Ilusão como Doença no Tao Te Ching; Cioran e a Antropologia do Animal Enfermo

Quem conhece a sua ignorância revela a mais alta sapiência.
Quem ignora a sua ignorância vive na mais profunda ilusão.
Não conhecer e pensar que conhece é tal qual uma doença.
Não sucumbe à ilusão quem conhece a ilusão como ilusão.
Quando consideramos o mal como mal, dele nos preservamos.
O sábio conhece o seu não-saber;
Essa consciência do não saber o preserva de toda ilusão.

Tao Te Ching, verso 71 (A Ignorância)

É próprio da doença velar enquanto tudo dorme, enquanto tudo repousa, até o doente.

Do inconveniente de ter nascido

Ceder, em meio aos nossos males, à tentação de crer que não nos terão servido a nada, que sem eles estaríamos infinitamente mais avançados, é esquecer o duplo aspecto da doença: aniquilamento e revelação; ela só nos arranca às aparências e as destroi para melhor nos abrir à nossa realidade última, e às vezes ao invisível.

“Sur la maladie”, La chute dans le temps

Dir-se-ia que cabe aos doentes revelar-nos a irrealidade dos sentimentos puros, que essa é sua missão e o sentido de suas provações. Nada mais natural, pois neles se concentram e se exacerbam as taras de nossa raça. Depois de haver peregrinado através das espécies, e lutado com maior ou menor êxito para nelas imprimir sua marca, a Doença, cansada de sua carreira, quis sem dúvida aspirar ao descanso, buscar alguém em quem afirmar sua supremacia em paz, alguém que não se mostrasse rebelde a seus caprichos e a seu despotismo, alguém com quem realmente pudesse contar. Hesitou, procurou à direita e à esquerda, fracassou muitas vezes. Finalmente encontrou o homem, se é que não foi ela que o criou. Assim somos todos doentes: uns, virtuais, formam a massa dos sadios, espécie de humanidade plácida, inofensiva; os outros, caracterizados, são os doentes propriamente ditos, minoria cínica e apaixonada. Duas categorias próximas em aparência, mas irreconciliáveis de fato: uma distância considerável separa a dor possível da dor atual.

História e utopia

São as nossas inquietações que suscitam, que criam a consciência; uma vez realizado o seu trabalho, enfraquecem e desaparecem uma após a outra. A consciência, essa, permanece e sobrevive-Ihes, sem se recordar do que lhes deve, sem sequer alguma vez o ter sabido. Por isso está sempre a proclamar a sua autonomia, a sua soberania, mesmo quando se detesta a si própria e desejaria aniquilar-se.

Do inconveniente de ter nascido

É preferível ser animal do que homem, insecto do que animal, planta do que insecto, e assim sucessivamente. A salvação? Tudo o que diminui o reino da consciência e lhe vem comprometer a supremacia.

Do inconveniente de ter nascido

A erosão do nosso ser pelas doenças: o vazio que daí resulta é preenchido pela presença da consciência. Que digo eu? – esse vazio é a própria consciência.

Do inconveniente de ter nascido

Aceitamos sem pavor a ideia de um sono ininterrupto; em contrapartida um despertar eterno (a imortalidade, se fosse concebível, seria precisamente isso) mergulha-nos no terror.
A inconsciência é uma pátria; a consciência, um exílio.

Do inconveniente de ter nascido

A inconsciência é o segredo, o «princípio de vida» da vida. É o único recurso contra o eu, contra o mal de sermos individualizados, contra o efeito debilitante do estado de consciência, estado tão temível, tão duro de enfrentar, que deveria ser reservado apenas aos atletas.

Do inconveniente de ter nascido

A verdadeira felicidade é o estado de consciência sem referência a nada, sem objeto, em que a consciência se regozija da imensa ausência que a preenche.

Cahiers : 1957-1972

16 de dezembro. A doença é uma realidade imensa, a propriedade essencial da vida – não apenas tudo que vive, mas também tudo que é, está exposto a ela; a pedra mesma está sujeita. Só o vazio não é doente; mas, para aceder a ele, é preciso está-lo. Pois nenhuma pessoa sã saberia esperá-lo. A saúde espera a doença; apenas a doença pode conduzir à negação salutar dela mesma.

Cahiers : 1957-1972
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