“Cioran, ingênuo e sentimental”, de Ion Vartic – Rodrigo MENEZES

RESENHA:

VARTIC, Ion. Cioran, ingenuo y sentimental. Trad. do romeno de Francisco Javier Marina (título original: “Cioran, naiv şi sentimental”). Zaragoza: Mira Editores, 2009.

O ensaio de crítica literária e psicológica de Ion Vartic sobre Cioran parte das noções schillerianas de “ingênuo” e “sentimental” para definir o “tipo psicológico” do escritor romeno radicado em Paris. Termos antitéticos, “ingênuo” e “sentimental” designam disposições subjetivas opostas, sendo ambas, segundo o autor, constitutivas da personalidade de Cioran, enquanto tendências contrárias que se alternam no seu modo de ser e, sobretudo, no seu modo de criar. O que se entende, pois, de acordo com a tipologia proposta por Schiller, em seu Über naive und sentimentalische Dichtung (“Sobre poesia ingênua e sentimental”)? O tipo “ingênuo” seria aquele no qual “o sensível predomina sobre o intelectual, […]”, em que predomina “o instinto filosófico de pensador intuitivo que, à diferença do pensador especulativo (ou seja, sentimental), parte da variedade de exemplos do mundo real e de suas experiências pessoais imediatas”. A disposição “sentimental”, por outro lado, diferentemente do que o nome possa sugerir, é aquela segundo a qual o racional e o metódico prevalecem sobre o sensível e o intuitivo. Vartic cita Schiller, para explicar que:

O ingênuo «busca com o olhar puro a experiência», enquanto que o sentimental persegue apenas a lei e a norma; que o ingênuo se revela através de sua natureza e sua verdade sensível, enquanto o sentimental o faz através de abstrações e idéias, já que, no segundo, o pensamento prevalece sobre os sentidos […] Segundo a tipologia schilleriana, nele [Cioran] predomina a natureza própria e, portanto, uma disposição filosófica ingênua (die naive Stimmung), ainda que, de maneira divergente, tenha também preocupações de tipo sentimental […] O jovem Cioran conjura, ab initio, qualquer objeção: mesmo sendo possível que, mediante a cultura e a melancolia, tenha adotado uma disposição criadora sentimental, em todo caso ele recorre o caminho de volta à disposição ingênua. (grifo nosso)

Desse modo, já está contida no título a idéia central que perfila o ensaio: a potência criadora de Cioran está marcada por essa dupla condição, que faz dele um espírito dividido entre duas formas de sensibilidade, duas disposições intelectuais antagônicas; nem apenas intuitivo e emocional (ingênuo), nem apenas racional e metódico (sentimental) – ambas as coisas.

O mérito maior do livro é aproximar-se deste enigmático pensador romeno de maneira diferenciada. Vartic concentra-se em registros diversos da juventude do autor, período de sua formação intelectual antes de exilar-se em Paris. Os documentos privilegiados são os livros da época, escritos ainda em romeno e publicados em seu país de origem, anotações dispersas encontradas nos livros que formam a sua “biblioteca formativa”, e correspondências que o jovem Cioran trocou com amigos. Dentre estas, Vartic dá especial atenção a um conjunto de doze epístolas enviadas ao amigo Bucur Ţincu entre 1930 e 1933 – período de gestação de seu primeiro livro, “Nos Cumes do Desespero”, publicado em 1934.

Quando contei a Cioran, em 1991, como haviam sido descobertas suas cartas de juventude a Bucur Ţincu, o filósofo reagiu de uma maneira muito expressiva, emocionada-divertida, humorística no sentido mais profundo da palavra, exclamando: «Doze missivas dos cumes do desespero», e explodiu em risos, com lágrimas nos olhos. Após o que acrescentou: «Seria preciso publicá-las como um caderninho de versos». Sua reação – humorística no sentido consagrado desde Cervantes a Pirandello, passando por Thomas Mann – era um sinal, ainda que então eu ainda não me tivesse dado conta, de sua regressão cada vez mais acentuada, irreversível, em direção ao seu consumado período temporal romeno. Daí também a emoção com que revivia qualquer acontecimento, por mais insignificante que fosse, relacionado com seus anos de infância e juventude.

O livro é bastante instigante, pois, além de escrito na forma de um livre ensaio, portanto dotado de uma escrita leve e agradável, revela facetas inauditas do obscuro Cioran. Ademais, é um romeno pelo olhar de outro romeno, ou seja, por alguém que tem “conhecimento de causa” quanto ao lugar de fala do autor – alguém que compreende, pois, sua complexa “romenidade”, causa de seus dissabores e também de sua grandiosidade.

“Os judeus não são um povo, mas um destino”

Desde já, é digna de nota a parte intitulada “El judío Cioran”, que contribui para desmitificar o suposto anti-semitismo de Cioran (que alguns críticos tentam sustentar baseados em seus escritos políticos e engajamentos de juventude). Somos informados de que, muito pelo contrário, os judeus sempre exerceram uma profunda fascinação sobre o autor de “Un peuple de solitaires”, que reivindicava razões para sentir-se, de certa maneira, um judeu sem ser judeu. Grosso modo, a identificação seria justificada pela experiência de progressivo desenraizamento e pelo sentimento de “exílio metafísico” reivindicados por Cioran, segundo os quais seria ele um indivíduo sem estatuto definido, cívica e ontologicamente: “um estrangeiro para a polícia, para Deus e para mim mesmo” (Le Mauvais Demiurge).

Vartic ajuda a dissipar a névoa de suspeita sobre o suposto anti-semitismo que sempre rondou a biografia de Cioran, particularmente em função do seu Schimbarea la fata a Romanei (“A Transfiguração da Romênia”, publicado em 1936, é único ensaio político de Cioran e destoa, em forma e conteúdo, de todos seus outros livros). Os judeus – notadamente, no contexto da Romênia entre guerras, com sua atmosfera de tensão nacionalista e xenofóbica – nunca foram uma preocupação para Cioran, como o foram generalizadamente nos países europeus (ocidentais e orientais) da primeira metade do século XX. O que os críticos erroneamente identificam nele, no tocante aos seus rapports com os judeus em particular, é, na verdade, um traço da sua personalidade enquanto tal, algo que concerne à relação ambivalente e conflituosa que Cioran mantinha em relação a tudo e a todos – a começar por si mesmo. Sobre “A Transfiguração da Romênia”: emulando um nacionalismo exacerbado, munido de uma retórica agressiva, o libelo é uma exortação à libertação dos romenos em relação aos seus “parasitas” – que para o jovem autor revelam-se como sendo os próprios romenos, sobretudo as gerações anteriores. Sua biógrafa e compatriota naturalizada norte-americana, Ilinca Zarifopol-Johnston, assim descreve o livro:

É em parte um ensaio filosófico, em parte um panfleto político, em parte uma visão utópica. Porém, mais do que qualquer coisa, é o registro de uma crise de identidade, e sua retórica violenta trai uma mente autoral em estado de ansiedade aguda, incansável, buscando e desesperada para encontrar uma resposta aos seus questionamentos obsessivos sobre o destino do seu país e o seu próprio. (ZARIFOPOL-JOHNSTON: 2009)

Em todo caso, se a Romênia era um fracasso de nação, a culpa não podia estar senão nos próprios romenos, e em ninguém mais. Eis aí um traço característico de sua tempestuosa personalidade: o imperativo de procurar dentro (e não fora), em si (e não nos outros), a origem dos próprios problemas, sejam eles de âmbito individual ou coletivo. Nesse sentido, o primeiro capítulo de La Tentation d’éxister (“A Tentação de Existir”, 1956) é muito sugestivo: Penser contre soi (“Pensar contra si”) resume o programa de Cioran.

Emil Cioran é um expoente da “jovem geração” romena da década de 30, que inclui também Mircea Eliade, Eugen Ionescu, Constantin Noica, entre outros – todos eles, á época, estudantes na Universidade de Bucareste. Período turbulento, em que uma Romênia historicamente explorada encontra-se em plena ebulição social e política, em vias de acertar as contas com o seu passado e preparar o seu futuro. É no contexto deste período entre guerras que surge a Guarda de Ferro, capitaneada pelo jovem idealista Corneliu Codreanu: um movimento ultra-nacionalista, xenófobo e de caráter totalitário, ao qual muitos jovens intelectuais viriam a ser cooptados naquele contexto de engajamento político quase compulsório.

Marcada por um alto grau de fanatismo, a Guarda de ferro – ou Legião do Arcanjo Miguel, seu heterônimo religioso – tinha como lema: “tudo pela pátria”, invocando seus legionários a sacrificarem-se pelo futuro da nação. A referência bíblica não é fortuita: aponta para o núcleo religioso de sua doutrina política,  que afirmava o cristianismo ortodoxo como elemento central, indissociável da identidade romena. Sua utopia messiânica: uma ressurreição espiritual da Romênia, ideal que encontrava na noção mística de um “novo homem”, espiritualmente transfigurado e renascido, o fundamento espiritual para o surgimento de uma “nova nação”. O fanatismo da Legião levou o movimento a um culto irracional do auto-sacrifício, da violência e até mesmo da morte em nome da causa nacional.

O jovem Cioran foi um destes que se aproximou, ainda que de maneira oblíqua, da Guarda de Ferro, tendo tido, junto aos colegas citados, a infelicidade de se deixar seduzir pelo canto da sereia chamada Nae Ionescu (nenhum parentesco com o dramaturgo). Ionescu era um carismático professor de filosofia da Universidade de Bucareste, e fervoroso partidário da Legião. No grupo de estudantes do qual fez parte Cioran, que seriam todos aliciados pelo insidioso professor, havia jovens de todo tipo de inclinação política: monarquistas, conservadores, democratas, liberais, comunistas, marxistas, anarquistas, etc. A urgência de uma solução que desse alguma esperança aos romenos, em meio ao cenário de agonia nacional que caracterizou a Romênia da década de 30, fez com que muitos espíritos não destituídos de inteligência se precipitassem em engajamentos desastrosos que posteriormente viriam a lamentar.

As virtudes do fracasso

O capítulo intitulado “Los crápulas [“devassos”, “libertinos”] de Sub Arini” (nome de um parque em Sibiu, cidade romena que Cioran habitou antes de mudar-se para Bucareste e, de lá, para Paris) disserta sobre o fascínio que os fracassados (“les ratés”) sempre exerceram sobre Cioran. Ele teve vários amigos de juventude que se encaixam no perfil: “Mes grands amis en Roumanie n’étaient pas du tout des écrivains, mais des ratés“. Interpretando as razões para tal fascínio, Vartic escreve que, “imensamente ricos por seu potencial espiritual nunca utilizado, os fracassados atraem e seduzem instantaneamente, já que formam parte da esfera do ‘interessante'”. Inversamente, Cioran declarou numa entrevista que “o bem-sucedido em tudo é necessariamente superficial” (Entrevistas com Sylvie Jaudeau), logo, desinteressante, sem nada a oferecer em matéria de profundidade espiritual. Um desses grandes fracassados, cuja companhia desfrutou nos cafés e tavernas de Sibiu, é Ion Tatu, intrigantemente apelidado de “Ion da múmia”. Ele gostava de imitar sua mãe, que vivia lhe criticando: “Ion, nada fizeste de tua vida…”. Mas o que é que fazia desses indivíduos verdadeiros fracassados? O fato de terem permanecido aquém de suas potencialidades, o fato de que poderiam ter sido alguém e feito algo de suas vidas, mas terminaram não sendo ninguém e não fazendo nada – indivíduos perfeitamente irrealizados. Outro destes fracassados é Ghiţă Văcaru, jovem abastado, proveniente de uma nobre família, que, tendo tido todas as condições favoráveis – materiais e intelectuais – para realizar-se na vida, pôs tudo a perder e terminou na pior. Pulando de faculdade em faculdade, de curso em curso, sem nunca concluir nenhum deles, “devorou duas casas, como se dizia naqueles tempos quando alguém desperdiçava uma fortuna”.

O próprio Cioran viveu perseguido por essa tentação do fracasso, que tratou de combater mediante a busca incessante de uma missão literário-filosófica. Ironicamente, revela noutra entrevista: “Não tive a sabedoria de deixar inexploradas minhas potencialidades, como os verdadeiros sábios que admiro, os que, de propósito, nada fizeram da vida” (Entrevistas com Sylvie Jaudeau). Felizmente, ele não sucumbiu à tentação de nada fazer de sua vida, de permanecer perfeitamente irrealizado deixando inexplorado todo o talento que possuía. Através da escritura, fez-se “alguém”, criou-se a si mesmo: E.M. Cioran, ou, simplesmente, Cioran (como passou a assinar seus livros no final da vida).

O complexo de Fiesco

Para examinar aquele que seria o complexo de insignificância de Cioran, complexo este intimamente à sua identidade romena, Vartic recorre novamente a Schiller, dessa vez a uma de suas peças: A conjuração de Fiesco em Gênova. Gian-Luigo Fiesco, protagonista do drama, é “o arquétipo do indivíduo demasiado grande em um país demasiado pequeno”, alguém que, dotado de um grande gênio, está fadado a sonhar alto, não suportando “o estatuto de subalterno, completamente obcecado como está com o primeiro lugar, não aceita de modo algum ser o segundo”.  Cioran aspira em ser o primeiro, mas sente-se forçado a admitir: “Sou uma existência ridícula”, conforme declara em missiva a Bucur Ţincu (recorrendo a uma fraseologia claramente inspirada em Dostoievski, com o seu “homem ridículo”). A razão de ser desse sentimento, entretanto, não é pessoal (um problema de economia do ego), mas cultural; parte de uma vergonha não por ser Cioran, mas por ser romeno e, ainda por cima, um romeno de província, nem sequer da capital (portanto, por pertencer a uma cultura pequena, insignificante). Ser Emil Cioran não é uma vergonha, ou, em caso seja, só o era na medida em que Emil Cioran é romeno e não alemão, francês, inglês, italiano ou espanhol. Seu grande medo era fracassar, ou seja, ter o mesmo destino que a Romênia, reproduzindo ao nível da existência individual o fracasso do seu país no âmbito da história. Se a Romênia estava condenada a não ter futuro, ele, sim, haveria de inventar-se um.

O problema da cultura – A repercussão pós-Segunda Guerra que teve “A Transfiguração da Romênia” fez com que a questão política em Cioran eclipsasse uma outra, esta por sua vez muito mais premente: a questão da cultura. Seus escritos da época (década de 30) revelam uma enorme preocupação com a situação da Romênia e o seu futuro histórico, porém não em termos de política, senão propriamente de cultura. Vartic especula que, caso Cioran tivesse tido vocação para professor, caso tivesse virado um acadêmico, sua área de interesse por excelência teria sido a filosofia da cultura.

O diagnóstico de Cioran sobre a Romênia dos anos 30 poderia ser resumido da seguinte forma: os romenos sofrem de uma espécie de “impotência cultural histórica”, sendo um povo incapaz de criar e afirmar seus próprios valores, universalizando-os – justamente o que lograram fazer as grandes nações européias do Ocidente, França em primeiro lugar. Uma distinção fundamental para compreender o problema romeno segundo Cioran é aquela entre “povo” e “nação”. O primeiro estaria associado à idéia de mera geografia, natureza, forma de vida elementar, vegetativa pré-histórica e pré-cultural; uma “nação”, por outro lado, pressuporia: dinamismo cultural, expansão histórica, formas de vida cada vez mais complexas e elevadas.

Dito isso, a Romênia estaria reduzida ao estatuto de “povo” por ser espiritualmente incapaz de engendrar uma grande cultura (o sintoma cultural dessa impotência seria o caráter essencialmente folclórico da cultura romena). Por outro lado, uma “nação”, no sentido pleno do termo, dotada de uma grande cultura, seria um povo que não apenas chegou a inserir-se na história, como, sobretudo, faz a história. Não é o caso da Romênia, que é feita pela história, participando dela não como sujeito, mas como objeto, de maneira puramente passiva, como um espectador, pois destituída da força necessária para decidir sobre o rumo dos acontecimentos. É justamente essa debilidade, segundo Cioran, que fazia dos romenos um “povo de fracassados”.

A questão da crise de identidade romena leva Vartic a analisar algumas posições ambíguas do jovem Cioran em relação à alteridade geopolítica. Antes de mais nada, é altamente significativo o fato de que Cioran nasceu na Transilvânia, região da Romênia que à época encontrava-se anexada ao Império Austro-Húngaro. Cumpre notar, ademais, que a origem latina dos nomes de Cioran e dos seus irmãos (Emil, Aurel, Virginia) não é fortuita, senão que parte de uma motivação do chefe da família (que assim os batizou), ao mesmo tempo cultural e política: afirmar, em meio à ocupação austro-húngara, a herança latina (de origem romana) dos Cioran em particular, e dos romenos de modo geral. Além de sacerdote cristão ortodoxo, Emilian Cioran era um fervoroso nacionalista, liderando um movimento em prol da emancipação da Transilvânia e sua reintegração ao grande reino da Romênia. Contudo, as posições do fils de pêtre quanto à questão da identidade nacional são equívocas e confusas. Se, por um lado, coloca-se na posição do escravo, ressentindo-se do “gendarme húngaro, terror de minha infância na Transilvânia” (História e Utopia), por outro, chega a demonstrar afinidade com os húngaros e, sobretudo, com os austríacos, esforçando-se por encontrar vestígios genealógicos na sua família que legitimem o seu desejo de uma ancestralidade outra, mais ilustre que a sua – valaca. Cioran gostava de pensar que tinha ascendência austríaca e que, por isso, estava autorizado a sentir-se integrante de uma cultura “superior”. Ademais, tudo indica que ele de fato possuía ascendência húngara, ainda que remota.

Se o século XX veio a conhecer pelo menos três personalidades romenas que se fizeram célebres em suas respectivas áreas (Cioran na literatura, Mircea Eliade na história das religiões, Eugène Ionesco na dramaturgia), não foi por pura sorte, acaso, ou coisa que o valha. A ambição de conquistar o mundo, tendo saído de um rincão inóspito como a Romênia, é algo comum a todos eles (segundo Vartic, especialmente Cioran e Ionesco). Se há algo em comum entre eles, é uma certa “sede demiúrgica” que o seu país não pode saciar. Sentem-se, com efeito, como o personagem da peça de Schiller: são grandes demais para a Romênia, e por isso não podem realizar-se senão no exterior, voltando-se para fora. Ser alguém, fazer um nome em âmbito nacional, ainda mais em se tratando da Romênia, é para eles uma ambição muito modesta. Tomados por um desejo de glória que extrapola os limites de sua pequena cultura, ambicionam o mundo, aspiram à universalidade e à imortalidade – que viriam a conquistar com suas respectivas obras.

Segundo Vartic, não seria outra a motivação do deslocamento destes pensadores em direção ao Ocidente, e o afrancesamento deliberado de Cioran e Ionescu. “Ambos sentem freneticamente, já em meados dos anos trinta, que são demasiado grandes para um país tão pequeno. Esta é a idéia e este é o orgulho que impregnam tanto Schimbarea la faţă a României  como Nu [de Ionesco]”. O autor do primeiro abandona o idioma materno e adota o francês como língua oficial, além de mudar sua assinatura para E.M. Cioran (sigla supostamente inspirada no escritor E.M Foster, e cujo “M” do meio não corresponde a nenhum nome, como é de se supor, “Mihai”). O autor do segundo também se reinventa: de Eugen Ionescu, passa a assinar Eugène Ionesco, e também adota o francês como língua oficial, em virtude de sua universalidade. Estratégias, pois, de redefinição da própria identidade, formas de recriar-se a si mesmo e contrapor, ao determinismo de sua origem vergonhosa, uma nova identidade, esta por sua vez inventada sob medida. Mas não é possível efetuar esse câmbio senão através de um rompimento radical com o passado, com as próprias raízes. Paradoxalmente, quanto mais Cioran nega a sua identidade romena, mais termina por reafirmá-la.

As considerações de Vartic acerca da crise de identidade de Cioran têm o mérito de evidenciar certos traços de personalidade que poderiam parecer improváveis no caso desse “cético a serviço de um mundo em declínio”. Revelam, por exemplo, a megalomania oculta que o impulsiona, muito além da frustração de ser romeno. É surpreendente descobrir que se esconde, no autor do ensaio intitulado “Desejo e horror da glória” (cf. La Chute dans le temps), muito mais desse desejo, e não desse horror, do que se poderia imaginar. Se há uma virtude de que Cioran carece completamente, é a modéstia. Ao mesmo tempo, nenhum orgulho maior do que o seu, o mesmo podendo ser dito sobre sua vaidade. Não apenas lamenta não ter nascido francês, alemão ou inglês, como sente pesar por não ter sido um Pascal, um Nietzsche, um Schopenhauer, um Shakespeare, um Dostoievski. Neste sentido, todo o seu esforço seria então no sentido de fazer-se uma exceção à regra de que apenas as grandes culturas produzam grandes artistas e grandes pensadores. Rebelando-se contra a sua romenidade, sonha com a glória dos grandes escritores que tiveram a sorte de não nascer na Romênia. Se, como pensava, ser humano é uma maldição, ser romeno é estar duplamente amaldiçoado. E lamenta-se por não poder exclamar: “«Pascal? um Cioran francês»; ou, «Schopenhauer e Nietzsche? Ciorans alemães»”.  À luz dessas considerações, ficamos com este aforismo lapidar: “Não é humilde aquele que se odeia” (L’inconvenient d’être né).

Compreensivelmente, essa ambição desmedida vai de par em par com uma severa exigência no que diz respeito aos critérios de autocrítica criativa que Cioran se impõe. Daí sua obsessão pelo estilo, que ele cultiva incansavelmente, depurando-o até o limite mediante uma rigorosa disciplina da linguagem. Para entender de que maneira ele pode ser classificado como um “sentimental” no sentido schilleriano, basta pensar em sua preocupação com a forma, o estilo: “Devemos corrigir tudo, até os soluços…” (Silogismos da Amargura), sentencia. Outro dos seus aforismos aborda a mesma questão, dessa vez enfatizando o sentido de combate à finitude (enquanto problemática humana por excelência) implicado na criação literária: “Quanto mais o tempo nos lesa, mais desejamos escapar dele. Escrever uma página sem defeito, uma frase apenas, nos eleva por cima do devir e de suas corrupções” (L’inconvenient d’être né).

Vale a pena citar o estudo intitulado Cioran, Le corrupteur corrompu (“Cioran, o corruptor corrompido”), de Nicolas Cavaillès. Valendo-se das noções antitéticas de “barbárie” e “método”, Cavaillès empreende uma crítica genética da escritura cioraniana, buscando explicar a maneira como a obra de Cioran desenvolve-se a partir de um duplo movimento. A tese do autor é que a escritura de Cioran se constrói mediante uma alternância entre a “barbárie” de um auto-engendramento efusivo (uma espécie de “jorro” textual intuitivo, patente nos seus escritos romenos), e o “método” de uma rigorosa busca pela perfeição do estilo.

Fato notável é a conversão lingüística (1947) a que se submete Cioran, dez anos após fixar-se em Paris (1937). Certa feita, ao dar-se conta do absurdo de traduzir Mallarmé ao romeno, toma a decisão de abandonar, de uma vez por todas, o idioma natal, passando a escrever apenas em francês. Por que, afinal, seguir escrevendo numa língua que ninguém conhece? Com efeito, Cioran se faz notar graças à sua obra francesa (a começar pelo livro de estréia, Précis de Décomposition, o “Breviário de Decomposição), ainda que essa notoriedade devida à nova identidade termine por remetê-lo à sua renegada origem romena – que é, afinal de contas, tão preponderante quanto irredutível.

Trata-se, pois, de muito mais que apenas um câmbio lingüístico; a adoção do francês como língua oficial implica uma verdadeira transfiguração interior, já que o idioma conforma a identidade de um indivíduo naquilo que ela possui de mais profundo; radicando-se na base do nosso ser, define, em última instancia, quem somos, não apenas enquanto povo mas também enquanto indivíduos. Assim, “Mallarmé lhe revela que, para penetrar em território lingüístico estrangeiro, é preciso dar um salto, e este salto equivale à perda da velha identidade” (LIICEANU: 1995). A conversão lingüística representa, assim, um passo determinante no sentido de romper com o próprio passado e com a tão incômoda identidade romena que atormentava Cioran. “Não se habita um país, habita-se um idioma. Uma pátria é isso e nada mais” (Aveux et Anathèmes).

Sobre a sua conturbada relação com o novo idioma, atentemos às palavras do próprio Cioran, extraídas de uma carta enviada ao amigo e compatriota, Constantin Noica (carta que viria a ser publicada como o primeiro capítulo de um dos seus livros franceses, História e Utopia, de 1960):

Seria iniciar o relato de um pesadelo contar-lhe com minúcias a história de minhas relações com este idioma emprestado, com todas as suas palavras pensadas e repensadas, refinadas, sutis até a inexistência, transtornadas pelos rigores da nuança, expressivas por haver exprimido tudo, de precisão assustadora, carregadas de fadiga e de pudor, discretas até na vulgaridade […] Não existe uma só cuja elegância extenuada não me dê vertigem: nelas não existe nenhum vestígio de terra, de sangue, de alma. Uma sintaxe de uma rigidez, de uma dignidade cadavérica, as comprime e lhes designa um lugar de onde nem o próprio Deus poderia desalojá-las. Quanto café, quantos cigarros e dicionários para escrever uma frase mais ou menos correta nesta língua inabordável, demasiado nobre, demasiado distinta para o meu gosto! E só me dei conta disso depois, quando, infelizmente, já era tarde demais para afastar-me dela; de outra forma, nunca teria abandonado a nossa [a língua romena] da qual às vezes sinto saudade do cheiro de frescor e de podridão, da mistura de sol e bosta, da feiúra nostálgica, da soberba descompostura (História e Utopia)

«Dom Quixote» e «Miorita»: mitos fundadores

“Um após o outro, adorei e execrei numerosos povos; jamais me ocorreu renegar o espanhol que gostaria de ter sido…” (Silogismos da Amargura). Cioran nutria uma paixão incondicional pela Espanha, mas a causa dessa paixão ia muito além das leituras dos grandes nomes da cultura hispânica que ele tanto adorava: Cervantes, Teresa de Ávila, João da Cruz, Unamuno, Ortega y Gasset, entre tantos outros. Vartic explica que o interesse de Cioran pela Espanha está ligado à situação problemática da Romênia de sua época. Segundo ele, o país de Cervantes representava para Cioran um modelo de cultura intermediária ao alcance da Romênia, que poderia vir a ser, se não uma França ou uma Alemanha, uma espécie de Espanha dos Bálcãs. Cioran vivia, então, “no período em que concebeu e escreveu sua obra rebelde-programática, com a esperança […] de que a Romênia superaria o círculo fechado das culturas pequenas e avançaria em direção a «uma zona a meio caminho entre as culturas grandes e as pequenas», de modo a converter-se, como a Espanha, numa cultura intermediária”. Mas para tal, seria necessário efetuar um “salto voluntário” mediante o qual seriam preenchidos os “vazios axiológicos acumulados ao longo dos séculos, ao ponto de que a Romênia alcançaria um «sentido histórico análogo ao da Espanha»”.

Dito isto, cumpre mencionar o paralelo estabelecido por Vartic entre o espanhol Dom Quixote e a Mioriţa romena, considerados por Cioran como mitos fundadores de suas respectivas culturas. A aproximação não tem tanto a intenção de ilustrar supostas semelhanças entre ambas as culturas, como de pô-las em tela de contraste para evidenciar as divergências percebidas por Cioran entre o seu país e aquele onde gostaria de ter nascido. Tratam-se, pois, de narrativas fundadoras, as “verdades vitais” de seus respectivos povos. Mas, se o “Cavaleiro da Triste Figura” (“Breviário de Decomposição”) simboliza o delírio a partir do qual se inicia a fértil aventura da Espanha moderna, a balada folclórica da Mioriţa simboliza para Cioran, enquanto “verdade não-vital”, a raiz do fracasso romeno. Uma narrativa cujo significado denuncia “a resignação fatalista, a inação e o culto à morte” que supostamente caracterizam o volksgeist romeno.

Mioriţa é uma balada popular que põe em cena três pastores, com seus respectivos rebanhos: um transilvano, um moldavo e um valaco, representando os fundadores do povo romeno. Dois deles, o transilvano e o valaco, conspiram contra o terceiro para matá-lo e roubar-lhe as ovelhas. Mioriţa é uma ovelha mágica que tenta alertar o dono sobre os planos dos outros dois pastores. Numa atitude que caracterizaria o ethos romeno, a vítima não dá ouvidos à ovelha e termina morta pelos vizinhos. A interpretação que Cioran faz da estória é que a passividade do pastor moldavo perante o destino configura-se, no fundo, como um traço distintivo do povo romeno de modo geral. Por isso mesmo, a Mioriţa representa para ele o mito romeno culpável por excelência: «O abandono passivo ao destino e à morte; a descrença na eficácia da individualidade e da força; a distância menor ante todos os aspectos da vida deram como resultado a maldição poética e nacional em que se converteu Mioriţa, que […] constitui a ferida aberta da alma romena».

Uma metafísica da regressão

O caráter nebuloso, incerto, misterioso, do pensamento de Cioran, tão contraditório e paradoxal quanto aparenta ser, provém do perpétuo conflito entre Negação e Afirmação que se dá na profundeza da sua alma. Paroxismo da oscilação entre Sim e Não (endereçados a si mesmo, ao mundo, à existência, à Vida); síndrome dos espíritos ondulantes que não podem jamais aderir a uma idéia, um princípio, uma verdade; imperativo da indefinição como modo de vida e de pensamento; dedicação integral das energias psíquicas ao tema do Insolúvel.

Quanto mais um artista domina a sua arte, mais é capaz de mostrar o que deseja mostrar, e ocultar o que deseja ocultar. Cioran é mestre inigualável na arte de criar mal-entendidos, despistar, desorientar o leitor em relação àquele que seria o seu verdadeiro “eu”, por detrás de todas as máscaras literariamente forjadas. Acreditava que todo escritor que se preza deveria deixar uma imagem incompleta de si mesmo. Quem é, afinal, Cioran? A pergunta mesma mostra-se inadequada, pois o que se busca responder é algo que, afinal de contas, encontra como última palavra a indefinição, a inconclusão – o silêncio.

São Paulo, 3 julho de 2011

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