Segundo uma palavra de Adolf von Harnack, a gnose significa a helenização aguda do cristianismo. Isso continuaria sendo uma observação profunda, mesmo se conseguissem comprovar as hipóteses da origem não cristã da gnose. Pois independentemente de onde a gnose possa ter surgido — no judaísmo herético-apocalíptico, no dualismo iraniano, num platonismo orientalizado, na hermética ou em qualquer outro lugar —, no que diz respeito ao seu dinamismo interno, este precisaria ser caracterizado como choque entre um momento religioso-oriental e um momento lógico-helênico. Faz parte da natureza inquieta das formações de sistemas gnósticos o conflito entre contemplação teórica e excitação sagrada, entre discussão jovial e busca pânica da redenção. A contradição ocidental principal — a dualidade de Atenas e Jerusalém — se manifesta de forma fértil pela primeira vez no âmbito do pensamento da gnose e do cristianismo primitivos. Trata-se da oposição frequentemente citada entre ver e ouvir, entre conhecimento autoconsciente e obediência piedosa; ela se evidencia no conflito intrarreligioso entre teologismo e fideísmo. No sentido psicodinâmica, ela se torna poderosa na rejeição mútua entre os portadores carismáticos de plenos poderes pneumáticos e as almas orgulhosamente contritas, que bebem do cálice do masoquismo primário e se entregam à edificação contida no pensamento de que sempre estamos errados quando nos levantamos contra Deus.
Na “helenização aguda do cristianismo” ocorre, ao mesmo tempo, uma mitificação renovada do helenismo. Mostraremos que isso significa mais do que uma colorida regressão para abaixo do nível da teoria helênica. Aquilo que o mito do redentor proveniente do Oriente provoca é a destruição do ensino grego do ente atemporal por meio da narrativa dos eventos essenciais à verdade no tempo. As histórias orientais de queda e redenção, de confusão e iluminação submetem o espírito helênico à pressão para que ele abra sua ontologia estática ao drama. Nesse sentido, a gnose, cristã ou não, provoca uma revolução inteligível com consequências imprevisíveis. A gnose é a primeira filosofia de eventos. Ela obriga o ontoteólogo helenizador a se transformar em teórico metafísico de catástrofes. Ela revela aos filósofos uma problemática de caráter completamente desconhecido: está na hora de uma nova autocompreensão do espírito como algo que veio ao mundo. Vale agora supor e iluminar teoricamente no mínimo três locais de catástrofes principais no ser; trata-se dos três eventos fundamentais de poder de mudar o sentido do mundo: a catástrofe primária da criação, a catástrofe secundária da queda e a catástrofe terciária ou epístrofe da redenção. Criação, queda e redenção são as três grandes descontinuidades no contínuo do ente que o pensamento teórico-teológico precisa resolver no futuro. Os caminhos da gnose e do catolicismo se separam no conflito em torno da “queda”: no pensamento cristão, Adão cai primeiro, mas na visão da gnose a queda de Adão é apenas o reflexo ou a implicação de uma pré-queda “no céu”. A grande heresia ensina que as duas primeiras catástrofes, criação e queda, no fundo são idênticas. O reconhecimento dessa identidade é a quintessência da gnose. O mundo é tudo que se encontra em queda. […] A destruição evento-teórica da ontologia helênica permanece um efeito que prevalece sobre a helenização gnóstica aguda e a helenização escolástica gradual do cristianismo. A tranquilização do mundo sob o olhar de uma teoria grega estava fadada a fracassar diante do desafio gnóstico de pensar eventos relevantes ao ser. […]
A tarefa, porém, de compreender o ser como tempo, se impôs a partir do momento em que o impulso gnóstico passou a agitar as almas das pessoas da Antiguidade tardia com as suas perguntas: “Quem éramos? O que nos tornamos? Em que fomos lançados? Para onde corremos? De que fomos libertos? O que é nascimento? O que é renascimento?” Sob o efeito dessas fórmulas batismais de Valentim, Clemente de Alexandria cita em seus excertos, até mesmo o helenismo mais filosófico precisa desistir. O fim da filosofia, do qual Heidegger fala, começou quase dois mil anos atrás no existencialismo catártico da travessia gnóstica do mundo. Já a partir daí, ser e ente não podiam mais ser compreendidos como correlatos de uma contemplação obrigada a pensar o todo, mas apenas com caminho de uma interioridade que percorre o ente.
A anulação da filosofia em uma disciplina da autotransformação é, portanto, um dos primeiros resultados da colisão entre teoria grega e mito oriental da alma. Poderíamos dizer no máximo que a filosofia pós-metafísica sobrevive como método da conversão: o que ela pode oferecer é um tipo de aconselhamento para iniciantes na estranheza do mundo – ou música de intervalo nos momentos pensativos dos filhos do mundo. […]
É fácil reconhecer que a descoberta do tempo verdadeiro pela consciência gnóstica da travessia do mundo prepara um padrão de pensamento que conhecemos das chamadas filosofias da história. O tempo verdadeiro como ordem de evento gerador de verdade de ida-virada-volta é exclusivamente assunto dos indivíduos. No fundo, o sentimento da gnose é estritamente escatológico-individual. Apenas para as almas existe um movimento geral do primeiro para o intermediário e último – e as almas “existem” per se como singulares vivos. Se o grande momento de ida e volta descreve a estrutura do caminho do indivíduo “no mundo”, segue disso que o Dasein no tempo verdadeiro, isto é, o existir no raio da historicidade essencial de autoconhecimento só pertence aos indivíduos convertidos à desmundialização. Toda temporalidade “verdadeira” é, portanto, historicidade de salvação, historicidade de autocompreensão da “alma”. Não existem outros sujeitos de “história verdadeira” senão os indivíduos. […]
A filosofia da história surge pela transferência enganosa de lógicas do caminho gnóstico para o discurso de desenvolvimento dos poderes do mundo. Hegel é um exemplo disso, mesmo tendo inserido o espírito do mundo antes dos poderes. A traição do esquema da redenção do mundo ao movimento do mundo não é evidente de imediato. Apenas um segundo olhar revela com que despreocupação e até mesmo rudeza o pseudognóstico a serviço do Estado prussiano sacrificou a alma do indivíduo carente de redenção ao monstro do espírito do mundo. Desde Kierkegaard, os indivíduos estão exigindo que os filósofos da história lhe devolvam a alma. “Massa é inverdade.”
O romance gnóstico do autoconhecimento é narrado inúmeras vezes por causa da multiplicidade dos pneumata; visto que cada narrativa individual é projetada a partir de seu lugar no caminho, não pode existir uma imagem de aceitação ou validade geral “do” caminho. “Meu caminho” é insubstituivelmente um movimento no raio de meu “vir ao mundo”. Nas gnoses vulgares, o espírito dos indivíduos não consegue transcender visões externas míticas do “estar a caminho”: nesse caso, o interessado lê histórias de almas como romances de quiosque, em que Deus e o pneuma sempre se encontram no fim. A polêmica de Plotino contra os chamados gnósticos que andam por aí como que “num sonho”, imaginando-se em “contos de fadas no céu”, descreve precisamente esse perigo de exteriorização. Quando entram em jogo forças lógicas maiores, entende-se que as histórias de almas dos mitólogos só servem como introduções; é preciso deixá-las para trás como matéria de iniciantes e substituí-las por instruções para a elevação “própria” para a não mundanidade. As viagens da imaginação pelos céus exteriorizados precisam transformar em lembranças não concretas. Nas gnoses muito amadurecidas e claras — que incluem não só Hans Jonas, mas também o pensamento de Orígenes e até mesmo de Plotino, pelo menos em alguns aspectos — a preocupação se concentra no treinamento ético e noético da alma ao ponto de que a alma seja capaz de “pensar” a emanação do um sobre-ente até o mundo. Quanto mais brilhante o temperamento gnóstico, mais serena sua compreensão para o percurso do kathodos ou prohodos; em serenidade especulativa, os maiores pensadores da Antiguidade reconstruíram mentalmente o rebaixamento de Deus para o mundo e a semeadura das almas individuais no campo do devir; neles, o índice de catástrofe do evento mundial é mínimo; em seu pensamento, o ente “flui” de Deus através de muitos níveis suaves de emanação. […]
Não são assim os temperamentos sombrios. Para eles, a parte catódica da curva para o mundo permanece uma queda altamente catastrófica – uma viagem ao inferno do imperdoável. A preocupação desses aderentes da catástrofe se volta completamente para a redenção da maldição do mundo. Eles batem a cabeça contra a parede cósmica, tentam pular a cerca da perdição. Como buscadores impacientes da saída ou como atletas do “passar por tudo”, eles desenvolvem apenas a parte anódica da curva da existência; se forem minuciosos, o são apenas na volta. Como testemunhas de acusação contra o todo prenho de morte, eles se esforçam ao máximo. Polemizam de preferência contra a serenidade inescrupulosa de seus colegas aderentes da gnose branca, que gastam seu tempo desdobrando os detalhes da ida. Para eles, a teorização do caminho é a heresia par excellence — assim como depois deles, a teorização do mal acaba trabalhando em prol do mal. Gershom Scholem chegou a lamentar como ruína da cabala o fato de que ela descrevia o caminho de Deus para o mundo como uma emanação suave, traindo assim a pura doutrina negra da catástrofe primordial em Deus. Mas também os aderentes da catástrofe se mostram receptíveis ao charme dialético do “estar caído”. “Não me perdoo por ter nascido. É como se eu, quando me infiltrei no mundo, tivesse profanado um mistério, violado uma obrigação de alto nível. Mas pode ocorrer que eu sinta com menos agudez: então o nascimento me parece como uma calamidade cujo desconhecimento me deixaria inconsolável.”1 O que seria a volta se não fosse o mundo, pois a fuga de sua escuridão é o único sentido do tempo remanescente. A gnose negra também precisa do mundo escandaloso para fugir dele.
1 CIORAN, E. Vom Nachteil, geboren zu sein. Frankfurt a.M., 1979, p. 15.
SLOTERDIJK, Peter. Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger (Nach Gott, no original). Petrópolis: Vozes, 2019.