“Dogma, Dúvida & outras paixões ‘demasiado humanas’: Skandalon-Cioran”

Cioran angariou bons amigos e boas amigas, leitores e leitoras mais ou menos distantes, e igualmente dedicados, com os quais manteve uma robusta correspondência epistolar. Mas também angariou muitos desafetos, difamadores, detratores e críticos empedernidos, inclusive no Brasil (vide Augusto Frederico Schmidt). O autor romeno de expressão francesa, espírito idiossincrático e excêntrico, é capaz de agradar a “Gregos & Troianos”, como também é capaz de suscitar horror, escândalo, aversão e às vezes ódio por parte daquele ou daquela que toma contato com seus textos. O que seria a causa de tanta apreciação e simpatia, por um lado, e de tanto desprezo e antipatia, por outro? Nesta primeira parte de uma série cujo tema é “Dogma, Dúvida & outras paixões ‘demasiado humanas'”, coloca-se em pauta a Poética da Decomposição cioraniana, à luz de uma reflexão (metafísica, teológica, existencial) sobre o problema do mal (Unde malum?), apresentando uma série de críticos, difamadores e detratores de Cioran, mais ou menos conhecidos (como George Steiner), para em seguida tematizar a particularidade do pensamento de Cioran que estaria na raiz dessa aversão e desse ódio amiúde evocados contra o autoproclamado “Cético a serviço de um mundo em declínio”.

Certo dogmatismo tendencial (teológico-religioso ou ideológico-político) é a causa – e o mínimo denominador comum – entre todos aqueles e aquelas que, a despeito de suas singularidades e diferenças pessoais, subjetivas, demonstram igualmente um horror escandalizado, uma aversão e um desprezo, quando não ódio, por Cioran. A “misociorania” seria, assim, uma espécie de reação alérgica a um conteúdo alergênico, à poética da lucidez como princípio antidogmático e dispositivo de antifanatismo. O Breviário de decomposição, que abre com uma “Genealogia do fanatismo”, é o livro de um ex-fanático. E também de um “ex-purista”, ou melhor, de um espírito (dilacerado, conflituoso) do “angelismo”. Do fanatismo ao anti-fanatismo, do angelismo/purismo ao anti-angelismo e à Poética da Impureza, da embriaguez do Irracional à lucidez como desfascinação, desprendimento e libertação (délivrance): a causa dessa transformação, metaformose ou transfiguração – a julgar pelo pensamento oriental de viés zen-budista, tão familiar e tão caro a Cioran – é chamada “A Grande Reviravolta” – o que, tendo o Vazio como objeto ou instrumento da libertação ou iluminação mesma, não configura niilismo (o que não seria senão um julgamento injustificado e preconceituoso que parte de uma visão de mundo ou paradigma demasiado ocidental, essencialista, substancialista, ontológico, etc.)

Para neutralizar o juízo sumário de Pierre-Henri Simon, segundo o qual Cioran escreveria bem e pensaria mal (embora o autor do Breviário pretenda o contrário), e também para relativizar e desconstruir o truísmo segundo o qual a “necessidade metafísica” de verdades e sentidos é a única necessidade antropologicamente válida, aceitável, normal, natural, recorremos aqui ao depoimento de um importante leitor e comentador de Cioran: Marco Lucchesi, poeta, escritor, ensaísta, tradutor, professor de literatura na UFRJ e presidente da ABL. Continuamos tematizando e problematizando a lucidez cioraniana como percepção do vazio (sunya) e ao mesmo tempo princípio de antidogmatismo, antifanatismo. Em diálogo com John Gray, colocamos em questão o caráter religioso das modernas utopias e ideologias políticas. Segundo o filósofo inglês, em sintonia com Cioran, por mais que a modernidade secular tenha se esforçado por superar e abolir as antigas crenças, ideias, estruturas, formas e modelos de pensamento (messianismo, finalismo do bem, milenarismo, etc.), notadamente de natureza onto-teológica, permanece submetida aos (e cúmplice dos) mesmos preconceitos e superstições atávicas da religião tradicional. A meio-caminho dos espíritos religiosos, teístas e escatológicos, que vivem esperando o Fim dos Tempos desde o ano zero de nossa era, e dos espíritos ideológicos, ateístas e utópicos, Cioran considera ambos igualmente vítimas de uma mesma ilusão, de uma mesma esperança, que os torna (a despeito de qualquer pessimismo tático, retórico, provisório e instrumental, ceticismo idem), proponentes de “visões de mundo” otimistas e, por assim dizer, “encantadas”.

O Breviário de decomposição pode ser entendido como uma espécie de “diário” de um ex-fanático (espírito utópico, idealista, romântico) que nutrira em sua juventude a esperança de uma “nova Romênia”, de um “novo Homem”, transfigurados pelo terror, de modo a despertar de seu “sonambulismo histórico” (lembremos que o hino nacional romeno inicia tematizando esse “sonambulismo”, exaltando os romenos a “despertar de seu sono de morte”). O Breviário e demais livros franceses de Cioran são expressões distintas (cada livro é uma fase, uma experiência, um microuniverso em si) de um ex-fanático que se submeteria, por necessidade, a uma “Grande Reviravolta” interior, após a qual – divorciado de si e vazio para sempre – é “apenas um objeto… Empanturro-me de todas as drogas da solidão; as do mundo foram fracas demais para me fazer esquecê-lo. Tendo matado o profeta em mim, como terei ainda um lugar entre os homens?” Arrependido de suas posições políticas extremadas de juventude, o autor do Breviário de decomposição ressurgirá como “Antiprofeta” e “Antifilósofo”, “Pensador de ocasião” e – a exemplo de Chestov, leitor de Kiekegaard, leitor de Jó – um Privat Denker (“Pensador privado”), na contramão do intelectual público engagé, militante e ativista. Tendo rompido com seu passado romeno e consigo mesmo, escrevendo em francês, Cioran se pretende um “militante do Vago” e um “entusiasta do Talvez”, o “ideólogo” – diletante, flutuante, hamletiano – de “panfletos sem objetivo” (História e Utopia). Só há um meio de acabar com a História, para que o devir humano chegue ao seu termo, a um fim: suprimir a “tara dogmática” do animal racional, que dá a ele “o gosto pela eficácia, pela profecia e pelo terror”, fazendo da História uma “sucessão de mitologias e de falsos Absolutos”, a duração milenar de uma perpétua Queda, que coincide com a busca de verdades e a certeza de havê-las encontrado (“a paixão por um dogma, o estabelecimento de um dogma”). Na História, “as certezas abundam” (enquanto que as dúvidas e o hamletismo são rarefeitos): “suprima-as e suprimirá sobretudo suas consequências: reconstituirá o paraíso.” (Breviário) Mas, como suprimi-las sem com isso fazer perecer a criatura, carente de dogmas, vazia e desocupada para sempre? Passar do “inconveniente de ser romeno” (e de ser Cioran) ao “inconveniente de ter nascido”, de ser humano, será necessário um longo e árduo trabalho interior de depuração da lucidez: uma “Grande Reviravolta”. Nesta última parte, tecemos algumas considerações ulteriores sobre a psicologia do dogmatismo-fanatismo, à luz da “Genealogia do fanatismo” e de “Os Dogmas Inconscientes” (ambos do Breviário de decomposição), traçando paralelos entre a crítica cioraniana dessa paixão dogmática que seria tão “demasiado humana”, de onde a duração lunática da História, e a realidade brasileira atual, marcada pelo Apocalipse zumbi-fanático-bolsominion-olavete-terraplanista.

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