em que pisam dentro da “Área X”. De início, sentem-se desorientadas, confusas. Acordam no dia seguinte, em suas respectivas barracas, sem lembrarem como chegaram até ali, tampouco de terem montado acampamento. Evoca-se a questão da relação entre espírito e corpo, memória e matéria. Dentro da “Área X”, a memória é vertiginosamente fugidia, evanescente, como se não pertencesse aos indivíduos, não permanecendo neles, como, aliás, sua estrutura genética. A memória se esvai no ritmo do devir, como o rio de Heráclito: impermanente, transitória, escoa continuamente do espírito em direção à matéria inerte na qual se abisma e dissipa. São abolidos dualismos como Sujeito x Objeto, Identidade x Alteridade, Ser x Não-ser, Necessidade x Contingência, Necessidade x Acaso, e toda uma série de oposições onto-lógicas. O contínuo fluxo do devir prevalece sobre todo ser, identidade, determinação, necessidade, fixidez.

Uma referência filosófica particularmente relevante em se tratando do argumento de “Aniquilação” é Heráclito de Éfeso (535-475). A exemplo da epígrafe a este ensaio, sua concepção paradoxal da phýsis (“Natureza ama esconder-se”, escreve ele enigmaticamente[20]), sua ontologia necessariamente contraditória – postulando a convergência dos contrários, a conjunção do todo e do não-todo, do convergente e do divergente, do consoante e do dissonante, e toda uma série de oposições complementares –, o Obscuro de Éfeso é talvez o filósofo pré-socrático cujo pensamento o filme “Aniquilação” melhor ilustra. Comentando o fragmento que serve de epígrafe, Aristóteles comenta que, para Heráclito, “o contrário é divergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia.”[21] Trata-se, em Heráclito, de uma necessidade da harmonia na discórdia, da divergência dos convergentes, do Combate que “é de todas as coisas pai, de todas rei”[22] – nenhuma ideia mais pertinente ao filme “Aniquilação”. Tomaremos a liberdade poética de dizer que a entrada na “Área X” é como um retorno imaginado à cosmovisão dos pré-socráticos da escola jônica. Heráclito é sucessor de Anaximandro (c.610 — 546 a.C.), que escreveu (não menos enigmaticamente) que, “de onde [i.e., dos princípios opostos] as coisas são geradas, para lá de novo elas irão em sua destruição segundo o que é certo e necessário; pois elas (as coisas) fazem reparos e pagam a multa por suas agressões (adikia, injustiça), segundo a ordem do tempo.”[23] O filósofo Charles H. Khan explica o significado da proposição de Anaximandro, iluminando a maneira como ela será recebida e acolhida por Heráclito:

Aqui o padrão de mudança física e transformação, o nascimento do novo e a morte do velho, é visto como um conflito regulado pela “ordem do tempo”, onde os combatentes aparecem alternativamente como vencedor e vencido. E este ordenamento é ele próprio descrito na linguagem da justiça, segundo a qual o ofensor deve sofrer a pena devida à sua agressão ou excesso. Esta noção milésia de ordem cósmica como uma ordem feita de oposição, reciprocidade e justiça inevitáveis é fielmente incorporada por Heráclito, com toda a sua ressonância poética e sua associação com ideias mais antigas, de natureza mítica: “(…) a guerra é o que é comum [pois o que mata também será morto] e [portanto] o Conflito é a Justiça.”[24]

Antes de adentrar a “Área X”, as cientistas discutem, cheias de teorias inteligentes, sobre o que teria acontecido com as equipes anteriores. Uma dela especula: “Ou algo mata eles, ou eles enlouquecem e se matam uns aos outros.” Mal sabem elas que esta dupla alternativa (ou… ou…) não se aplica, não tem validade na “Área X”, como tampouco o dualismo “algo” x “eles”: o agente da destruição está fora e dentro deles, é eles mesmos, ao mesmo tempo em que eles, estando lá dentro, confundem-se, no nível profundo de suas naturezas, com o agente de seu próprio enlouquecimento, de sua completa dissolução na anomia de uma “anti-natureza” alienígena. Naquele lugar, é como se todos os seres se desviassem do caminho que lhes foi traçado naturalmente, por necessidade: o que deveria ser singular se duplica, triplica; os reinos animal, vegetal e mineral plasmam-se ao sabor do acaso; as consciências individuais migram para outros corpos; tudo é matéria e tudo é alma, determinado e indeterminado ao mesmo tempo. Pode-se falar justamente de uma “anarquia ontológica”, de um niilismo “artístico” da Natureza.

Cumpre notar a extrema rapidez com que estes processos ocorrem: a aceleração é um dos aspectos mais vertiginosos da anti-natureza do filme. O que normalmente levaria milhares de milhões de anos para cumprir-se, ali ocorre em questão de dias, talvez horas. Quanto mais próximas do Shimmer, no interior do farol, mais os estranhos fenômenos acontecem numa rapidez quase instantânea. Não é senão a transposição, ao domínio do (pretensamente) natural, da rapidez, da pressa com que a arte, segundo Diderot, realiza as mesmas operações que a natureza leva uma eternidade para efetuar, “com os mais imperceptíveis passos”. O primeiro contato com os estranhos seres daquele lugar são mostrados sob o suspense do ainda desconhecido; o que já aconteceu com as equipes anteriores, por mais distante no tempo que pareça, é como se tivesse acabado de acontecer, e não tardará a vitimá-las igualmente. Vejamos alguns momentos cruciais.

1. Logo ao chegarem, uma das mulheres está parada no umbral da porta de uma casa inclinada, meio afundada num lago, quando de repente é como se fosse puxada violentamente para dentro, não se vê por quem, sumindo lá dentro. Em seguida, descobrem que o raptor é na verdade, um crocodilo com leves traços de inteligência humana, além de uma resistência física que o torna capaz de suportar longas rajadas de fuzis.

2. Ao chegarem numa base abandonada, elas têm uma revelação aterradora, sobretudo para Lena, graças à câmera deixada pela equipe anterior. É graças à artificialidade da tecnologia, indiferente à decomposição de todo vivente, que elas começam a saber que fim levaram aqueles que não retornaram da “Área X”. Elas assistem a gravação e veem a cena em que Kane, diante dos colegas num lugar fechado e escuro, o chão inundado de água suja, corta a barriga de um deles – desesperado, muito embora consinta com cirurgia sumária – na forma de uma tampa de pele que, levantada, revela o que há no interior do seu organismo (para o espanto e a satisfação científica dos presentes): no lugar do intestino e demais vísceras, um enorme verme que mais se parece uma serpente vira e revira lá dentro. Abaladas, elas interrompem a reprodução do vídeo.

3. Uma noite, ouve-se os gritos de uma das mulheres, Shepard, que parece ter sido abduzida por um grande animal selvagem e arrastada floresta adentro. É dada como morta. Na noite seguinte, durante uma discussão, as remanescentes ouvem gritos do lado de fora, à distância, de uma voz que é claramente a de Shepard. Acreditam que está viva. Mas, para o desespero delas, logo deparam-se com um enorme animal – semelhante a um urso com o focinho carcomido, o que lhe dá o aspecto de um cão dos infernos – que invade o recinto, oscilando entre atacá-las e deixá-las em paz. Em vez de grunhir, ele emite a voz de Shepard, que ele devorou: “Help me! Help me!” Ficamos imaginando a ideia budista de transmigração, ou mesmo a metempsicose platônica, acontecendo instantaneamente: morre-se e imediatamente “encarna-se” noutro ser, animal ou planta: é uma espécie de “super-devir”, o éon[25] dos gregos comprimido num eterno presente.

4. A cena descrita acima interrompe um momento crítico da relação entre as mulheres e que se deteriora ao ritmo da vida naquele lugar. A mulher que havia levantado a teoria sobre o que teria acontecido com a equipe anterior, Anya, é a primeira a enlouquecer, vindo a ser devorada pelo urso-Shepard[26] e tendo sua teoria refutada. A causa do desentendimento são os segredos mantidos por cada uma delas em relação às demais, e cuja revelação julgam fundamental para o prosseguimento da missão em mútua confiança. Apenas a psicóloga e líder sabe, por exemplo, que o cirurgião do vídeo é o marido de Lena. Anya então rende as colegas e as coloca sentadas e amarradas a cadeiras. Começa a interrogá-las e comenta: “Quanto eu olho para as minhas mãos e minhas impressões digitais, eu posso vê-las se mexendo.” Anya é a que mais se esforça para manter a razão e a que mais rapidamente surta. Fora ela quem se recusara a continuar assistindo o vídeo da cirurgia. Quer e não quer descobrir se o que viu dentro do corpo daquele homem também está hospedado nela. “Se eu soltar vocês e vocês me abrirem toda, minhas entranhas estarão se movendo que nem minhas impressões digitais?” – pergunta ela, ofegante, inquieta, nervosa. E conclui: “Mas não sou eu quem está amarrada a uma cadeira…” Sua intenção de abrir a barriga de uma das colegas é interrompida e frustrada pelo animal que invade o lugar e a devora barbaramente. Eis o que pode ser definido como o terror metafísico diante do caráter abismal da Anti-natureza, em sua total ausência de necessidade, aberta a literalmente todas as possibilidades.

5. A cena seguinte é matinal e sua montagem inspira serenidade. Josie está sentada no jardim de uma casa abandonada, a vegetação alta por falta de corte, como se meditasse. É o oposto do terror noturno da cena anterior. Lena se junta a ela, senta-se para conversar. “A gente precisa ir”, diz. Josie lhe pergunta quanto tempo Kane havia permanecido no Shimmer; Lena não tem certeza, acha que mais ou menos um ano. “É tempo bastante para ficar lá intacto”, comenta a colega. “Não tenho certeza que ficou intacto.” Josie demonstra mais resignação do que consternação, tranquilidade do que nervosismo. Elas começam a conversar sobre o estranho fenômeno da “refração” que leva todas as células a se dividir e multiplicar até a completa aniquilação do organismo original. Lena comenta então que tirou uma amostra de seu sangue para analisar no microscópio. “Está em mim também”, revela. “Estará em todos nós”, responde Josie com um sorriso. Sua pele apresenta características estranhas, com a aparência de feridas ou cascas que se espalham pela superfície dérmica. Ela então relembra o destino trágico de Anya e Shepard, devoradas pelo animal. “Foi estranho ouvir a voz de Shepard na boca daquela criatura ontem à noite. Acho que, enquanto ela morria, parte da mente dela se tornou parte da criatura que a estava matando. Imagine morrer aterrorizada e dolorosamente, e ter isso como a única parte de você que sobrevive. Eu não gostaria nada disso.” Josie olha para um dos braços, folhas estão brotando nele. Ela então se levanta e começa a andar em direção ao que antes era um jardim botânico cheio de plantas e flores coloridas. Ela para, olha para Lena e diz: “Ventress quer encará-lo [o Shimmer], você quer enfrentá-lo. Mas acho que eu não quero nenhuma das duas coisas.” Lena vai atrás dela, preocupada. Conforme se aproxima do jardim, a folhagem do seu corpo aumenta perceptivelmente, sua natureza orgânica sendo rapidamente suplantada pelo vegetal. Ela some de vista atrás de uma árvore; quando Lena corre para alcança-la, ela já se tornou árvore, plantada no meio do jardim repleto de outras plantas antropomórficas.

6. Ao sair sozinha pela floresta para buscar os restos mortais de uma das colegas, Lena depara-se com um exemplar duplicado do que parece ser um veado, os chifres muitíssimo mais longos do que o normal, parecendo uma criatura saída de um quadro de Bosch, só que neste caso “bonitinha”. O que o filme tenta passar é que não são dois, sequer gêmeos, mas um único animal. Ela para e os observa. Seus movimentos perfeitamente sincronizados são como o reflexo no espelho que faz exatamente tudo aquilo que o refletido faz. Eles percebem a presença humana e fogem saltitando, sempre em sincronia. Aí, nesta figura do duplo, está a chave do que aconteceu com Kane e também acontecerá com Lena.

7. Tendo ficado sozinha, Lena finalmente alcança o Graal, ou seja, o Shimmer. Ao redor do farol, ossadas humanas e animais foram dispostas em linha por alguém, sugerindo alguma finalidade ritualística ou ao menos estética. Na superfície do farol, cresce uma camada espessa de algo que parece ser o tronco de uma imensa árvore, como o baobá, com suas raízes espalhando-se por todos os lados. Lena acessa o interior do farol. Lá, ela se depara com um corpo sentado e carbonizado (como um monge tibetano que tivesse se ateado fogo), um buraco produzido pelo meteorito no chão, em direção ao interior da terra, e um segundo equipamento de filmagem.

Descobrimos, junto com a protagonista, que o seu marido “de verdade”, aquele que ela achava que conhecia, nunca retornou. Ela assiste à segunda gravação: a câmera está posicionada no mesmo lugar, no interior do farol; Kane aperta o botão, a gravação começa mostrando apenas a parede interna do farol, ninguém na tela. Kane então caminha para a frente da câmera e senta-se no chão, de uniforme militar, fuzil no chão, como se estivesse preparado para uma guerra. A partir deste momento ela já sabe que o corpo carbonizado é o do seu marido, mas a surpresa da gravação não é exatamente esta. Kane fica em silêncio por alguns segundos respira fundo e começa um discurso dirigido não apenas para a câmera, mas aparentemente também a um interlocutor invisível atrás da câmera: “Eu pensava que eu era um homem. Eu tinha uma vida. As pessoas me chamavam de Kane. Agora já não tenho tanta certeza. Se eu não era Kane, o que eu era? Eu era você? Você era eu?” Ele silencia mais alguns segundos, recompõe-se, então prossegue: “Minha carne se mexe como líquido. Minha mente está… fora de controle. Não tou aguentando. Você já viu uma granada de fósforo ser detonada? Elas são meio brilhantes. Proteja os olhos. Se você conseguir sair daqui, encontre Lena.” Ouve-se alguém dizer atrás da câmera: “Encontrarei.” Se a gravação está mostrando que Kane se matou, quem era aquele que voltou para casa após um ano desaparecido? E se o próprio Kane começou a gravação do seu suicídio, com quem está falando ao referir-se por “você”? Kane arranca o pino da granada e é reduzido a cinzas em questão de segundos. De trás da câmera sai outro Kane, idêntico ao que se explode.

A gravação mostrava também cenas muito curtas de algo estranho filmado no interior do buraco produzido pelo meteoro. Uma bola incandescente, algo brilhante e fluido parece ser o que Lena vê na gravação. Após assisti-la, só lhe resta descobrir o que há lá dentro. Ela então desce, de fuzil no braço. O que acontece ali assemelha-se a uma experiência mística, em todo caso, a algo de inefável como o contato imediato de primeiro grau com uma forma de vida alienígena. As paredes do lugar têm a aparência de um organismo vivo, em constante movimento. A doutora Ventress está lá, sentada, cabisbaixa. A baixa luminosidade e os cabelos caídos para a frente fazem com que o seu rosto fique completamente no escuro. Ela parece ausente, abduzida, demente. Com dificuldade, vê-se que seus olhos somem e tornam a reaparecer no rosto, a pele mudando de cor. Ela parece profetizar: “É a última fase”, diz ao perceber a aproximação de Lena. “Sumida na destruição (havoc). Mente insondável. E agora farol. Agora oceano.” A sua mente se refrata por toda parte, espalhando-se por todos os seres e todos os lugares, desprendida dos limites fixados pelo principium individuationis. Ao ser interpelada por Lena, Ventress volta ao normal e vira-se em sua direção:

Nós estávamos conversando agorinha mesmo. O que foi que eu falei? Que eu precisava saber o que havia dentro do farol. Aquele momento passou. Agora ele está dentro de mim. Não é como nós. Não sei o que ele quer, ou se quer algo, mas vai crescer até englobar tudo. Nossos corpos e nossas mentes serão fragmentados até sua mínima parte, até que não reste nada. Aniquilação

Eis o clímax do filme, a experiência mística da protagonista (coletiva até certo ponto). Ela vê a doutora Ventress cuspir uma espécie de fogo, transformando-se em seguida numa grande massa de luz alienígena que flutua diante de seus olhos. Ela fica paralisada, em transe extático, olhando para o fundo daquilo, em cujo centro abre-se um buraco que suga tudo para o seu núcleo, como um vórtice. Lena olha fixamente para o centro do Shimmer; seu brilho reflete-se no fundo dos olhos dela. Ele então se transforma num ser de forma humana cuja pele fosse de fosse escura como carbono ou grafite, refratando tons dourados como alguns insetos. Não tem olhos, boca, apenas a forma humana. Amedrontada, Lena descarrega o fuzil na criatura, que não sai do lugar. Eis aqui uma das cenas mais bonitas e reveladoras do mistério daquela Anti-natureza. Lena tenta fugir, no que é impedida pela criatura. Corre para a porta, mas ele a alcança e não a deixa sair, imobilizando-a. Ela o esbofeteia, ele a esbofeteia quase que no mesmíssimo instante. Ela cai no chão, ele também cai, sempre em sincronia. Poderia ser um balé da Pina Bausch. Lena percebe então que se trata dela mesma, seu duplo materializado em outro ser. Não é a criatura que a impede de sair, mas ela mesma que perdeu seu amor e não tem razões para querer voltar. Dando-se conta disso, trata de enganar o duplo. Entrega-lhe uma granada de fósforo e arranca o pino. Ele pega a granada e a segura obedientemente. Neste momento, a identidade física de Lena transfere-se para o corpo indeterminado do duplo. Ela atravessa a porta do farol e olha para trás, para si mesma, enquanto carrega a granada prestes a explodir. Todo o lugar e o entorno começam a pegar fogo, ela aparentemente salvou o mundo daquele mal, muito embora tenha se sacrificado para isso. O filme se encerra na base militar onde Lena (Anti-Natureza) está sendo interrogada pela equipe de cientistas militares (Razão). Este último diálogo é importante:

Interrogador: Então, era alienígena. Você poderia descrever a forma?
Lena: Não.
Interrogador: Era feito de carbono?
Lena: Eu não sei.
Interrogador: O que ele queria?
Lena: Não acho que ele queria nada.
Interrogador: Mas ele te atacou…
Lena: Ele me espelhava. Eu ataquei ele antes. Nem tenho certeza de que ele sabia da minha presença.
Interrogador: Ele veio aqui por uma razão. Estava produzindo mutações no nosso ambiente, destruindo tudo.
Lena: Não estava destruindo. Estava mudando tudo. Criando algo de novo...
Interrogador: Criando o quê?
Lena [após uma pausa]: Eu não sei

A Razão pode ser tão pretensiosa quanto ingênua. Quer o interrogador saiba-o ou não, concorde ou não com isso, as explicações esperadas não são menos metafísicas do que meramente cientificas.[27] Não indagam apenas pelas causas naturais (o carbono), mas espraiam-se em direção à questão acerca das causas primeiras, no sentido aristotélico de aitia ou da arkhé pré-socrática, ou seja, o primeiro Princípio, a Causa primeira. É sintomática a identificação equivocada, a confusão da Razão inquisitiva entre a criatura que atacou (o duplo de) Lena e a causa, a origem, a fonte daquele mal: toma-se o efeito pela causa. É o risco implicado em toda concepção metafísica naturalista a postular um princípio ou causa exterior e anterior ao devir mesmo, seja ele o Ser, Deus, a Razão, a Vontade ou qualquer outra coisa, dependendo da concepção filosófica. Se existe algo (os seres, a vida, o mundo), é necessário que tenha sido originado a partir de outro algo (o conceito de arkhé serve para explicar este “algo”). Desde a Antiguidade, muitos filósofos “artificialistas” pensam diferentemente: tome-se como exemplo Demócrito de Abdera, reputado patrono do materialismo filosófico, ou Empédocles, segundo o qual na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma. Tal parece ser o pensamento de Lena, doravante possuída pela Anti-natureza, a partir do diálogo transcrito acima. Primeiro, aquela vida alienígena não estava destruindo nada, pois, não havendo nada criado e constituído, como natureza ou mundo, não há o que ser destruído, aniquilado, no sentido pressuposto pela Razão naturalista; em segundo lugar, aquela forma de vida alienígena não “queria” mudar ou destruir nada, pois querer, nesta acepção (vontade deliberativa), é um modo de ser humano que nós tendemos a projetar, assim como a razão, no mundo.

Por fim, Lena descobre que, uma vez dizimado o Shimmer, sua força de atuação e seus efeitos também são anulados. Kane sai do coma – “lúcido”, como observa o cientista. Lena vai visitá-lo, ainda sob observação. Ele está sentado na cama, com o olhar perdido no infinito, como se divagasse. Lena entra no quarto. Ele olha para ela com uma expressão difícil de descrever, mas que é facilmente interpretada como estranha para quem está agora revendo a esposa após sair de um coma. Kane olha como se a visse após um dia de trabalho, cansado e acostumado com sua presença. Ficam em silêncio. Olhar inquisitivo de Lena: “Você não é Kane, é?” “Acho que não sou não”, responde ele. “Você é Lena?” Ela não responde. Ele se levanta, aproxima-se dela, rostos colados, mas em vez de beijá-la, abraça-a como se fosse uma velha amiga, os dois em silêncio. A câmera fecha um close nos olhos de Kane e, em seguida, nos de Lena, enquanto estão abraçados: no fundo deles, o mesmo brilho do Shimmer, e um ar de ausência…

Post-scriptum (in memoriam): da alegria de não ser senão fruto do acaso

Este ensaio é dedicado ao filósofo Clément Rosset (1939-2018), falecido no mesmo mês em que estrearia, semanas depois, o filme analisado. Cumpre notar que o subtítulo ao livro utilizado, A anti-natureza, é: “Elementos para uma filosofia trágica”. Quando se evade o continente da filosofia naturalista, está-se inevitavelmente no território – antimetafísico por excelência – do trágico. Nenhum filósofo contemporâneo empenhou-se, como o autor de A anti-natureza, a desenvolver e praticar uma filosofia rigorosamente trágica, não complacente com nenhuma forma de justificativa ou fundamento metafísico para o sem-sentido e o acaso da existência. A filosofia trágica não é absurda, contrariamente ao que se pode pensar; todo absurdo comporta um fundo metafísico, e um pessimismo mais ou menos radical. O absurdo nasce de um desacordo entre a razão e o mundo, de uma tentativa frustrada de interpretação da realidade, cuja natureza é ser idiota, nada dizer nem significar. À filosofia anti-naturalista – filosofia trágica, da alegria sem razão nem fundamento – corresponde, em termos de atitude intelectual, o ceticismo, a suspensão cética do juízo e da interpretação globalizante dos fenômenos.

Dir-se-ia que Rosset não morreu, não foi “aniquilado”, pois essencialmente, em sua própria concepção trágica, nunca foi gerado, nunca existiu enquanto ser, natureza constituída, não encarando, portanto, a morte como a destruição e o fim de nada que tenha direito à ser de forma absoluta e eterna (“natureza”, “eu”, “sujeito”, “espírito”). Clément Rosset retornou à indistinção primordial, ao domínio do inorgânico para falar como Freud. Como o filme “Aniquilação”, a obra de Rosset afirma que a individualidade é uma convenção, uma ficção, assim como a ideia de Natureza. Copérnico nos deslocou de nosso geocentrismo; Nietzsche nos tornou órfãos arrancando-nos de nossa paternidade divina; Freud retirou a soberania do “eu” ao postular a existência do Inconsciente; talvez os resultados futuros da ciência, incrementado pelos avanços da tecnologia, nos proporcionem uma próxima – e mais terrível – desilusão. Mas para um filósofo formado na escola trágica, como Rosset, alheio à necessidade metafísica de uma Natureza como “travesseiro metafísico”, talvez não seja exatamente uma desilusão. O lema de sua filosofia trágica de vida, Rosset encontrava nos versos de La Fontaine: “Seja tudo você mesmo, conte para nada o resto.”

“Aniquilação” é uma obra-prima cinematográfica muito bem executada e produzida. Não diria um filme de ficção científica; seria o caso de inventar um novo gênero: ficção naturalista. Após uma enxurrada de filmes e séries televisivas de ficção científica, de Black mirror a Westworld (para citar algumas dentre as produções mais recentes), enfim, após a embriaguez de tecnologia e de utopia científica veiculada por essas produções, “Aniquilação” representa uma ressaca em relação a toda essa febre tecnológico-apocalíptica. Aí, o pesadelo não é diante das máquinas, dos dispositivos móveis, dos robôs dotados de inteligência artificial, mas o pesadelo diante da (anti-) Natureza. “Aniquilação” representa o retorno ao natural após tantas incursões culturais no artificial e no tecnológico. O problema é que, após tanto tempo sem pensar a Natureza e sem contato com ela, descobrimos, ao nos voltarmos a ela, que desapareceu, ou que não é mais a mesma que acreditávamos conhecer…

NOTAS:

[1] Este efeito psicofenomenológico causado pela força atuante no campo magnético é análogo ao que relata a protagonista de outro filme: “Contato” (Contact, 1997). Nesta ficção cientifica, a personagem interpretada por Jodie Foster participa de uma experiência cuja duração, que não passa de minutos, lhe parece ter durado dias.

[2] “Também Heidegger está determinado a ver na palavra natureza a ‘palavra fundamental da metafísica’, a julgar que a meta-física é, num sentido totalmente essencial, uma ‘física’ – dito de outa maneira, um saber da φύσις (έπιστήμηφυσική)’ [epistemephýsiké]” ROSSET, Clément, Da anti-natureza. Trad. de Getulio Puell, Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989, p. 20.

[3] Ibidem, p. 13.

[4] “Então, a natureza é o que existe independente da atividade humana; porém não se confunde com a ‘matéria’. A matéria é o acaso; o modo de existência não somente independente das produções humanas, mas indiferente a todo princípio e a toda lei. Desde que uma ordem se manifeste (seja ela de caráter puramente físico, isto é, não afetando diretamente as criaturas vivas) é considerada natural. Desse modo, podem-se distinguir três grandes domínios na existência (artifício, natureza e acaso) e definir o domínio da natureza como um terceiro estado, do qual o homem (artificio) e a matéria (acaso) encontram-se excluídos. Essa trilogia ontológica é afirmada desde Platão e Aristóteles, concordes em definir a natureza como instância alheia tanto à arte como ao acaso.” Ibidem, p. 15.

[5] “Entre esses dois polos de indeterminação, a natureza ocupa o lugar da ordem e da necessidade: zona de certeza entre o acaso da matéria e as vicissitudes da atividade humana. Assim, a definição mais geral da natureza poderia ser “necessidade’; já a do artifício (e da matéria) seria ‘acaso’ – com a condição de precisarmos que essa necessidade natural transcende todas as formas de necessidade não-naturais (isto é, as do homem e as do acaso), consideradas arbitrárias em função da ideia de necessidade natural.” Ibidem, p. 17.

[6] Ibidem, p. 63.

[7] Autor de um tratado sobre a natureza (Perì phýseos) ou o não-ser. Górgias desenvolve o triplo argumento: nada existe/é; mesmo que algo existisse/fosse, não poderia ser pensado; ainda que fosse pensado, não poderia ser comunicado.

[8] ROSSET, Clément, Op. cit., p. 63.

[9] Ibidem, p. 63.

[10] Ibidem, p. 14.

[11]Sem o homem”: esta ausência apenas reforça o antropocentrismo em questão. Ibidem, p. 15.

[12] A condição “enferma” do animal humano, segundo Nietzsche, não deixa de ter a ver com o caráter desmedido e temerário do homem: o animal que mais ousa, improvisa, experimenta consigo mesmo e com os outros, introduzindo em sua própria existência a novidade e o risco. “Risco glorioso, talvez, pois é a marca específica do poder humano sobre a natureza, mas risco perigoso: o homem está armado com um imprevisível poder de intervenção que lhe permite simultaneamente consolidar e arruinar as construções naturais. No cume da escala dos seres, o homem reintroduz, por um ligeiro aumento de poder cujo nome é liberdade, um elemento de incerteza que a natureza, ao conquistar a matéria, conseguira riscar do mapa das existências.” Ibidem, p. 17.

[13] Ibidem, p. 35.

[14] Ibidem, p. 42.

[15] Ibidem, p. 29.

[16] Descobriremos, posteriormente, um dado crucial sobre esta personagem (marcada pela apatia e pela melancolia) que explica em grande parte o seu próprio voluntarismo “suicida”: ela é vítima de câncer.

[17] SCHOPENHAUER, Arthur, Metafísica do amor. Trad. de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes: 2004, p. 10.

[18] Do latim extra, “fora”, “para fora de”, e vagans/vagantis, particípio presente de vagari, “vaguear”, errar”, “espalhar-se”; que extravaga, que não está num código; quem ou o que é, anda ou está fora do que é considerado geral ou habitual; estranho, excêntrico; quem esbanja dinheiro, estroina, perdulário. PRIBERAM – Dicionário on-line: https://www.priberam.pt/dlpo/extravagante (Acesso: 24/03/2018)

[19] “Luz difusa”, “trêmula”, conforme refratada na superfície do mar ao pôr-do-sol, por exemplo.

[20] HERÁCLITO, Fragmentos, in Coleção “Os Pensadores”. Trad. de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 97.

[21] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Ibid., p. 86.

[22] HERÁCLITO, Op. cit., p. 90.

[23] ANAXIMANDRO, apud KAHN, Charles H., A arte e o pensamento de Heráclito – uma edição dos fragmentos com tradução e comentário. Trad. de Élcio Verçosa Filho. São Paulo: Paulus, 2009, p. 45.

[24] KAHN, Charles H., Op. cit., p. 45.

[25] Do grego αίών (aion): “Longo período de tempo, duração da vida, época, era, eternidade; aplicado pelos estoicos ao Grande Ano. Cf. L. aevum. Em certos neoplatônicos e nos gnósticos, diz-se das potências eternas emanadas do Ser supremo e através das quais se exerce a sua ação sobre o mundo.” LALANDE, André, “Eon”, Vocabulário técnico e crítico da Filosofia. Trad. de Fátima Sá Correia, Maria Emília V. Aguiar, José Eduardo Torres e Maria Gorete de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 311.

[26] Note-se que o nome da personagem devorada pelo animal significa, em inglês, “pastor”.

[27] A propósito da necessidade metafísica e “demasiado humana” de respostas, explicações, sentidos, interpretações, Emil Cioran escreve: “Repisar o ‘porquê’ e o ‘como’; remontar a todo instante até a causa – e a todas as causas – denota uma desordem das funções e das faculdades, que acaba em ‘delírio metafísico’, caducidade do abismo, degringolada da angústia, última fealdade dos mistérios…” CIORAN, E.M., “O animal metafísico”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 175.

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