Contra a Imagem – E.M. CIORAN

Um texto enigmático, ausente de todos os livros de Cioran, corresponde ao último título no índice da antologia editada por Esther Seligson, intelectual e tradutora mexicana, de origem judaica, que se tornaria uma correspondente epistolar e amiga de Cioran à distância. Contra la historia não é um título de Cioran (ainda que exprima bem a sua visão do devir histórico). Trata-se de uma coletanêa de aforismos e ensaios, extraídos de diferentes livros, publicada pela primeira vez em 1976, quando a obra de Cioran apenas começava a ser traduzida ao espanhol. Há alguns aforismos dos Silogismos da amargura, ensaios de A tentação de existir, História e utopia, La chute dans le temps, e até de Exercícios de admiração (o perfil de Saint-John Perse), que só será publicado em 1986. O décimo e último texto intitula-se “Contra la imagen”.

Sabemos apenas que é “inédito”, o que vem assinalado na ficha catalográfica, e nenhuma informação a mais. Pode-se supor que o título original, em francês, seria Contre l’image. Dentre todos os inéditos da coletânea, este é o único a não ser publicado em nenhum livro posterior de Cioran, existindo apenas em língua espanhola, nesta rara edição elaborada pela tradutora mexicana.

É um texto curto, como muitos de A tentação de existir (1956), e dividido em 6 partes, ordenadas em numerais romanos (I-VI). Como denota o título, trata-se de uma diatribe contra a imagem enquanto tal, ontologicamente qualificada com vistas à sua significação psicológico-afetiva (mais do que mera aparência), isto é, enquanto fator de apego, turbação e adesão ao mundo, ilusão e “não-saber”. Poder-se-ia questionar, com estranhamento, de onde vem esse interesse de Cioran em elaborar uma teoria da imagem, ainda que breve, ensaística, descompromissada. Um tema fecundo e vasto que poderia remeter à teoria crítica de Jean Baudrillard ou ainda, mais recentemente, Byung-Chul Han, entre outros teóricos da cultura, da tecnologia e dos meios de comunicação. Um tema que o filósofo romeno prefere direcionar, segundo os seus interesses próprios, à esfera da religião e da mística, à imagem religiosa (ícones, por exemplo), vista como um obstáculo à realização mística, qual seja, não a simples salvação em Deus, mas a fusão ou consubstanciação com a Deidade, que seria (segundo Cioran, citando Meister Eckhart) a “essência de Deus”, a sua causa eficiente, para empregar um conceito aristotélico. Inclusive a Palavra é considerada, aqui, pelo viés de sua natureza imagética, visual; desprender-se do encanto da Imagem significa despojar-se ao mesmo tempo do fascínio da Palavra, dois fetiches, dois entraves, dois grilhões que impedem toda a realização espiritual, considerada em termos de pureza, ou nudez-mudez interior.
Neste sentido, é um texto que dialoga com importantes passagens de diferentes livros de Cioran. No Breviário de decomposição, por exemplo, lemos que “a função dos olhos não é ver, mas chorar; e para ver realmente é preciso fechá-los: é a condição do êxtase, da única visão reveladora, enquanto que a percepção esgota-se no horror do já visto, do irreparavelmente sabido desde sempre.”
Em La chute dans le temps (1964): “Ceder, em meio aos nossos males, à tentação de crer que não nos terão servido para nada, que sem eles estaríamos infinitamente mais avançados, é esquecer o duplo aspecto da doença: aniquilação revelação; ela só nos arranca às nossas aparências para melhor nos abrir à nossa realidade última, e às vezes ao invisível.”
Em Le mauvais démiurge (1969): “O despertar independe das capacidades intelectuais: pode-se ter gênio e ser um néscio, espiritualmente falando. Por outro lado, não se avança nem um pouco com o conhecimento enquanto tal. ‘O olho do Conhecimento’ pode ser possuído por um iletrado, que se encontrará, portanto, acima de qualquer sabichão. Discernir que o que você é não é você, que o que você tem não é seu, não ser cúmplice de nada, nem mesmo da própria vida, isso é ver com precisão, isso é descer à raiz nula de tudo.”
Por fim, uma curiosidade e um detalhe dignos de nota: Contre l’image é o título de um livro do filósofo francês Roger Munier, amigo de Cioran. Talvez tenha sido um trabalho feito a pedido, por encomenda, tendo sido oferecido à amiga mexicana para ser publicado de forma inédita.


CONTRA A IMAGEM

I. O espírito que se encaminha à desnudez rechaça as semelhanças que o fazem lembrar deste mundo, do qual deseja separar-se. Só se exaspera com o que existe ou parece existir. Quanto mais se afasta das aparências, menos necessitará de signos que as realcem ou de simulacros que as denunciem, ambos igualmente desastrosos para a busca do que importa, do que se oculta, desse fundo último que exige, para ser apreendido, a ruína de toda a imagem, espiritual inclusive.

II. Privilégio maldito do homem exterior, a imagem, por mais pura que seja, conserva sempre um traço de materialidade, certa rugosidade, e, posto que se refere necessariamente ao mundo, carrega consigo um elemento de incerteza e de perturbação. Só pela vitória sobre ela se pode caminhar em direção ao ser desnudo, a essa segurança sem amarradas chamada libertação. Libertar-se significa, na verdade, despojar a imagem, abandonar todos os símbolos do aqui embaixo.

III. Só nos libertamos da imagem se, num movimento semelhante, nos libertarmos da palavra. Cada palavra equivale a uma mancha, cada palavra é um atentado à pureza. “Nenhuma palavra pode esperar outra coisa senão a sua própria derrota”, proclama Gregório Palamás, em sua Defesa dos Santos quietistas. Só por meio do silêncio se pode chegar a esse fundo mais além das aparências, a esse silêncio que, segundo Séraphin Sarov, torna os homens semelhantes aos anjos.
Algo digno de levar-se em consideração: não há silêncio frívolo, não há silêncio superficial. Todo silêncio é essencial. Quando o saboreamos, conhecemos de imediato uma espécie de supremacia, uma estranha soberania. É possível que isso que se designa por interioridade não passe de uma espera muda. Da mesma forma, não existe “vida verdadeira”, uma vida espiritual árida, que não implique a morte da imagem e da palavra, a destruição, no mais íntimo do ser, deste mundo e de todos os mundos. A experiência mística se confunde, no limite, com a bem-aventurança de um supremo rechaço.

IV. Perseguir, buscar a imagem, é provar que permanecemos aquém do absoluto, que não estamos qualificados para a visão pura. E é compreensível, porque não se trata de uma visão sem objeto, mas de uma visão além de todo o objeto. Pode-se dizer até que o que ela nos permite ver é a ausência ilimitada de tudo o que pode ser visto, a desnudez tal e qual, a vacância como plenitude, ou, melhor ainda, esse “abismo da superessência”, celebrado por Ruysbroek.

V. De todos os que procuram, só o místico encontrou, mas, como compensação por um favor tão excepcional, nunca poderá dizer o que encontrou, apesar de possuir a segurança que só o conhecimento intransmissível confere (conhecimento verdadeiro, de resto). O caminho pelo qual nos convida a segui-lo conduz a um vazio sem precedentes, mas – e eis o que é maravilhoso – um vazio que preenche, pois substitui todos os universos abolidos. Trata-se aqui de uma empreitada, a mais radical já se tentou, para ancorar-se em algo mais puro que o ser ou a ausência de ser, em algo superior a tudo, inclusive ao absoluto.

VI. O conhecimento que se nutre das aparências é um falso saber ou, se preferir, um não-saber. Para o místico, o conhecimento, no sentido último da palavra, assume a forma de uma ignorância iluminada, uma ignorância “translúcida”. “Quem vive na companhia dessa ignorância e da luz divina, percebe em si mesmo algo como uma solidão devastada”, diz Ruysbroek. A partir desta solidão compreender-se-á facilmente a necessidade, a urgência do deserto, espaço propício à fuga para a ausência de imagens, para um despojamento inusitado, para a unidade desnuda, mais para a Divindade do que para Deus. “A Deidade e Deus”, nos diz Meister Eckhart, “são tão diferentes quanto o céu e a terra. O céu está milhares de léguas mais alto. Assim também a Deidade em relação a Deus. Deus devém e passa.”
Ater-se a Deus é ainda, como observou um comentarista, permanecer “no limiar da eternidade”, não penetrá-la, pois a eternidade não é alcançada senão elevando-nos à Deidade. Inspirados por essa mesma “solidão devastadora”, como não evocar essa “oratio ignita”, essa “oração de fogo” da qual, segundo um Padre dos primeiros séculos, só somos capazes quando estamos tão impregnados de uma luz vinda de cima, que já nos é impossível empregar a linguagem humana?

CIORAN, E.M., “Contra a imagem”, in Contra la la Historia. 2. ed. Trad. de Esther Seligson. Barcelona: Tusquets, 1980.

Tradução do espanhol: Rodrigo Inácio R. Sá Menezes

Agradecimentos a Leobardo Villegas Mariscal.

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