“Exegese da decadência” – CIORAN

O aforismo “Exegese da decadência” retoma — sob uma outra luz, pelo filtro de um novo idioma e da forma mentis peculiar que ele modela — a temática e a problemática de um importante texto periodístico de juventude do autor romeno do Breviário de decomposição: trata-se de Nihilism şi natura [Niilismo e natureza], publicado originalmente na revista romena Vremea, em 30 de maio de 1937 (e contido no volume Solitude et destin). Época, portanto, do seu engajamento político radical (Guarda de Ferro), um ano após a publicação do Livro das ilusões e de Schimbarea la faţă a României. Contradição flagrante entre o ideal utópico de um “coletivismo nacional” que pudesse conduzir a uma “Transfiguração da Romênia”, e a um “Novo Homem” romeno, e o mais apolítico (e apocalíptico) dos niilismos, a necessidade infinita de uma solidão indiferente a toda noção de uma comunidade humana ideal (impasse humano, ético-político, por excelência, e que Platão captou bem, assim como seus contemporâneos sofistas).

No fundo, como Cioran mesmo diz, o seu pensamento, no que possui de essencial, ou seja, suas intuições originais e primeiras (insônia, “nos cumes do desespero”, absurdo, primazia do nada e da impureza na existência, horror e êxtase da vida, o mal), nada disso mudou (nem poderia), o que mudou é a forma, a atitude, o tom, a consecução, o desdobramento… Se em algum momento do passado o pessimismo antropológico e político do jovem estudante de filosofia o levaria a idealizar e defender uma “Transfiguração da Romênia” por meio de uma ditadura brutal, com o passar dos anos, o desenraizamento, o “exílio metafísico” e a ruptura com o próprio passado, com as próprias raízes (sua romenidade), esse mesmo pessimismo (ético-político, antropológico, psicológico, existencial, metafísico) o levará a conclusões diversas: à lucidez como desfascinação e desilusão, antídoto contra toda ideologia, crença, ideal. Niilismo? Talvez (diriam alguns), mas não necessariamente (o ideal de viver sem objetivo nem fundamento é muitíssimo familiar às espiritualidades das grandes religiões orientais como o hinduísmo e o budismo). Ceticismo? Seguramente: “Entrego-me ao prazer de estar desenganado; acima da Dúvida só coloco a satisfação que proporciona…”, escreverá o ex-fanático e ex-profeta no Breviário de decomposição. Pessimismo? Muito (“História universal: história do Mal. Suprimir os desastres do devir humano é o mesmo que conceber a natureza sem estações”). Mas também ironia, frivolidade, diletantismo… “Se tivesse que renunciar ao meu diletantismo, me especializaria no uivo”, escreve ele nos Silogismos da amargura. No uivo, e nada mais. Cioran é doravante espectador, estarrecido e admirado, do mundo e de si mesmo, um “secretário das próprias sensações”.

*

CADA UM de nós nasceu com uma dose de pureza, predestinada a ser corrompida pelo comércio com os homens, por esse pecado contra a solidão. Pois cada um de nós faz o impossível para não se ver entregue a si mesmo. O semelhante não é fatalidade, mas tentação de decadência. Incapazes de guardar nossas mãos limpas e nossos corações intactos, nos sujamos ao contato de suores estranhos, chafurdamos sedentos de nojo e entusiastas de pestilência na lama unânime. E quando sonhamos mares convertidos em água benta, é tarde demais para mergulharmos neles, e nossa corrupção demasiado profunda nos impede de afogar-nos ali: o mundo infectou nossa solidão; as marcas dos outros em nós tornam-se indeléveis.
Na escala das criaturas, só o homem pode inspirar um nojo constante. A repugnância que provoca um animal é passageira; não amadurece no pensamento, enquanto que nossos semelhantes inquietam nossas reflexões, infiltram-se no mecanismo de nosso desapego do mundo para nos confirmar em nosso sistema de recusa e de não adesão. Depois de cada conversa, cujo refinamento indica por si só o nível de uma civilização, por que é impossível não sentir saudades do Saara e não invejar as plantas ou os monólogos infinitos da zoologia?
Se com cada palavra obtemos uma vitória sobre o nada, é apenas para melhor sofrer seu domínio. Morremos em proporção às palavras que lançamos em torno de nós… Os que falam não têm segredos. E todos nós falamos; nos traímos, exibimos nosso coração; carrasco do indizível, cada um esforça-se por destruir todos os mistérios, começando pelos seus. E se encontramos os outros, é para aviltar-nos juntos em uma fuga para o vazio, seja no intercâmbio de ideias, nas confissões ou nas intrigas. A curiosidade não só provocou a primeira queda, como as inumeráveis quedas de todos os dias. A vida não é senão esta impaciência de decair, de prostituir as solidões virginais da alma pelo diálogo, negação imemorial e quotidiana do Paraíso. O homem só deveria escutar a si mesmo no êxtase sem fim do Verbo intransmissível, forjar palavras para seus próprios silêncios e acordes audíveis apenas a seus remorsos. Mas ele é o tagarela do universo; fala em nome dos outros; seu eu ama o plural. E o que fala em nome dos outros é sempre um impostor. Políticos, reformadores e todos os que reivindicam um pretexto coletivo são trapaceiros. Só a mentira do artista não é total, pois só inventa a si mesmo. Fora do abandono ao incomunicável, da suspensão no meio de nossos arrebatamentos inconsolados e mudos, a vida é apenas um estrondo sobre uma extensão sem coordenadas, e o universo uma geometria que sofre de epilepsia.
(O plural implícito de “se” [on] e o plural confessado do “nós” [nous] constituem o refúgio confortável da existência falsa. Só o poeta assume a responsabilidade do “eu”, só ele fala em seu próprio nome, só ele tem o direito de fazê-lo. A poesia se degrada quando torna-se permeável à profecia ou à doutrina: a “missão” sufoca o canto. a ideia entrava o voo. O lado “generoso” de Shelley torna caduca a maior parte de sua obra: Shakespeare, felizmente, nunca “serviu” para nada.
O triunfo da não autenticidade tem seu acabamento na atividade filosófica, esta complacência no “se”, e na atividade profética [religiosa, moral ou política], esta apoteose do “nós”. A definição é a mentira do espírito abstrato; a fórmula inspirada, a mentira do espírito militante: uma definição encontra-se sempre na origem de um templo; uma fórmula reúne inelutavelmente os fiéis. Assim começam todos os ensinamentos.
Como não se voltar então para a poesia? Ela tem – como a vida – a desculpa de não provar nada.)


CIORAN, E.M., Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

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