“La perduta gente” – CIORAN

QUE IDEIA RIDÍCULA construir círculos no inferno, variar por compartimentos a intensidade das chamas e hierarquizar os tormentos! O importante é estar ali: o resto – simples floreios ou… queimaduras. Na cidade de cima – prefiguração mais doce da de baixo, ambas originárias do mesmo modelo –, o essencial, igualmente, não é ser algo concreto – rei, burguês, jornaleiro –, mas aderir ou subtrair-se a ela. Você pode sustentar tal ideia ou outra, ter uma posição ou rastejar, desde o momento em que seus atos e seus pensamentos servem a uma espécie de cidade real ou sonhada, você se torna idólatra e prisioneiro. O mais tímido empregado como o anarquista mais fogoso, levados por interesses diferentes, vivem em função dela: todos os dois são interiormente cidadãos, embora um prefira seus chinelos e o outro, sua bomba. Os “círculos” da cidade terrestre, exatamente como os da cidade subterrânea, encerram os seres em uma comunidade condenada e os arrastam a um mesmo desfile de sofrimentos, no qual seria ocioso buscar matizes. Quem dá sua aquiescência aos assuntos humanos – sob qualquer forma, seja revolucionária ou conservadora – consome-se em um deleite lamentável: mistura suas nobrezas e suas vulgaridades na confusão do devir…

Ao que não consente, deste lado ou do outro da cidade; a quem repugna intervir no curso dos grandes e dos pequenos acontecimentos, todas as modalidades da vida em comum parecem igualmente desprezíveis. A história só saberia apresentar a seus olhos o interesse pálido de decepções renovadas e de artifícios previstos. Quem viveu entre os homens, e aguarda ainda um só acontecimento inesperado, esse não compreendeu nada e nunca compreenderá nada. Está maduro para a Cidade: tudo deve ser-lhe oferecido, todos os postos e todas as honras. Tal é o caso de todos os homens e isso explica a longevidade deste inferno sublunar.


CIORAN, E. M. Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

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