“A verdadeira heresia: a gnose (sobre a religião mundial da ausência do mundo)” – Peter SLOTERDIJK

Pós-Deus (Vozes, 2019) é provavelmente um dos livros menos conhecidos deste excêntrico filósofo alemão contemporâneo, vivo e mais ativo do que nunca. A temática não poderia ser mais pertinente ao pensamento e à obra de Cioran, que não por acaso é citado no livro: ateísmo, niilismo, gnosticismo, filosofia existencial, o problema do mal como um duplo desafio à filosofia e à teologia, e tudo o que possa incluir-se neste conjunto tão vasto e ao mesmo tempo compreensivo. Trata-se de uma releitura, original e ousada, da história da civilização a partir dos primeiros séculos da era cristã, de uma genealogia crítica — meio nietzschiana, meio gnóstica — do espírito ou da alma ocidental, no que poderia ser considerado um primoroso estudo nos campos da filosofia e da antropologia da religião.

Por mais improvável que possa parecer, a intenção de Sloterdijk de aproximar e, se possível, conciliar a filosofia de Nietzsche com as doutrinas gnósticas da Antiguidade, como a do próprio Zaratuztra (que não é um gnosticismo cristão), entre outras, no que concerne ao problema do niilismo e ao desafio de sua superação, não carece de pertinência, ao menos do ponto de vista plurisperspectivista do emaranhado de sistemas religiosos gnósticos, disso que se convencionou designar, academicamente, “gnosticismo”.

O ponto de partida é a célebre proposição “Deus está morto, e fomos nós quem o matamos”. A partir daí, o autor recua até a Antiguidade tardia, no contexto do cristianismo primitivo em que movimentos, grupos religiosos e doutrinas gnósticas se proliferavam e prosperavam por toda parte, na Europa, no norte da África e na Ásia, retornando em seguida aos tempos modernos, de Nietzsche e de Cioran, com um brilhante intermezzo em Lutero, como figura-chave (e paradoxal) para compreender, histórica e sobretudo filosoficamente, tudo o que veio após a Reforma e o protestantismo.

Um livro para colocar em diálogo com Hans Jonas (The Gnostic Religion), Harold Bloom (Presságios do milênio), Franco Volpi (O niilismo), Sergio Givone (Storia della nulla), Ioan Culianu (The Tree of Gnosis) e Sylvie Jaudeau (Cioran ou le dernier homme), autores e exegetas de Cioran que fazem explicitamente (Jaudeau; Culianu; Volpi), ou poderiam muito bem fazer, uma exegese gnóstica de Cioran como um místico herético, “das catacumbas” (Bollon), um pensador transfigurado ou desfigurado por uma experiência mística de natureza ateia, desencantada e niilista.

Aqui, o trecho inicial do terceiro capítulo, dedicado aos temas do gnosticismo, da gnose como alteridade radical do homem, da cultura e da religião ocidentais, uma “religião mundial da ausência de mundo”, em suas próprias palavras.


A verdadeira heresia: a gnose

Sobre a religião mundial da ausência do mundo

Uma religião mundial foi redescoberta.

Gilles Quispel (1951), sobre as descobertas de Nag Hammadi.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, que, segundo estimativas “conservadoras”, custou a vida de 42 milhões, segundo outras, a vida de 55 milhões de pessoas, foi encontrado ao pé de um rocha no deserto egípcio, a mais ou menos 50 quilômetros ao norte de Luxor, um grande recipiente de barro com numerosos códices de papiro em língua copta, quase todos eles em estado extraordinário de preservação. No mundo acadêmico, espalhou-se rapidamente a notícia da descoberta de uma “biblioteca gnóstica” que consistia em 52 tratados em língua copta-saídica, a maioria dos quais era desconhecida. Os poucos que, naqueles tempos sombrios, tinham a mente livre para a percepção de eventos históricos-espirituais, logo entenderam que o que havia sido descoberto era mais do que um fato arqueológico entre outros. No ano de 1946, o ressurgimento de textos perdidos durante uma era inteira possuía valor simbólico: era como se as profundezas do tempo tivessem enviado um sinal aos sobreviventes da grande catástrofe do “Ocidente cristão”. Vindo do deserto sagrado do Egito, um sinal imperceptível chegou às nações devastadas. Daquele mesmo lugar em que o protesto sagrado contra o mundo e a vida se radicalizara pela primeira vez, o continente derrotado recebeu uma mensagem que, de maneira subterrânea, parecia estar vinculada aos Estados atuais. As letras de tinta de mil e seiscentos anos de idade em papel frágil emanavam uma substância espiritual fraca, mas ainda ativa.

A palavra mágica “gnose” cercava a descoberta – sem conhecer uma única linha dos evangelhos perdidos, o contemporâneo da grande descoberta podia projetar sobre ela tudo o que esperava de uma mensagem mística para o seu estado atual. Isso permaneceu assim até hoje: a aura da “descoberta” de Nag Hammadi ainda ofusca seus conteúdos – a despeito dos esforços impressionantes de tradutores, editores e comentaristas que disponibilizaram todo o material ao público. Nag Hammadi continua sendo um nome mítico – ele representa a invasão de contraverdades escandalosas, mas plausíveis, na memória ocidental.

SLOTERDIJK, Peter, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019.

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