Em Da outra margem, coleção de ensaios e diálogos escrita por Alexander Herzen entre 1847 e 1851, o jornalista radical russo imagina um diálogo entre alguém que acredita na liberdade humana e um cético que julga os seres humanos por seu comportamento, e não pelos ideais professados. Para surpresa daquele que acredita, o cético cita a máxima de Rousseau: “O homem nasceu para ser livre — e em toda parte está acorrentado!” Mas o cético o faz apenas para zombar da exaltada declaração de Rousseau:
Vejo nela uma violação da história e desprezo pelos fatos. O que considero intolerável. Fico ofendido com semelhante extravagância. Além disso, é perigoso afirmar a priori, como se fosse um fato, o que na verdade é o xis do problema. Que se poderia dizer a um homem que, sacudindo com tristeza a cabeça, observasse: “Os peixes nasceram para voar — mas por toda parte estão nadando!”?
O cético então apresenta o argumento do “ictiofídeo”, o amante da humanidade que acredita que os seres humanos anseiam por liberdade:
Para começo de conversa, ele vai observar que o esqueleto de um peixe mostra claramente uma tendência a desenvolver as extremidades em forma de pernas e asas. Em seguida, mostrará ossinhos perfeitamente inúteis que constituem indício do osso de uma perna ou de uma asa. Falará então do peixe voador, que prova na verdade que a espécie dos peixes não só aspira a voar como eventualmente pode fazê-lo. Tendo dito tudo isto, ele estará justificado ao lhe perguntar, por sua vez, por que você não exige que Rousseau apresente uma justificativa da afirmação de que o homem deve ser livre, vendo que está sempre acorrentado. Por que tudo mais existe como deveria existir, ao passo que, no caso do homem, se dá exatamente o oposto?
A pergunta do cético — fazendo o papel do próprio Herzen — ainda não foi respondida. Em suas memórias, Meu passado e meus pensamentos, publicada em oito partes na década de 1850, quando ele vivia no exílio, Herzen relatava como a busca das ilusões — na era moderna, a ilusão da “humanidade” — determinou o curso da história:
A história se desdobrou por meio de absurdos; os homens constantemente depositaram suas esperanças em quimeras, e alcançaram resultados muito reais. Sonhando acordados, foram atrás do arco-íris, ora buscando o paraíso no céu, ora o céu na terra, e pelo caminho entoaram canções eternas, decoraram os templos com suas esculturas eternas, construíram Roma e Atenas, Paris e Londres. Um sonho dá lugar a outro; o sono às vezes fica mais leve, mas nunca se vai totalmente. As pessoas aceitam qualquer coisa, acreditam em qualquer coisa, se submetem a qualquer coisa e se dispõem a sacrificar muito; mas recuam horrorizadas quando pela fissura escancarada entre duas religiões que deixa entrar a luz do dia, sopra sobre elas o frio vento da razão […].
Isso serve apenas para reafirmar o diagnóstico do cético. Os ictiofídeos se dedicam à sua superfície como acreditam que deveria ser, e não como de fato é ou verdadeiramente quer ser. Eles se apresentam em muitas variedades: o jacobino, o bolchevique e o maoísta, aterrorizando a humanidade para refazê-la segundo um novo modelo; o neoconservador, permanentemente em guerra para alcançar a democracia universal; os cruzados dos direitos humanos, convencidos de que o mundo inteiro quer se tornar como eles próprios imaginam que são…
Os mais notáveis ictiofídeis são talvez os discípulos liberais de Rousseau, que acreditam que a individualidade humana em toda parte é reprimida. Dentre eles, nenhum é tão conhecido quanto o autor de Da liberdade (1859), seminal declaração da filosofia ictiofídea. No resumo de sua visão do mundo feita por Herzen, Johnn Stuart Mill ficava
[…] horrorizado com a constante deterioração das personalidades, do gosto e do estilo, a futilidade dos interesses dos homens e sua carência de vigor; ele olha com clareza e vê com clareza que tudo se torna raso, lugar-comum, vulgar, estereotipado, mais “respeitável”, talvez, porém mais banal […] e diz aos contemporâneos: “Parem! Pensem de novo! Sabem aonde estão indo? Vejam: sua alma está refluindo.”
Mas por que será que ele tenta despertar os que dormem? Que caminho, que saída terá encontrado para eles? […] Os europeus modernos, afirma ele, vivem em uma vã agitação, entregues a mudanças sem sentido: “Ao nos livrar das singularidades, não nos livramos das mudanças, desde que sejam sempre executadas por todos. Descartamos a maneira individual e pessoal de se vestir de nossos pais e nos dispomos a alterar o corte das roupas duas ou três vezes por anos, mas só se todo mundo o fizer; isto não é feito de olho na beleza ou na conveniência, mas pela mudança em si mesma […]. De modo que voltamos atrás e estamos diante da mesma questão. Com base em que princípio haveremos de despertar aquele que dorme? Em nome de que a personalidade débil, hipnotizada por ninharias, será induzida ao descontentamento com sua atual vida de ferrovias, telégrafos, jornais e produtos baratos?”
Os ictiofídeos imaginam que os seres humanos querem uma vida na qual possam fazer suas escolhas. Mas e se só se sentirem realizados com uma vida em que possam seguir uns aos outros? A maioria que segue a moda do momento pode estar agindo com base na secreta consciência de que carece do potencial para uma existência verdadeiramente individual.
O liberalismo — ou pelo menos a variedade ictiofídea — ensina que todos anseiam por ser livres. A experiência de Herzen nas malsucedidas revoluções europeias de 1848 o levou a duvidar que assim fosse. Foi em virtude de sua desilusão que ele criticou Mill com tanta severidade. Mas se é verdade que Mill se iludia ao pensar que todos amam a liberdade, também pode ser verdade que sem essa ilusão não houvesse liberdade alguma. O charme do modo liberal de vida é que permite à maioria abrir mão involuntariamente da própria liberdade. Permitindo que a maioria dos seres humanos se imaginem como peixes voadores, embora passem a vida debaixo das ondas, a civilização liberal repousa em um sonho.
GRAY, John, O silêncio dos animais. Trad. de Clóvis Marques. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2019.