“Carta a propósito de certos impasses” (E.M. Cioran)

VOCÊ CENSUROU muitas vezes em mim aquilo a que chama o meu “apetite de destruição”. Saiba, porém, que eu nada destruo: registo, registo o iminente, a sede de um mundo que se anula, e que, através da ruína das suas evidências, corre em direcção ao insólito e ao incomensurável, em direcção a um estilo espasmódico. Conheço uma velha louca que, esperando a todo o momento uma derrocada da sua casa, passa os dias e as noites cheia de aflição; circulando à volta do quarto, espiando cada estalido, irrita-se porque o acontecimento tarda a cumprir-se. Num quadro mais amplo, o comportamento desta velha é o nosso comportamento. Contamos com uma derrocada, mesmo quando não estamos a pensar nela. Mas nem sempre há de ser assim; podemos prever que o medo de nós próprios, resultante de um medo mais geral, virá a constituir a base da educação, o princípio das pedagogias futuras. Creio no advento do terrível. Você, meu caro amigo, preparou-se tão pouco para essa eventualidade que se dispõe a entrar na literatura. Não estou em posição que me permita desviá-lo desse caminho; mas gostaria que, pelo menos, o tomasse sem ilusões. Modere o autor que se impacienta dentro de si; faça seu, alargando-lhe o campo de aplicação, o dito de S. João Clímaco: “Nada concede ao monge melhores coroas do que o desencorajamento.”

CIORAN, E.M., A tentação de existir. Trad. de Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

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