Cioran e a “ferida secreta de não ser músico”

“Tudo o que me ocupa, essas nostalgias de todo tipo, esses dilaceramentos uivantes, essa tristeza subterrânea, e esses arrepios de além de todos os mundos – é através da música que eu teria podido expressá-los, e é com toda razão que eu posso me declarar um fracassado [raté] por não ser músico.
Essa ferida secreta de não ser músico.”

CIORAN, Cahiers : 1957-1972

Um dado biográfico significativo sobre Cioran, relatado pelo seu irmão Aurel, é que Emil, ainda adolescente, praticava o violão diariamente, com afinco, até que um belo dia, por volta dos 14 anos, sem nenhum motivo aparente, abandonou abruptamente o instrumento e passou a dedicar-se à leitura, devorando todos os livros que via pela frente.

Há muitos nascimentos do autor destes livros que são cada vez mais lidos, discutidos, citados e criticados ao redor do mundo, e nas redes sociais: a sua primeira experiência de ennui (tédio profundo, melancolia), ainda criança, a perda do “paraíso terrestre” de Rasinari, onde nascera, para ir viver e estudar em Sibiu, aos 10 anos, e, entre tantos outros, esta intuição do fracasso musical, do seu próprio fracasso enquanto músico, conforme anotada nos Cahiers.

Cioran intuiu, naquele momento, que seria mais temerário rivalizar com Bach do que com Deus. Teve início a sua odisseia da lucidez demiúrgica, a sua queda na Queda, as suas “tribulações de meteco” e de “exilado metafísico”, à deriva no mundo, esse “não-lugar universal” (Amurgul gîndurilor). A sua perdição orgulhosa…

Talvez o seu tipo de perfeccionismo próprio, titânico, “monstruoso”, estivesse destinado a desabrochar nas Letras, na forma de aforismos e ensaios, e não pela música, como Bach ou Beethoven. Ou Nietzsche, “que é muito mais que um filósofo”: poeta, músico (pianista) e, também, no julgamento de Cioran, “místico visionário”.

“Essa ferida secreta de não ser músico”. Não admira que Cioran encontre na música (assim como na poesia e na mística) o protótipo do “pensamento exaustivo”, que sabe exprimir, sem o recurso a palavras, conceitos e teorias, as verdades humanas mais profundas que a filosofia muitas vezes é incapaz de suspeitar.

“A meditação musical deveria ser o protótipo do pensamento em geral. Por acaso algum filósofo seguiu alguma vez um motivo até o fundo, até tocar o seu limite e esgotá-lo, como fazem um Bach ou um Beethoven? O pensamento exaustivo só existe na música. Depois de ler os pensadores mais profundos, sente-se a necessidade de recomeçar do zero. Só a música dá respostas definitivas.”

CIORAN, Lágrimas e Santos (1937)

É uma maneira de pensar (e de sentir) em grande medida herdeira (e tributária) do romantismo, alemão e inglês sobretudo, de um romantismo que Cioran parece renegar e abjurar abertamente quanto mais se identifica com ele, por uma afinidade eletiva contrariada, em seu foro íntimo. No Livro das Ilusões, anterior a Lágrimas e Santos, o mesmo tema é colocado em pauta:

“Não se pode regressar da poesia, da música e da mística para a filosofia. É evidente que aquelas são mais importantes que a filosofia. Um poeta, um compositor ou um místico filosofam só em momentos de cansaço, que os obrigam a retornar a uma condição inferior. Só eles se dão conta de que não é nenhum sinal de glória ser filósofo, só eles compreendem o pouco que sabe a filosofia, para não dizer a ciência. O que é o pensamento comparado com a vibração extática, com o culto metafísico das nuances que define toda a poesia? E quão distante está a filosofia de fundir-se com as realidades que fazem empalidecer definitivamente o mundo das ideias comparado à música e à mística!
Não existe filosofia criadora. A filosofia não cria nada. Quero dizer que ela pode nos apresentar um novo mundo, mas não o faz nascer nem o fecunda. Tudo o que dizem os filósofos parece pertencer a um passado remoto; nenhuma obra de arte teria tido de existir porque toda obra de arte é um mundo no mundo e, consequentemente, não tem sua razão de ser em nosso mundo. Nenhum sistema filosófico me deu o sentimento de um mundo independente de tudo o que não é ele. É doloroso, mas é assim: podeis ler todos os filósofos que quereis, nunca sentireis que vos tornastes um outro homem. Naturalmente, dentre os filósofos excluo Nietzsche, que é muito mais que um filósofo.”

CIORAN, O Livro das ilusões (1936)

SÁ MENEZES, R. I. R., “Cioran e a ‘ferida secreta de não ser músico'”, Portal E.M. Cioran Brasil, 07/04/2020.

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Um comentário em “Cioran e a “ferida secreta de não ser músico””

  1. Estupenda definición sobre “esa herida secreta de no ser Músico”. Es más hondo el peso de la Música que el de las palabras, más intensa esa emoción que no tiene nombre. Más perdurable y transformadora…Las disquisiciones filosóficas se funden con lo racional, pero la Música nos protege, nos acaricia y nos transporta lejos de lo humano.

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