EXISTEM APENAS TRÊS INFLUÊNCIAS literárias significativas em Shakespeare: Marlowe, Chaucer e a Bíblia inglesa. Marlowe foi engolido por Shakespeare, como um peixinho por uma baleia, embora Marlowe tivesse um ressaibo forte o bastante para induzir Shakespeare a algumas alusões deturpadas. Podemos inferir que Marlowe tornou-se uma advertência para Shakespeare: o caminho a não seguir. Chaucer sugeriu a Shakespeare aquilo que se tornaria o principal recurso deste e, por fim, sua maior originalidade na representação de pessoas. A Bíblia inglesa exerceu um efeito ambíguo sobre o escritor que foi seu único rival na formação da retórica e da visão de todos os que lhe sucederam no idioma. O uso que Shakespeare faz da Bíblia de Genebra e da Bíblia dos Bispos, e das passagens bíblicas do Livro de Orações Comuns, não é um recurso à crença, mas à poesia. Aprendemos muito mais de Shakespeare do que em geral admitimos. Uma das muitas verdades que ele continua a nos ensinar é que a crença não passa de uma fraca desleitura da literatura, assim como a poesia depende de uma desleitura, forte ou criativa, do poder anterior da poesia.
Nossa maior dificuldade em reler Shakespeare ou assistir a suas peças é que não sentimos absolutamente nenhuma dificuldade, o que é mais do que um paradoxo, de vez que deparamos com uma intensidade poética que ultrapassa até mesmo o Javista, Homero, Dante e Chaucer. Não podemos ver a originalidade de uma originalidade que se tornou em contingência ou facticidade para nós. Lembro-me de observar em um seminário universitário sobre Shakespeare que não apenas nossos modos habituais de representar os indivíduos por meio da linguagem tiveram origem com Shakespeare, como também lhe devemos a maior parte dos nossos meios pretensamente modernos de representar a cognição pela escrita e pela leitura. Um estudioso presente objetou que eu confundia Shakespeare com Deus. Dizer que, depois de Deus, Shakespeare foi quem mais criou é na verdade observar que a maior parte do que naturalizamos nas representações literárias anteriores provém, primeiro, do escritor J e de seus revisores, e de Homero, mas, em segundo lugar e de modo mais intenso, de Shakespeare.
O elemento isolado mais vital em Shakespeare nos leva de volta a Chaucer. Pode-se dizer que os debates eruditos sobre a influência de Chaucer em Shakespeare culminaram no excelente The swan at the well: Shakespeare reading Chaucer [O cisne no poço: Shakespeare lendo Chaucer], do falecido E. Talbot Donaldson, com sua coda comparando a Mulher de Bath e Falstaff como dois grandes vitalistas cômicos. Interessa-me mais uma influência de tipo mais reprimido. Mais do que Marlowe ou mesmo do que a Bíblia inglesa, Chaucer foi o principal precursor de Shakespeare por ter proporcionado ao dramaturgo a referência crucial que conduziu à sua maior originalidade: a representação da mudança ao mostrar os indivíduos ponderando sobre o próprio discurso e modificando-se mediante essa consideração. Julgamos banal, e até mesmo natural, esse modo de representação, porém não é possível encontrá-lo em Homero ou na Bíblia, nem em Eurípides ou em Dante. Um aspecto formal dessa originalidade shakespeariana foi observado por Hegel em suas preleções publicadas postumamente, A filosofia das belas-artes:
Quanto mais Shakespeare, na abrangência infinita de seu teatro do mundo, continua a desenvolver os extremos limites do mal e da loucura, até aquele ponto […] ele concentra essas personagens nas limitações delas. Ao fazer isso, contudo, ele lhes confere inteligência e imaginação e, por meio da imagem em que eles, em virtude dessa inteligência, contemplam objetivamente a si mesmos como uma obra de arte, ele os torna livres artistas de si próprios […]
Hamlet, Edmund, Iago, Falstaff — esse quarteto tão dessemelhante só se acha associado na forma de independentes artistas deles mesmos, e, graças às próprias forças, podem eles contemplar-se objetivamente como obras de arte. Tal contemplação é particularmente efetiva quando ativa a mais desalentadora qualidade da grande arte, a capacidade de ao mesmo tempo provocar e manifestar a mudança do ser humano. O que relaciona certas personagens em Chaucer — sobretudo o Vendedor de Indulgências e a Mulher de Bath — com Shakespeare é justo essa contemplação de si mesmo e essa reação metamórfica. O Vendedor de Indulgências e a Mulher de Bath já se encontram na senda mimética que conduz a Edmund e a Falstaff. O que dizem aos outros, ou a si próprios, em parte reflete aquilo que eles já são, mas em parte também produz o que ainda serão. De maneira ainda mais sutil, Chaucer insinua transformações inelutáveis no Vendedor de Indulgências e na Mulher de Bath mediante o efeito da linguagem dos contos que eles escolhem contar. Em Homero, na Bíblia e em Dante, não nos são apresentadas transformações profundas em indivíduos particulares, desencadeadas pela própria linguagem desses indivíduos, por via das diferenças que a dicção e as tonalidades individuais criam à medida que o discurso engendra mais discurso.
A. D. Nuttall, no seu estudo muito proveitoso A new mimesis: Shakespeare and the representation of reality Uma nova mimese: Shakespeare e a representação da realidade, faz uma abordagem do maior poder de Shakespeare, sua originalidade cognitiva e representativa:
Na análise cultural dos textos antigos, há uma suposição corrente de que a expectativa da verdade cada vez mais é confinada à análise em si, e removida do material analisado: as percepções deles são inconscientemente condicionadas, mas nós podemos identificar as condições. O exemplo de Shakespeare é infinitamente rebelde a essa arrogante relegação. Até mesmo quando se opera com instrumentos aparentemente modernos do pensamento, tais como os conceitos da história cultural, descobre-se que Shakespeare lá está antes de qualquer um. A inferência é óbvia: o texto nega-se a renunciar ao que chamei de “expectativa da verdade”. Seu nível de atividade cognitiva é tão elevado que tentativas ulteriores de atingir até mesmo o caráter latente de categorias do pensamento descobrem que seus avanços mais radicais foram antecipados pelo poeta. O meio mais fácil — não, o único meio — de explicar isso é dizer que Shakespeare estava olhando muito intensamente para o mesmo mundo (quatrocentos anos mais jovem, porém ainda o mesmo mundo) para o qual agora estamos olhando.
Na verdade, Shakespeare sempre está lá antes de qualquer um; ele contém a história cultural, Freud e o que mais se queira, e antecipou todo avanço que estava por vir. Porém, não posso concordar com Nuttall em que Shakespeare observou o nosso mundo, inalterado de agora até então. Em vez disso, sugiro que a diferença entre o mundo que Shakespeare viu e o nosso é, num grau surpreendente, o próprio Shakespeare. Para definir essa diferença, vamos ao ato final de Hamlet.
É lugar-comum da crítica afirmar que o Hamlet do ato V é um homem mudado: maduro em vez de juvenil, com certeza mais quieto, se não quietista; de algum modo, em maior harmonia com a divindade. Talvez a verdade seja que ele é, por fim, ele mesmo, não mais afligido pela lamentação e pela melancolia, pelo ciúme assassino e pelo ódio incessante. Certamente não é mais assombrado pelo espectro do pai. É possível que o desejo de vingança nele esteja diminuindo. Em todo o ato V, ele não menciona diretamente nem uma única vez o pai morto. Há apenas uma referência ao “sinete de meu pai” que serve para selar o destino adverso daqueles pobres condiscípulos, Rosencrantz e Guildenstern, e a curiosa expressão “meu rei” em lugar de “meu pai” na fria e retórica pergunta que o príncipe dirige a Horácio:
Pondera: não te parece que me cumpre agora —
Aquele que matou meu rei e que depravou minha mãe,
E que se esgueirou entre a eleição e as esperanças minhas;
Que deitou o anzol para apanhar a minha própria vida
E com tal maquinação — não é ato de perfeita consciência
Pagar-lhe com este braço?
Quando Horácio responde que Cláudio breve terá notícias da Inglaterra, e que provavelmente Rosencrantz e Guildenstern foram executados, Hamlet, de modo bastante ambíguo, faz o que se poderia interpretar como um voto final de vingança:
Será breve. É meu o intervalo.
E a vida de um homem não é mais do que contar “um”.
Seja como for que se interprete isso, Hamlet não delineia nenhum plano, e se compraz com uma sábia passividade, sabendo que Cláudio deve agir. Se não fosse pela intriga de Cláudio e Laertes, nós e o príncipe poderíamos ser confrontados por uma espécie de frieza sem fim. O que parece claro é que acabou a urgência do antigo Hamlet. Em lugar disso, um misterioso e belo desinteresse predomina nesse Hamlet mais veraz, que compele o amor universal exatamente por estar além dele, à parte a exemplificação deste por Horácio. O que ouvimos é um ethos tão original que ainda não o podemos assimilar:
Senhor, em meu coração havia uma espécie de luta
Que me não deixava dormir. Sentia a mim próprio jazer
Pior do que os amotinados presos aos ferros. Irrefletidamente —
e louvada seja a irreflexão: saibamos
Que a nossa indiscrição muita vez nos vale
Quando falham os nossos planos bem tramados; e isso nos deveria
[ensinar
Que existe uma divindade que nos modela os fins,
Por muito mal que os talhemos —
Numa leitura fraca, essa divindade é Iahweh, porém, de maneira forte, os “fins” aqui não são as nossas intenções, mas os nossos destinos, e o contraste se dá entre uma força capaz de moldar a pedra e as nossas vontades, que apenas talham grosseiramente uma implacável substância. Tampouco Calvino encontraria uma leitura forte nos ecos do Evangelho de Mateus, quando Hamlet põe de parte a própria vontade: “Não imaginas como tudo está infeliz aqui no coração”. No seu coração, há de novo uma espécie de luta, mas a prontidão, em vez da maturidade, agora é tudo:
Nada disso. Desafiamos o augúrio. Há providência particular na queda de um pardal. Se for agora, não está por vir; se não está por vir, vai ser agora; se não for agora, virá, no entanto. Estar preparado é tudo. Já que nenhum homem, de coisa alguma do que deixa, é senhor, que importa deixá-la cedo? Seja o que for.
O aparente niilismo faz mais do que negar o texto citado de Mateus, todavia o desespero epistemológico não se apresenta como tal, mas como uma serenidade consumada. Acima de tudo, não são essas as expressões de alguém que busca vingança, nem mesmo de alguém que ainda se lamenta, ou continua a padecer das virtudes egoístas do coração comum. Não o niilismo, mas o autêntico desinteresse — e, no entanto, que é ele? Nenhuma doutrina elisabetana, nenhuma interpretação em Aristóteles, nem ao menos em Montaigne, pode ajudar a responder a essa questão. Conhecemos o ethos do desinteresse só porque conhecemos Hamlet. Nem podemos esperar conhecer melhor Hamlet conhecendo Freud. Na verdade, o pai morto foi, durante quatro atos, mais poderoso do que poderia ser o pai vivo, mas, no ato V, o pai morto não é sequer uma sombra numinosa. Ele é tão só um precursor, o Hamlet da Dinamarca antes deste, e este importa muito mais. O herói trágico em Shakespeare, que alcança sua capacidade de comoção mais universal em Hamlet, é uma representação tão original que conceitualmente ele nos contém, e, desde então, modelou nossa psicologia dos motivos. Nosso mapa ou teoria geral da mente pode ser o de Freud, mas este, como todos nós, herda a representação da mente, no que tem ela de mais sutil e eminente, de Shakespeare. Freud podia dizer que o objetivo de toda a vida era a morte, mas não que estar preparado é tudo, nem mesmo que a superação do complexo de Édipo dependia de se passar da imagem do pai morto para a imagem de toda mortalidade. Quando a caveira de Yorick toma o lugar do espectro protegido por um elmo, o Hamlet maduro abandona, então, o vingador que pune a si mesmo, e cria-se um sentido diferente do poder que a morte exerce sobre a vida — e em algo que é mais do que uma peça ou um poema dramático:
HAMLET: A que torpes serviços podemos retornar, Horácio! Por que não pode a imaginação rastrear as nobres cinzas de Alexandre até dar com elas tapando o buraco dum barril?
HORÁCIO: Considerar assim seria considerar de modo assaz curioso.
HAMLET: Não, por minha fé, nem um pouco!, mas segui-lo até lá com bastante moderação e verossimilhança que a conduzisse.e
A probabilidade conduz a possibilidade, a verossimilhança dirige a imaginação, e Alexandre é essencialmente um substituto para o pai morto, o Alexandre dinamarquês. Passionalmente redutivo, Hamlet entregaria as próprias cinzas à mesma verossimilhança, porém, nesse ponto, dele nos afastamos, tendo Horácio como nosso próprio substituto. O elogio singular que Hamlet faz de Horácio estabelece para sempre o paradigma do leitor ou espectador shakespeariano com relação ao herói trágico de Shakespeare:
Ouves?
Desde que minha alma querida foi senhora da própria vontade,
E pôde dentre os homens escolher o seu eleito,
Selou-te para si mesma: pois foste
Como alguém que, sofrendo tudo, nada sofre…
O que não quer dizer que Horácio e o leitor não sofram com Hamlet, mas, antes, que nada sofrem porque de Hamlet aprendem o desinteresse que eles próprios não podem exemplificar, embora tenham de algum modo a possibilidade de partilhar. E eles sobrevivem, a fim de narrar a história de Hamlet “de juízos acidentais” não tão acidentais nem talvez juízos, pois que o desinteresse não julga e nem há acidentes.
Apenas Hamlet, ao cabo, não tem interesse, pois o herói que vemos no ato V, a despeito dos seus protestos, encontra-se agora além do amor; o que não significa dizer que, por isso, nunca tenha amado Gertrude ou Ofélia, ou o pai morto, ou o pobre Yorick. Hamlet é um ator? Sim, anteriormente, mas não no ato V, onde também deixou de ser diretor de peça, e, por fim, abandona até mesmo a profissão de poeta. A linguagem, predominante como tal no Hamlet anterior, quase dá a ilusão de transparência em sua derradeira fala, sobretudo porque chega próximo de dizer o que não pode ser dito:
Vós que estais pálidos e trêmulos ante esse infortúnio,
Que sois apenas figurantes ou espectadores desta cena,
Tivera eu tempo — que esse esbirro cruel, a Morte,
É preciso em sua detenção — Oh, pudera eu dizer-vos
Mas seja o que tiver de ser.
Obviamente, ele de fato sabe algo do que abandona, e ansiamos por saber o que poderia nos dizer, de vez que o poder de Shakespeare nos persuade de que Hamlet obteve um conhecimento decisivo. Uma pista é o durável tropo teatral do “apenas figurantes ou espectadores”, o qual sugere que o conhecimento é em si mesmo “da” ilusão. Mas o tropo é enfatizado por duas declarações feitas a Horácio e, desse modo, a nós próprios. “Estou morto”, e nenhuma outra personagem em Shakespeare parece postar-se de modo tão autoritário no limiar entre os mundos da vida e da morte. Quando a última fala do herói passa de “Oh, eu morro, Horácio” para “o resto é silêncio”, há de novo uma forte impressão de que muito mais se poderia dizer, sobre o nosso mundo e não sobre a “região desconhecida” da morte. A indicação é a de que Hamlet poderia nos contar algo que aprendeu acerca da natureza da representação, pois aprendeu aquilo que ele próprio representa.
Sobre isso, Shakespeare concede a Fortimbrás a última palavra, mas tal palavra é ironia, pois Fortimbrás apenas exemplifica a fórmula da repetição: tal pai, tal filho. “A música militar e o rito marcial” representam com eloquência o pai morto, mas não esse filho morto, que assistira ao exército de Fortimbrás avançar para obter seu pequeno pedaço de terra e refletira: “Certamente ser grande/ Não é inquietar-se sem grande razão” [Rightly to be great / Is not to stir without great argument]. A última palavra do leitor tem de ser a de Horácio, que, com mais verdade do que Fortimbrás, tem a voz agônica de Hamlet: “e da sua boca cuja voz arrastará consigo mais vozes”, que apenas de modo secundário significa arrebanhar mais partidários da eleição de Fortimbrás. Horácio representa os espectadores, enquanto Fortimbrás exemplifica todos os pais mortos.
Amamos Hamlet, portanto, pelas mesmas razões por que Horácio o ama. De Horácio, sabemos que aquilo que mais o distingue de Rosencrantz e de Guildenstern, e, é certo, de Polônio, Ofélia, Laertes — de Gertrude, na verdade —, é o fato de Cláudio não poder valer-se dele. Os críticos notaram o status ambiguamente variável de Horácio na corte da Dinamarca, e o falecido William Empson confessou certa irritação com a descoberta em Horácio, por Hamlet, de virtudes que o príncipe não poderia encontrar em si mesmo. No entanto, Shakespeare dá-nos um Hamlet que temos de amar ao mesmo tempo que estamos conscientes da nossa inferioridade, pois ele tem as qualidades que nos faltam e, assim, dá-nos também Horácio, nosso representante, que tão estoicamente ama pelos demais de nós. Horácio é leal e limitado, cético, como convém a um condiscípulo do profundamente cético Hamlet, mas nunca cético quanto a Hamlet. Tirem Horácio da peça e nos põem fora dela. O enredo poderia ser reajustado para poupar os desventurados Rosencrantz e Guildenstern, e até mesmo para Laertes, para não mencionar Fortimbrás, mas retirem Horácio e Hamlet se torna tão distante de nós que quase podemos perder a esperança de explicar a universalidade da atração que é a característica mais original dele e da peça.
Horácio, portanto, representa por intermédio de nossa associação positiva consigo; é um truísmo, mas não menos verdadeiro por isso, dizer que Hamlet representa pela negação. Suponho que, na origem, essa negação é bíblica, o que explica por que ela nos parece tão freudiana, pois a negação freudiana é, por assim dizer, bíblica e não hegeliana. Hamlet é bíblico, mais do que homérico ou sofocliano. Tal qual o herói hebraico defrontando Iahweh, Hamlet precisa ser tudo em si mesmo, apesar de saber em que sentido não é nada em si mesmo. O que Hamlet recupera da repressão é restituído apenas de forma cognitiva, jamais emocional, de modo que, nele, o pensamento é liberado do seu passado sexual, porém ao custo elevado de um prolongado e crescente sentimento de aversão sexual. E o que Hamlet ama a princípio é o que ama o homem bíblico e freudiano: a imagem da autoridade, o pai morto e o objeto do amor do pai morto, que é também o objeto do amor de Cláudio. Quando amadurece, ou retorna inteiramente a si mesmo, Hamlet transcende o amor da autoridade e deixa de amar por completo, e talvez se possa dizer que ele agoniza do começo ao fim do ato V, e não apenas na cena do duelo.
Em Freud, amamos a autoridade, mas a autoridade, por sua vez, não nos ama. Em nenhuma passagem da peça, Hamlet ou qualquer outro nos conta sobre o amor do rei morto por seu filho, mas apenas de seu amor por Gertrude. Deve-se admitir que Hamlet paira sempre além da nossa compreensão, mas ele não se encontra tão distante que nos faça vê-lo com a visão de Fortimbrás em vez de com a visão de Horácio. Não pensamos nele necessariamente como representante da realeza, porém mais como nobre, no sentido arcaico de “nobre”, que é ser uma alma com poder de visão. Com certeza não é acidental que se faz com que Horácio enfatize a palavra “nobre” na sua elegia a Hamlet, a qual contrasta o canto angélico com a “música militar” de Fortimbrás. Como um coração nobre ou dotado de visão, Hamlet na verdade vê por meio da emoção. Com exceção do julgamento de T. S. Eliot de que a peça é um fracasso estético, a opinião mais estranha na crítica contemporânea de Hamlet foi a de W. H. Auden, no ensaio sobre Ibsen, “Gênio e apóstolo”, que compara Hamlet, enquanto simples ator, ao Dom Quixote, enquanto a antítese de um ator:
A Hamlet falta fé em Deus e em si próprio. Por conseguinte, ele tem de definir sua existência em função dos outros, por exemplo, eu sou o homem cuja mãe desposou seu tio, o qual assassinou seu pai. Ele gostaria de tornar-se o que é o herói trágico grego, uma criatura da situação. Daí sua incapacidade de atuar, pois ele só pode “atuar”, isto é, jogar com possibilidades.
Harold Goddard, cujo livro The meaning of Shakespeare O significado de Shakespeare ainda me parece o trabalho mais esclarecedor sobre Shakespeare, observou que “Hamlet é seu próprio Falstaff”. No espírito de Goddard, eu poderia arriscar a fórmula: Brutus mais Falstaff é igual a Hamlet, embora “igual” dificilmente seja aqui uma palavra precisa. Melhor fórmula foi proposta por A. C. Bradley, quando sugeriu ser Hamlet a única personagem shakespeariana que poderíamos pensar ter escrito as peças de Shakespeare. Goddard baseou-se nisso ao dizer de Shakespeare: “Ele é um Hamlet antes da Queda”. De uma perspectiva douta ou formalista, o aforismo de Goddard não é crítica, mas nem a pesquisa histórica nem os métodos formalistas da crítica nos têm sido de grande ajuda para aprender a descrever a originalidade inassimilada que ainda constitui a representação shakespeariana. Pelo fato de sermos formados por Shakespeare, paradoxalmente com mais plenitude ali onde não o podemos assimilar, somos um pouco ofuscados pelo que se poderia chamar de a originalidade dessa originalidade. Só alguns críticos (entre eles, A. D. Nuttall) viram que o principal elemento dessa originalidade é seu poder cognitivo. Sem Shakespeare, não teríamos conhecimento de uma representação literária que operasse de modo a induzir a realidade a revelar aspectos de si própria que nós, de outra forma, não poderíamos discernir.
Harry Levin, para quem uma forte desleitura não é uma descoberta feliz, porém má sorte, adverte-nos que “tem-se pensado demasiadamente em Hamlet sem Hamlet”. Poder-se-ia replicar, com toda a suavidade, que pouco de memorável tem sido escrito sobre Hamlet que não se inclua no modo de “Hamlet sem Hamlet”. Muito mais do que em Rei Lear ou Macbeth, a peça é a personagem; a questão de Hamlet só pode ser Hamlet. Ele não se move num cosmo sublime e, em verdade, não tem nenhum mundo, salvo ele mesmo, o que pareceria ser o que aprendeu no ínterim dos atos IV e V. Crianças trocadas ao nascer que transitam da fantasia ao fato apenas são possíveis no romance, e — ai! — Shakespeare escreveu a tragédia de Hamlet, e não o romance de Hamlet. Porém a originalidade da representação shakespeariana na tragédia, sobretudo em Hamlet, dificilmente pode ser exagerada. A versão shakespeariana do romance familiar sempre o combina com dois outros paradigmas para sua exuberante originalidade: com uma catástrofe que cria e com um transportar-se de ambivalências anteriores na plateia até uma ambivalência que é uma espécie de tabu estabelecido em torno do herói trágico como uma aura. No final de Hamlet, apenas Horácio e Fortimbrás são os sobreviventes. Fortimbrás será, provavelmente, um outro rei-soldado da Dinamarca. Horácio não volta conosco para casa, mas se desvanece na aura do crepúsculo de Hamlet, talvez para servir, repetidas vezes, como testemunha da história de Hamlet. O herói nos deixa com uma sensação de que por fim ele criou a si próprio, de que ele estava além do nosso alcance, mas não além da nossa afeição, e de que as catástrofes que ajudou a provocar não ocasionaram uma nova criação, mas uma revelação original do que se achava latente na realidade mas que não se evidenciaria sem a própria desgraça do herói.
O dr. Samuel Johnson encontrou na representação de Otelo, Iago e Desdêmona “tantas evidências da perícia de Shakespeare na natureza humana que, suponho, seja inútil buscar em qualquer escritor moderno”. Victor Hugo, o grande romântico, deu-nos a fórmula contrária: “Depois de Deus, Shakespeare foi quem mais criou”, o que não me parece uma nova mistificação das personagens de Shakespeare, mas, antes, uma indicação perspicaz em relação ao que se poderia chamar de pragmática da estética. Shakespeare foi um deus mortal (como Victor Hugo aspirou a ser), porque sua arte não era, de forma alguma, uma mimese. Um modo de representação que sempre está à frente de qualquer realidade que se desenvolva no plano histórico por força nos contém mais do que somos capazes de contê-la. A. D. Nuttall observa quanto a Iago que ele “escolhe quais emoções sentirá. Ele não é apenas motivado, como todo mundo. Em vez disso, ele decide ser motivado”. Embora Nuttall faça de Iago um existencialista na linha de Camus, eu consideraria Iago mais próximo de um deus, ou de um demônio, e que, desse modo, talvez se pareça com seu criador, que obviamente escolheu as emoções que seriam sentidas, e decidiu ser ou não motivado. Não temos a impressão de que Otelo seja uma crítica de Shakespeare, mas, em certo sentido, Iago é bem isso, sendo um dramaturgo, tal qual Edmund, no Rei Lear, como Hamlet e como William Shakespeare. O “o resto é silêncio” de Hamlet apresenta um curioso paralelo com o “Doravante jamais direi palavra” de Iago, mesmo que Hamlet morra em seguida e Iago sobreviva para morrer mudo sob tortura.
Não é que Iago se encontre na classe de Hamlet como uma consciência intelectual. Não, Iago é comparável a Edmund, que no Rei Lear supera a todos como intrigante no ambiente de realeza da peça. Otelo é soldado ilustre e homem lamentavelmente simplório, que poderia ser arruinado por um vilão muito menos dotado que Iago. A opinião fascinante de A. C. Bradley ainda é verdadeira: troque-se de lugar Otelo e Hamlet, pondo um na peça do outro, e não haverá peças. Otelo abateria Cláudio tão logo o espectro o persuadisse, e Hamlet necessitaria apenas de alguns momentos para perceber o jogo de Iago, e começar a destruí-lo por meio de paródia declarada. Contudo, não há Hamlets, nem Falstaffs, nem clowns dotados de inspiração em Otelo, o mouro de Veneza, e a pobre Desdêmona não é Pórcia.
O mouro de Veneza é a parte vez por outra negligenciada do título da tragédia. Ser o mouro de Veneza, seu general assalariado, é uma honra incômoda, e a Veneza daquela época e a dos nossos dias é a mais incômoda das cidades. A pigmentação de Otelo é notoriamente essencial para o enredo. Dificilmente ele é um homem comum com relação aos sutis venezianos, porém o estado de obsessão sexual que ele adquire de Iago se desenvolve num dualismo que o torna insano. Um monismo magnífico sucumbiu aos descontentamentos da civilização veneziana, e continuamos assombrados pelas insinuações de um Otelo diferente, como se Desdêmona, mesmo antes da intervenção de Iago, fosse a perda, bem como o ganho, para um soldado anteriormente íntegro. Muitos críticos observaram o sentimento de pesar de Otelo, quando, no ato I, ele menciona ter trocado a “vida livre sob o céu” por seu amor à “gentil Desdêmona”. Ao pensarmos nele em sua glória, lembramos de quando põe fim a uma briga de rua com uma fala de prodigiosa autoridade: “Guardai vossas espadas reluzentes, que o orvalho vai enferrujá-las”. “Embainhai as espadas ou morrereis” seria uma interpretação redutiva, porém Otelo, em seu apogeu, desafia a redução, e uma interpretação mais completa haveria de enfatizar a tranquilidade e a grandeza desse temperamento esplendidamente militar. De que modo tão ampla e imponente autoridade degenera com tanta rapidez num equivalente do Malbecco de Spenser? Tal como Malbecco, Otelo esquece que é um homem, e seu nome, com efeito, se torna Ciúme. Em Hawthorne, o ciúme se muda em Satã, depois de ter sido Chillingworth, ao passo que, em Proust, primeiro Swann e depois Marcel transformam-se em historiadores da arte cujo tema é o ciúme, isto é, estudiosos obsessivos buscando desesperadamente todo pormenor visual da traição. O ciúme enganoso de Freud supõe a homossexualidade reprimida e parece inaplicável a Otelo, embora não de todo a Iago. O ciúme em Shakespeare — fonte para sua aparição em Hawthorne, Proust e Freud — é uma máscara para o medo da morte, pois o que o amante ciumento receia é que não haja tempo ou espaço suficiente para si mesmo. Um dos esplendores peculiares do Otelo é que não podemos compreender o ciúme tardio de Otelo sem antes compreender a inveja primal que Iago nutre por Otelo, que se encontra no centro oculto do drama.
Frank Kermode curiosamente diz que “a ética naturalista de Iago […] é uma versão corrompida de Montaigne”, juízo que Ben Johnson poderia ter acolhido com satisfação, mas que acho estranho a Shakespeare. A versão de Iago não é naturalista, mas sim, em toda a literatura, a versão mais violenta de um ideólogo da falácia redutiva, que pode ser definida como a crença de que aquilo que é mais real sobre nós é a pior coisa que possivelmente pode ser verdadeira a nosso respeito. “Diga-me como ele, ou ela, realmente é”, insiste o reducionista, quando quer dizer: “Diga-me a pior coisa que puder”. Provavelmente, o reducionista não suporta ser enganado, e, assim, torna-se um profissional da impostura.
Iago é o porta-estandarte de Otelo, um oficial graduado, experiente e corajoso no campo de batalha, como temos toda razão para supor. “Não sou o que sou” é o seu motto desalentador, inesgotável à meditação, que apenas superficialmente traz ecos do “Eu sou o que sou” de são Paulo. “Eu sou aquele que sou” é o nome de Deus em resposta à indagação de Moisés, e reverbera obscura e antiteticamente em “não sou o que sou”. Deus estará onde e quando estiver, presente ou ausente conforme Sua escolha. Iago é o espírito que não estará, o espírito da ausência, negatividade pura. Desde o começo sabemos, portanto, por que Iago odeia Otelo, que é a presença mais marcante, o ser mais pleno no mundo de Iago, sobretudo na batalha. A raiva se faz de empírica, mas é ontológica e, por conseguinte, insaciável. Se o eros platônico é o desejo do que não se obteve, então a raiva de Iago é o impulso de destruir o que não se obteve. Estremecemos quando Otelo enfurecido jura morte a Desdêmona, um “adorável demônio”, e promove Iago a seu tenente, pois Iago soberbamente responde “Sou teu para sempre”, e quer dizer o contrário: “Agora, também tu és uma ausência”.
BLOOM, Harold. Abaixo as verdades sagradas. Trad. de Alípio Correa de Franca Neto e Heitor Ferreira da Costa. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.