A centralidade do Coração no processo de cognição e na constituição da subjetividade, segundo Cioran

“Que haja ou não uma solução para os problemas, isso só preocupa uma minoria; que os sentimentos não tenham nenhuma saída, que não venham dar em nada, que se percam neles mesmos, eis o drama inconsciente de todos, o insolúvel afetivo que cada um sofre sem pensar nele.”

CIORAN, Silogismos da amargura (1952)

“Olhando as coisas do ponto de vista da natureza, o homem foi feito para viver voltado para o exterior. Se quer olhar para dentro de si, deve fechar os olhos, renunciar à ação, sair da corrente. O que se denomina ‘vida interior’ é um fenômeno tardio, possível somente em virtude de uma diminuição de nossas atividades vitais: a ‘alma’ surgiu e se desenvolve à custa do bom funcionamento dos órgãos.”

CIORAN, Do inconveniente de ter nascido (1973)

Um dos aspectos do pensamento de Cioran que talvez mais o afaste da Grécia, enquanto matriz da racionalidade filosófica ocidental, da Razão como sede e fundamento do humano por excelência, é a centralidade conferida pelo filósofo romeno ao coração, em detrimento da razão pura, como o lugar em que germina o conhecimento que mais importa para o homem, o essencial.

Toda a diferença entre ser irracionalista e antirracionalista, isto é, crítico ou inimigo de racionalismos diversos, porque cético, ou pessimista, ou as duas coisas juntas. É uma controvérsia inesgotável, mas estas etiquetas amiúde grudadas em Cioran, cujos escritos parecem sacudi-las, uma a uma, não são a última palavra no que concerne a um pensamento experimental e paradoxal como o seu…

A primazia do coração (paixão, sentimento, emoção, intuição), em detrimento da razão, não é necessariamente sinônimo de irracionalismo, niilismo, ou puro sentimentalismo. A centralidade do coração como sede do humano, em seu constante devir, é um dado comum às mais importantes tradições espirituais do Oriente e, para não ir tão longe, na própria Ortodoxia em cujo seio Cioran, filho de sacerdote cristão, nascera.

Inclusive no universo do gnosticismo se pode encontrar expressões dessa primazia mística do coração sobre a razão. Gnosis, enquanto conhecimento de si e do divino em si, apreensão intuitiva do “princípio intemporal e indestrutível e de nossa natureza” (História e utopia), “revelação” ou “iluminação” na experiência interior, não é o mesmo tipo de conhecimento que episteme, isto é, ciência positiva, saber puramente racional e lógico, circunscrito às necessidades da Razão.

Na visão de Cioran, o essencial, para o homem, é assunto ou matéria do coração, mais do que da razão. Não se trata de um rousseauísmo, como poderia parecer, até porque Cioran é, antropologicamente, um tanto “pessimista”, descrente ou cético acerca da natureza humana, de sua “pureza” original, por assim dizer.

Os olhos mesmos não servem ao conhecimento essencial, dco que mais importa (na experiência interior): só enxergam o visível, objetos em todo caso; “sem ‘febres”, não superamos o campo da percepção, ou seja, não vemos nada. Os olhos só servem a Deus quando já não distinguem os objetos; o absoluto teme a individuação”, lemos no Crepúsculo dos pensamentos [Amurgul gîndurilor], um de seus livros romenos, inédito em português. O mesmo motivo será retomado em seus primeiro livro francês, o Précis de décomposition: aí elel diz que “a função dos olhos não é ver, mas chorar; e para ver realmente é preciso fechá-los: é a condição do êxtase, da única visão reveladora, enquanto que a percepção esgota-se no horror do já visto, do irreparavelmente sabido desde sempre.”

O Coração tem seus olhos, que não são os olhos da cara, nem os da Razão. Em Lágrimas e Santos, seu terceiro livro em romeno, ele diz que “os olhos não veem nada. Por isso entendo Catalina Emmerich quando nos diz que via pelo coração. […] O olho tem um campo reduzido; vê sempre de fora. Mas, o mundo sendo interior ao coração, a introspecção é a única via de conhecimento. O campo visual do coração? O mundo, mais Deus, mais o nada. Ou seja, tudo.”

No Livro das Ilusões (1936), anterior a Lágrimas e Santos, o jovem Cioran, insone, desesperado e apaixonado pelas místicas, concebe não apenas uma “ciência cardiótica“, um conhecimento do/pelo coração, como ademais, enquanto alma romanticamente poética que é, uma demiurgia e um titanismo do coração. Neste quesito se superam as santas católicas, cujas biografias atraíram tanto Cioran, que chegou a desejar ser um “secretário das santas”, para poder bisbilhotar e violar os segredos de seus corações:

“A santidade é a genialidade do coração. Do coração nasce um mundo novo; o entusiasmo demiúrgico do coração sobrepõe-se aos mundos. A inspiração criadora do coração é a chave para a compreensão dos santos. O capítulo principal de uma cardiótica, que se ocupasse do sentido e da lógica do coração, teria de tratar dos santos e do infinito de seu coração. Às vezes tenho a aguda impressão de que o coração de Santa Teresa excede as dimensões do mundo e então gostaria de ver-me embalado no coração de uma santa. Na linguagem mística a amplitude do coração não tem equivalente no nosso mundo. E como o teria se nosso mundo não é o dos santos?”

CIORAN, O Livro das Ilusões (1936)

Em Lágrimas e Santos, Cioran propõe um novo método de conhecimento, ou antes de interpretação do mundo, do homem, da vida e da morte, do ser, da existência e do nada, enfim de todas as coisas: as lágrimas. Sendo o mundo um “vale de lágrimas” e a história uma “enxurrada” do pecado original, ele concebe uma:

“[…] hermenêutica das lágrimas que buscaria descobrir a sua origem, bem como todas as suas interpretações possíveis. Para que? Para compreender os picos da história e prescindir dos ‘acontecimentos’, pois saberíamos em que momentos e em que medida o homem conseguiu elevar-se acima de si mesmo. As lágrimas dão um caráter de eternidade ao devir; eles o salvam. O que seria a guerra, por exemplo, sem elas? As lágrimas transfiguram o crime e tudo justificam. Analisá-las e compreendê-las equivale a encontrar o segredo do devir universal. O sentido de tal estudo seria o de nos guiar no espaço que liga o êxtase à maldição.

CIORAN, Lágrimas e santos (1937) [grifo nosso]

Por fim, o “espaço que liga o êxtase à maldição” não é senão todo o espaço humano, demasiado humano, considerado a partir dessas duas polaridades existenciais que são as que mais interessam a Cioran enquanto pensador: a ascensão e a queda, os cumes e os abismos, a beatitude e a agonia, a plenitude e o vazio, o êxtase e a maldição, a nostalgia do “Paraíso perdido” e a evidência do inferno presente.

SÁ MENEZES, R. I. R., “A centralidade do Coração no processo de cognição e na constituição da subjetividade, segundo Cioran”, Portal E.M. Cioran Brasil, 04/04/2021.

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