Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, Rio de Janeiro, v. 12, nº 2, 2019
Editorial
Rosset educador
O sucesso da obra de Clément Rosset pode ser aferido pela imensa venda de seus livros, pelo número de traduções nas mais diversas línguas, pelas revistas magazine sobre suas ideias, pelas numerosas entrevistas que foi chamado a dar na França e no exterior, tanto na mídia quanto na academia. No entanto, ou certamente por isso mesmo, sua filosofia é, em um certo sentido, uma anti-filosofia, que denuncia o mimimi da filosofia acadêmica em seus preciosismos, as pretensões de seriedade do edifício metafísico que não passa de uma, decerto elaborada e sofisticada, defesa psíquica. Trata-se, sem dúvida nenhuma, de uma filosofia extremamente inspiradora. Poderíamos parafrasear Nietzsche afirmando: Rosset educador, ou talvez fosse ainda mais apropriado dizer: Rosset terapêutico. Se Schopenhauer foi para Nietzsche um pensador que o educou na arte da denúncia às armadilhas da suposta razão moderna, também o foi para Rosset, que tem em Schopenhauer o autor sobre quem mais escreveu, precisamente por admirar a desconstrução que opera, a recusa às pretensões da filosofia e aos enganos do psiquismo humano. A crítica rossetiana, assim como a de Schopenhauer e a de Nietzsche, ou talvez ainda mais que essas, é expressa pela perspectiva do humor, do riso, pondo a nu o ridículo dos argumentos complexos, porém, destituídos de realidade. Rosset sempre afirmou que duas de suas maiores influências foram Nietzsche e Spinoza, seguramente por serem esses, tal como afirmara seu amigo pessoal Gilles Deleuze, os dois autores maiores da diferença, que Rosset diria: do monismo do real, graças ao qual é possível assumir o real sem um modelo que o duplique. Nietzsche mais, Spinoza bem menos, ambos aparecem pouco nos escritos de Rosset. Provavelmente porque seus escritos não foram, senão raramente, de análise, mas, sim, de um uso da filosofia para seus próprios fins, que, propositalmente, se resumiam a evidenciar a unicidade do real, a alegria que brota dessa compreensão, a afirmação trágica da realidade que decorre da desconstrução dos duplos e das ilusões, em prol da experimentação generosa da vida.
Neste segundo número do volume temático da Revista Trágica: Estudos de Filosofia da Imanência em homenagem póstuma a esse grande pensador que foi Clément Rosset, Sílvia Pimenta (UERJ), que foi sua orientanda de DEA (Diplôme d’Études Approfondies, existente à época da França), durante seu estágio doutoral na Université de Nice, apresenta em seu texto o que seria a ontologia do real de Clément Rosset, e sua dimensão prática, de uma ética da afirmação, que decorre de uma libertação da crença na verdade. Mathieu Hubert (Universidade de Liège, Bélgica) associa as críticas rossetianas à metafísica ao instinto moral, anti-trágico por excelência, considerando sua teoria do acontecimento, embora não explicitada, como central ao longo de sua obra, dos primeiros escritos trágicos a seu último livro. Olga del Pilar Lopez (Universidade das Artes, Guayaquil, Equador) entende a filosofia de Rosset como situada entre os pensadores pessimistas e otimistas, a partir da atualização do trágico que ela opera, constituindo uma ética útil a nossos dias.
Seguem-se então três artigos sobre as análises de Rosset acerca do cinema. Thibaut Larue (Universidade de Liège, Bélgica) propõe-se a analisar a concepção da experiência cinematográfica de Rosset, do ponto de vista tanto do cineasta como do espectador, em seus textos sobre o cinema, visando alcançar dois objetivos: avaliar a capacidade do cinema de expressar o real, e vislumbrar uma estética trágica rossetiana a partir de sua teoria da singularidade do real e a crítica a seus duplos. Rodrigo Menezes (PUC-SP) analisa filosoficamente a temática do filme “Aniquilação” (Annihilation, 2018, com direção de Alex Garland) à luz do conceito de anti-natureza de Clément Rosset, questionando os conceitos de natureza e de ser, de uma “realidade última do que existe”, em diálogo com a questão do acaso da existência, e do trágico em contraponto ao absurdo. Não se trata de um filme de ficção científica, mas antes, afirma, de “ficção naturalista”: não mais o caos advindo do avanço da tecnologia, mas a descoberta de que não existe uma natureza absoluta, um ser constituído, um eu, ou um sujeito, mas uma “indistinção primordial” a partir da qual se faz a experiência trágica da vida e de seu não-sentido. Fabiana T. Maiorino (UNIP-SP) analisa a estética e a narrativa cinematográfica através de dois filmes, “O homem sem passado” e “Meia noite em Paris”, pelo método da hermenêutica trágica proposto por Marcos Beccari, de modo a neles perceber a existência como acontecimento aberto em que se afirma a vida em seu caráter atual e tragicamente imprevisível.
Jean-Yves Béziau (UFRJ) nos propõe, inspirado em Clément Rosset e em uma homenagem não somente a seu pensamento como à sua irreverência, um ensaio na forma de diálogo, ao modo um tanto socrático-platônico, sobre o tema do riso, em cores e com figuras ilustrativas, onde argumenta que o riso como essencialmente humano, assim como o seriam a razão, o amor, a alegria e a linguagem. Esboçando assim, direta e indiretamente, uma crítica à filosofia que se toma demasiadamente a sério, ao fechar-se numa exigência mais de forma que de pensamento, quando a forma, precisamente, tanto quanto o conteúdo, serve de fato para expressar um determinado pensamento.
Trazemos, por fim, a tradução, por Danilo Bilate (UFRRJ) e André Martins (UFRJ), do texto de Clément Rosset intitulado “A secura de Deleuze”, publicado na revista L’Arc em 1972, em que Rosset tece elogios e críticas à filosofia de seu amigo Gilles Deleuze. Sob o humor irreverente de sua análise, no entanto, revela-se uma fina, ácida e penetrante crítica ao que Rosset sugere ser uma ausência de sensibilidade e de afetividade nos textos de Deleuze, o que exclui das filosofias que Deleuze analisa o que elas têm de principal: sua beleza, sua verdade, sua sonoridade, em prol unicamente do esqueleto, do seu modo de construção, dos seus agenciamentos. Um devir-Guérroult em nome da imanência, mas que, ao desprezar a questão do afeto, retira desta precisamente o que a constitui, correndo o risco de reduzir a imanência a um mero termo técnico ou a uma palavra de ordem.
É mais uma vez com todo o prazer que fazemos o convite para essa experimentação filosófica que trazemos para os leitores da Trágica nesses números temáticos sobre o pensamento de Clément Rosset.
André Martins
Editor
Sumário
Artigos
Silvia Pimenta Velloso Rocha
|
Mathieu Hubert
|
Olga del Pilar López
|
Thibaut Larue
|
Rodrigo Inácio R. Sá Menezes
|
Fabiana Tavolaro Maiorino
|
Jean-Yves Beziau
|
Traduções
Clément Rosset
|