“O emigrado metafísico: o gnóstico” (Sylvie Jaudeau)

A atitude gnóstica constitui, com efeito, a chave de uma obra representativa das tendências contraditórias deste século: niilismo, angelismo, revolta e fatalismo. Mais precisamente, ela nos fornece a resposta a esta questão que não falha em colocar-se a propósito de Cioran: como o niilismo é compatível com uma criação literária? O ato literário em si mesmo, não seria ele não apenas o sintoma, mas também a causa do niilismo de uma certa categoria de escritores? Esta hipótese, de formulação aparentemente paradoxal, repousa sobre a ideia de que o ato de escrever implica um risco de gnose, pois é, em sua essência, esquecimento da coisa em proveito do imaginário. Seguir-se-ia, a partir de tais premissas, que o niilismo proclamado por certas obras literárias seria expelido pelo uso mesmo da escritura.

Nós amaríamos colocar em evidência esse paradoxo de um autor como Cioran, cuja reputação de maître en démolition oculta um outro aspecto do seu pensamento: uma reflexão sobre a própria escritura. Seus comentários sobre a vaidade da palavra nos pareceriam, inicialmente, o efeito lógico de uma apreensão niilista do mundo, mas descobrimos, em seguida, na inversão desta proposição, uma explicação igualmente satisfatória. Não estaríamos encerrados em um círculo em que a escritura engendraria o nada que ela denuncia, e que por sua vez se manifestaria na escritura? Uma afirmação tal não se mostra tão gratuita como parece, quando se sabe que este pensamento, que se pretende oriundo de um olhar sobre o exterior, elabora-se em realidade a partir de um combate com a língua. Entregue às dificuldades do aprendizado de uma língua, e portanto às da expressão oral, a sua obra nasce não de uma relação de harmonia com as palavras, mas, ao contrário, de uma ruptura, de uma guerra com o verbo. Ainda que ele chegue a dominar magnificamente esse instrumento, a sentir-se confortável em seu universo verbal, guarda na memória essa hostilidade originária que não cessa de agir silenciosamente nele.

Assim, a escritura, como exacerbação da separação, esforço desesperado em direção a uma transparência recusada, e a visão gnóstica do mundo como exílio, distanciamento de uma realidade interdita, encontram-se na mesma tentação em direção a um alhures que recua continuamente e na mesma certeza de uma ruptura inicial. Que Cioran reflita ao mesmo tempo sobre o fenômeno gnóstico e sobre o seu métier de escritor, não me parece uma justaposição fortuita, mas a confirmação de um elo entre as duas atitudes, ambas sendo o resultado de uma mesma maneira de estar no mundo, de uma mesma experiência do tempo.

Ambas as atitudes se fundam sobre uma vivência trágica do tempo, sobre a incapacidade de integrar a duração. Sempre em posição de estrangeirismo em face do tempo, e portanto do mundo, elas conhecem apenas o solamento distante do real, que se recusa. De onde uma nostalgia que as habita perpetuamente. É evidente que a escritura, enquanto apartar-se do real, só pode reavivar uma tal sensibilidade, e também que todo escritor, consciente de sua prática literária, é acuado, a despeito de si mesmo, a um comportamento de tipo gnóstico. O caso de Cioran nos fornece um exemplo significativo deste fenômeno, O exílio e a consciência que ele exacerba se transpõem num retorno da própria escritura, que representa o fracasso de toda presença possível.

Uma tal escritura, na qual registra-se uma vã aspiração a reintegrar uma totalidade perdida, reflete em sua forma a ruptura da qual ela se origina. Escritura que responde à fragmentação do ser, que não pertence a um sistema totalitário, exercendo-se na descontinuidade do fragmento.

Tudo o que remete à carne é corrupção, a criação é escandalosa e monstruosa. Cioran parece fazer sua essa cosmologia. Encontraremos nele a existência de dois princípios, sem relação entre si, nos quais reconhecemos o dualismo integral promovido por Simon: nenhuma medida comum entre o verdadeiro mundo e o falso. Esse dualismo inicial e exterior reproduzindo-se no interior do homem, nenhuma convergência das duas forças que presidem o seu nascimento. Produto de um agregado de espírito e de matéria, ele possui um sentimento agudo da divisão que o habita, dualidade que não escapa a Cioran. Essa divisão de si suscita o sentimento do exílio sobre o qual se fundam todos os mitos gnósticos (“estamos no mundo e não estamos no mundo”), consciência existencial que não é, certamente, exclusiva da gnose, mas que constitui a sua premissa fundamental.

JAUDEAU, Sylvie, Cioran ou le dernier homme. Paris: José Corti, 1990, p. 56-9.

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