“O princípio de realidade suficiente” (Clément Rosset)

Toda filosofia é uma teoria do real, isto é, conforme a etimologia grega da palavra teoria, o resultado de um olhar sobre as coisas: olhar ao mesmo tempo criativo e interpretativo que pretende, à sua maneira e segundo seus meios próprios, dar conta de um objeto ou de um conjunto de objetos dados. Este compte-rendu deve ser
entendido em todos os sentidos do termo: eco e testemunho por um lado (no sentido em que se faz um relato sobre tal ou tal assunto), avaliação por outro (no sentido em que se estabelece a soma do que se recebeu como quinhão a fim de ser capaz, se a ocasião se apresentar, de dar a cada um e a cada coisa o seu justo valor). O olhar filosófico é, assim, necessariamente interpretativo pelo simples fato de que “mede”, — como sugere belamente Nicolau de Cusa em O profano, aproximando o mental do mensurável, o fato de pensar do fato de medir. E é também sempre criativo, já que as imagens que propõe da realidade não são fotografias desta mas recomposições, as quais diferem do original tanto quanto um romance ou um quadro. E verdade que o caráter especulativo e intelectual da filosofia faz, por vezes, esquecer o seu aspecto fabricado, artesanal, que entretanto é primordial. Pois uma filosofia consiste primeiramente e antes de tudo em uma obra, em uma criação — criação cujas características não diferem fundamentalmente das de toda espécie de obra. A originalidade, a invenção, a imaginação, a arte da composição, a potência expressiva são o apanágio de todo grande texto filosófico como o são de toda obra bem-sucedida.

O que faz a especificidade da filosofia e a distingue das empresas paralelas (arte, ciência, literatura) é, assim, menos o tipo de técnica que utiliza do que a natureza do objeto que se propõe sugerir. Pois este não é um objeto particular, nem um conjunto particular de objetos, mas o conjunto de todos os objetos existentes, estejam ou não atualmente presentes; em suma, a realidade em geral, concebida na totalidade de suas dimensões espaço-temporais. Trata-se, para o filósofo, de dar conta de um olhar que tem por objeto não tal ou tal coisa, mas toda espécie de coisas, incluindo as que se situam fora do alcance de sua percepção (estas naturalmente as mais numerosas, começando pelas que pertencem, no entanto, a seu mundo próximo
mas que, sendo já e infinitamente demasiado numerosas, excedendo já e infinitamente a capacidade de atenção concedida a uma vida humana, escapam forçosamente à sua observação). Repetindo com Lucrécio: a realidade se compõe, por um lado, deste mundo, do qual podemos ter eventualmente uma percepção parcial (haec summa), por outro do conjunto de mundos dos quais não podermos ter quase nenhuma percepção (summa rerum). A ambição de dar conta do conjunto dos objetos conhecidos e desconhecidos define, ao mesmo tempo, a desmedida e a especificidade da atividade filosófica. Repito, esta não consiste essencialmente em ser mais “teórica” ou “abstrata” que uma outra, mas em ser mais geral: em ser uma teoria da realidade geral e não uma teoria de tal ou tal realidade particular (ou conjunto de fatos particulares) como o são por exemplo um quadro, um romance, um teorema matemático ou uma lei física. Na verdade, é sempre o mesmo real que é visado; a única diferença é que as “teorias” não filosóficas se ocupam de seu detalhe, enquanto que a filosofia — teoria da realidade grosso modo — interessa-se principalmente pelo seu conjunto.

Ora, se interrogamos a história da filosofia, percebemos que a maior parte das filosofias só puderam alcançar sua meta, isto é, a proposição de uma teoria geral do real, mediante a estranha condição de dissolver o objeto mesmo de sua teoria, de reenviá-lo a este quase nada que Platão chamava o “menor ser” (mè on) próprio às coisas sensíveis — quer dizer, às coisas reais — consideradas existentes apenas pela metade e com muito custo. Como se a realidade, da qual um pintor ou um romancista pode reproduzir, eventualmente e à sua maneira, o detalhe, só pudesse, em contrapartida, ser apreendida em seu conjunto pelo filósofo, se contestada em seu princípio mesmo e encontra-se assim despojada de sua pretensão de ser justamente a realidade, apenas a realidade, toda a realidade. Aliás, é um sentimento próprio, ao mesmo tempo, da filosofia e da sensibilidade mais comum julgar, confusamente, que as coisas são verdadeiras em seu detalhe, se consideradas uma a uma, mas duvidosas em seu conjunto, se consideradas em geral: que um fato pontual deve ser tido por real, mas que o conjunto dos fatos pontuais que compõem a realidade pode ser tido por incerto — em outras palavras, que, se é impossível duvidar de que quer que seja em particular, por outro lado é possível (e a filosofia tem freqüentemente isso como ocupação habitual) duvidar de tudo em geral. O acontecimento real é reconhecido como real mas não a soma de acontecimentos da qual ele faz parte, ou melhor, não faz verdadeiramente parte: já que há percepção precisa do primeiro e somente vago sentimento da segunda. Este paradoxo da certeza do detalhe ligada a uma incerteza do conjunto pode ser enunciado sob uma forma matemática (paradoxo de um elemento existente que pertence a um conjunto não existente) ou aritmética (paradoxo de uma unidade reconhecida como igual a uma mas incapaz de dar duas se lhe acrescentamos uma segunda unidade). Sem dúvida, admitir-se-ia sem dificuldade que só há realidade singular e de modo algum realidade genérica, que só existem cães em particular e não cão em geral, como o ensinavam os filósofos nominalistas da Idade Média. Em compensação, é mais difícil admitir que a soma das realidades singulares equivale a uma realidade inexistente ou imaginária, comparável às sombras da caverna tal como as sugere Platão em uma passagem célebre de A República.

O mais notável dessa reticência ancestral da filosofia em levar em consideração unicamente a realidade é que ela não provém de modo algum, contrariamente ao que se poderia prever, de uma angústia legítima ante a imensidade e portanto a impossibilidade de tal tarefa, mas sim de um sentimento exatamente oposto: da idéia que a realidade, mesmo supondo esta inteiramente conhecida e explorada, não entregará jamais as chaves de sua própria compreensão, por não conter em si-mesma as regras de decodificação que permitiriam decifrar sua natureza e seu sentido.

Considerar unicamente a realidade equivaleria portanto a examinar um avesso de que se ignorará sempre o direito, ou um duplo de que se ignorará sempre o original do qual é cópia. De tal modo que a filosofia tropeça habitualmente no real não em razão de sua inesgotável riqueza mas, ao contrário, de sua pobreza em razões de ser que faz da realidade uma matéria ao mesmo tempo ampla demais e escassa demais: demasiado ampla para ser percorrida, demasiado escassa para ser compreendida. Com efeito, não há nada no real, por mais infinito e incognoscível que ele seja, que possa contribuir para sua própria inteligibilidade: se é obrigado a buscar seu princípio em outro lugar, a tentar encontrar fora do real o segredo desse próprio real. Daí a idéia de uma insuficiência intrínseca do real: o qual careceria sempre, se posso dizer assim, e isto em todos os sentidos do termo, de sua própria “causa”.

O pensamento de uma insuficiência do real — a idéia de que a realidade só poderia ser filosoficamente levada em conta mediante o recurso a um princípio exterior à realidade mesma (Idéia, Espírito, Alma do mundo, etc.) destinado a fundá-la e explicá-la, e mesmo a justificá-la — constitui um tema fundamental da filosofia ocidental. Por outro lado, a idéia de uma “suficiência do real”, o que chamarei, lembrando Leibniz e seu princípio de razão suficiente, o princípio de realidade suficiente, aparece como uma inconveniência maior aos olhos de todos os filósofos — todos ou quase: deve-se naturalmente excetuar aqui os casos de pensadores tais como Lucrécio, Spinoza, Nietzsche, e mesmo, em certa medida, o próprio Leibniz. A intenção de filosofar unicamente sobre o real e a partir do real constitui, mesmo aos olhos da filosofia e da opinião mais comuns, um motivo de zombaria geral, uma espécie de enorme erro de base reservado apenas aos espíritos inteiramente obtusos e incapazes de um mínimo de reflexão. Daí os eternos gracejos endereçados pela maioria dos filósofos aos que confessam interessar-se pela experiência imediata, e mesmo satisfazer-se com ela; assim Hegel nessa passagem notável do início da Fenomenologia do espírito, que situa tal disposição mental abaixo mesmo da sabedoria dos animais: “Pode-se dizer aos que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensíveis que eles devem ser reenviados às escolas elementares da sabedoria, ou seja, aos antigos mistérios eleusínicos (de Ceres e de Baco) e que devem aprender, primeiramente, o segredo de comer o pão e de beber o vinho. Pois o iniciado nesses mistérios não só chega a duvidar do ser das coisas sensíveis mas a desesperar dele; por um lado leva a cabo a aniquilação dessas coisas, e por outro as vê realizar esta aniquilação. Os próprios animais não estão excluídos dessa sabedoria mas, ao contrário, mostram-se profundamente iniciados nela; pois não permanecem diante das coisas sensíveis como se elas possuíssem um ser em si mas, desesperando da sua realidade e na absoluta certeza de seu nada, eles as tomam sem mais e as devoram. E a natureza inteira celebra, como os animais, esses mistérios revelados que ensinam qual é a verdade das coisas sensíveis.” Esta depreciação da realidade imediata é uma expressão particularmente eloqüente do “princípio de realidade insuficiente” que constitui o credo comum a toda denegação filosófica do real; expressão bastante cômica também pela assimilação que sugere Hegel do apetite dos animais ao reconhecimento da pobreza ontológica dos alimentos que eles se preparam para devorar; como se primeiramente fosse necessário convencer o leitão do escasso teor da realidade da papa que lhe é oferecida, da “absoluta certeza de seu nada”, para convencê-lo a cravar os dentes nela.

ROSSET, Clément, O Princípio de crueldade. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

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