Acabo de escrever, para uma obra coletiva, um breve texto sobre a imagem, ou antes, contra a imagem, e que poderia ter sido assinado pelo crente mais ortodoxo. E, contudo, nunca estive tão distante de qualquer conversão que seja. É um “impulso” místico proveniente de certos estados febris que experimento de vez em quando.
E.M. Cioran (1970)
Um texto enigmático de Cioran encontra-se em meio aos escritos selecionados que compõem Contra la historia, uma coleção de aforismos e ensaios editada por Esther Seligson com o propósito de difundir os escritos de Cioran no mundo hispanófono quando seus livros estavam começando a ver a luz da tradução espanhola
Versão atualizada de “Contra a Imagem – E.M. CIORAN” (06/05/2021)
Nascida no México, no seio de uma família judia, Esther Seligson foi uma das tradutoras de Cioran para a língua espanhola, além de correspondente epistolar e uma amiga à distância do autor romeno em Paris. Era escritora, poeta, tradutora e historiadora. Seligson foi uma intelectual multifacetada (mais ou menos como Susana Soca, no Uruguai), cujas obras recobrem uma ampla gama de interesses, como as artes, história cultural, filosofia, e particularmente a filosofia judaica, mitologia e religião, teatro, entre outros. Publicou livros de poemas e contos. Como reconhecimento por suas contribuições literárias, ganhou o Prêmio Xavier Villaurrutia, em 1973, e o Prêmio Magda Donato, em 1989.[1]
Segundo Leobardo Villegas Mariscal, filósofo mexicano e professor da Universidad Autónoma de Zacatecas (UAZ-México), Seligson traduziu pela primeira vez em 1981 História e utopia (1960), publicado pela editora mexicana Artífice e posteriormente reeditado por Tusquets (1988). Ainda em 1981, também traduziria Do inconveniente de ter nascido (1973), pela Taurus, livro que só viria à luz em edição portuguesa, de Portugal, em 2010, pela Letra Livre de Lisboa. Além destas traduções, Seligson é autora de dois livros de exegese filosófica cioraniana. Um deles, Contra la historia, foi publicado pela primeira vez em 1976, tendo sido republicado em 1980. O volume consiste numa seleção de ensaios e aforismos, até então inéditos em espanhol, extraídos e traduzidos de vários livros de Cioran por Seligson, como Silogismos da amargura (1952), A queda no tempo (1964), Écartèlement (1979) e Exercícios de admiração (1986). O que permite inferir, por necessidade cronológica, que muitos dos textos e aforismos que apareceriam em seus livros ainda por vir, já haviam ido publicados em outros idiomas, não sendo, portanto, absolutamente inéditos, o que, por sua vez, corrobora a natureza “repetitiva”, “variacional”, e não dialético-progressiva, da obra de Cioran.
O mais intrigante sobre a antologia de Seligson, entretanto, é o último título do índice: “Contra a imagem”, título ausente de todos os livros de Cioran (ao menos os publicados em português), dando a impressão de ter sido escrito em francês, talvez não muito antes, mais ou menos na mesma época da publicação do volume espanhol de Seligson, provavelmente com o título Contre l’image ( o exato equivalente francês do título espanhol). Curiosamente, Contre l’image é o mesmo título de um livro do filósofo francês Roger Munier, lançado pela primeira vez em 1963, coincidentemente pela mesma editora que publicava os livros de Cioran, a Gallimard. Munier foi o diretor encarrago de uma coleção à parte, na editora Fayard, chamada L’espace intérieur [O Espaço Interior], na qual editava livros sobre budismo, taoísmo, hinduísmo, entre outras tradições espirituais e místicas. Coincidentemente, também, Munier e Cioran se tornariam amigos, ou manteriam relações próximas, a partir de 1970.
É sabido que além de sua própria écriture pessoal, destinada a ser publicada na forma de livros assinados por ele mesmo, Cioran também escrevia por encomenda, a pedido de editores e amigos. Daí o Ensaio sobre o pensamento reacionário, sobre Joseph de Maistre, por exemplo, e também a sua colaboração no Apocalipse de Joseph Foret (1959), ao lado de Salvador Dalí, Jean Cocteau, Ernst Jünger, entre outros artistas plásticos e escritores. E também os textos publicados na Nouvelle Revue Française (NRF), revista que tinha como diretor Jean Paulhan, e publicada pela mesma Gallimard dos livros de Cioran. Muitos dos ensaios de A Tentação de existir (1956), por exemplo, já haviam sido publicados anteriormente em diferentes números da NRF (o mesmo valendo outros de seus livros franceses, como Le mauvais démiurge).

Na verdade, o mesmo texto encontra-se publicado com títulos distintos. Foi concedido por Cioran a outro tradutor espanhol, Rafael Panizo, para integrar, junto com os outros textos ausentes da edição brasileira, a edição espanhola de Exercícios de admiração, com o título Hacia la desnudez [Em direção à desnudez]. Além disso, encontra-se reunido no Cahier L’Herne Cioran (2009), com o título Urgence du désert [Urgência do deserto]. Ao final desta versão, presente no volume comemorativo da editora L’Herne, encontra-se a fonte original do texto: com efeito, tratava-se de uma obra coletiva, um livro organizado por Philippe Lebaud, ilustrado por diferentes artistas e escrito por diferentes autores, intitulado Variations sur l’imaginaire (Paris, Club du Livre, 1972).
O interesse manifesto pelo tema em questão não é lá tão surpreendente em si mesmo. A Imagem pode ser subsumida na noção mais geral de aparências que é um dos objetos de crítica privilegiados da lucidez cioraniana. A imagem não deve ser confundida com a mera aparência. Cioran era hiperconsciente da sua écriture e da escolha das palavras [choix des mots], a começar pelos títulos de textos e livros. Não está escrito “Contra as aparências”, o que, a despeito da inexistência de tal título, equivaleria essencialmente a grande parte das ruminações negativas no conjunto da obra de Cioran.[3] “Contra a imagem” é uma peça única e especial porque, aqui, o objeto privilegiado da lucidez cioraniana é a noção de Imagem, de uma aparência elevada a representação profundamente carregada de valor afetivo e sentimental, diferentemente da mera aparência, no sentido de simples fenômeno (coisa) que “aparece” (phainen, em grego , significa “aparecer”, “brilhar”). A imagem representa, e Cioran parece ter plena consciência disso, muito mais do que a simples aparência, na medida em que estabelece um rapport com o olho e o olhar, e que estabelecemos, com ela, uma relação afetiva, pautada por sentimentos, pela imaginação e pela memória; a aparência é indiferente e em grande medida insignificante; a imagem é uma aparência destacada das demais que se tornou representação, possuindo uma significação simbólica, uma relevância icônica; a aparência permanece indiferente e indiferenciada da massa caótica de fenômenos (sense-data), ao passo que a imagem faz a (sua própria) diferença na relação visual que mantemos com o mundo das aparências indiferenciadas e indiferentes.
É um nível de reflexão superior ao da crítica (me)ontológica à Aparência enquanto tal (o que também se encontra abundantemente em Cioran). Portanto, a importância de “Contra a imagem”, no âmbito da obra estendida de Cioran (entrevistas, cartas, textos não publicados em seus livros), reside tanto nas circunstancias misteriosas da confecção do texto quanto na especificidade do objeto privilegiado da crítica do autor: a Imagem. Em nenhuma outra parte, em toda a sua obra, encontramos um texto sequer em que Cioran se ponha a “desconstruir” a ideia de imagem, com tudo o que ela possui de específico e especial para além da mera aparência, com toda a sua força cultural, o seu apelo perene sobre a humanidade, sem falar no potencial fetichismo nela implicado.

Quando pensamos em “imagem”, ainda mais no que diz respeito ao filósofo romeno, é inevitável evocar cedo ou tarde a noção bíblica do homem como imago Dei, um dogma cristão rejeitado prontamente por Cioran como sendo um completo disparate, um absurdo flagrante, uma falsa suposição que em última análise condena Deus ou, na melhor das hipóteses, O coloca sob luzes não muito favoráveis. Outra instância da imagem, também no âmbito da cultura religiosa, é o ícone ortodoxo (como em Andrei Rublev[4]), com cuja importância fundamental no contexto do cristianismo ortodoxo, Cioran – filho de um padre ortodoxo – estava muito familiarizado.
Porém, ainda cedo ele rejeitaria a fé do seu pai e do seu povo, questionando a incompatibilidade entre a onipresença do mal e do sofrimento universal neste mundo “aqui embaixo” [ici-bas], e a assunção cristã-teológica de um Criador benevolente e onipotente, puro e perfeito, tornando-se precocemente um ateu na prática (ver “O teísmo como solução do problema cosmológico”, monografia acadêmica escrita por um jovem Cioran ainda estudante de Filosofia na Universidade de Bucareste).
Duas outras instâncias da ideia de Imagem, fora do escopo do texto de Cioran, seriam (1) a imagem midiática, conforme posta em pauta por autores como Walter Benjamin (valor de culto vs. valor de exposição), Jean Baudrillard (simulacro) e, mais recentemente, Byung-Chul Han (Sociedade da Transparência), e, por outro lado, (2) a noção psicológica de autoimagem, a própria percepção ou apercepção que um sujeito individual faz e mantém de si mesmo conscientemente. Quanto a esta última, embora não seja evocada em “Contra a imagem”, é um tema ao qual Cioran retorna com frequência, conforme atestado pelos seus Cahiers. Por fim, no que concerne à abordagem cioraniana da Imagem, o autor romeno parte de uma postura religiosa e/ou mística, como é lhe é bastante comum, para desenvolver uma argumentação implacável em direção a uma perspectiva teológico-negativa, apofática e ascética, do Ser e do Não-Ser, caracterizada pela absoluta ausência de valor imagético, de representabilidade objetiva, segundo a qual a Imagem – religiosa ou secular – é sempre um princípio de apego ilusório a este mundo ici-bas, como o são também as palavras, a Palavra, comportando uma significação igualmente religiosa, ambas colocando-se como entraves, como obstáculos no caminho místico em direção à nudez espiritual (desnudez em espanhol; nudité em francês) e ao silêncio interior. A palavra é uma imagem abstrata com pretensões discursivas, “literárias”:
Não há salvação possível fora da imitação do silêncio. Mas nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozoides verbosos, estamos quimicamente ligados à Palavra.
Silogismos da amargura
Dito isso, “Contra a imagem” repercute alguns princípios cioranianos muito significativos, já abordados em seus livros, sobre o valor gnoseológico, se algum, da visão enquanto tal, isto é, da faculdade de ver com os olhos, em se tratando do conhecimento essencial (natureza mística), notadamente o conhecimento de si (gnose), autoconhecimento através da experiência interior (Bataille), sem qualquer preocupação com os eventos e as contingências do mundo exterior (ao qual pertence inclusive a dimensão psicológica do homem exterior, concebido em termos de homo duplex). Embora as metáforas místicas de Cioran sejam com frequência de natureza visual (“iluminação”, “despertar”, “lucidez”, “clarividência”, etc.), o sentido profundo e eminentemente místico, mais próximo da natureza invisível e inefável da experiência interior (religiosa ou profana), é, em última análise, a audição, tendo a Música como seu modelo ideal de criação intuitiva (disso que ele designara, no seu primeiro livro, Nos cumes do desespero, uma “filosofia lírica” cujas raízes são tão profundas quanto as da filosofia mesma).
Eis a primeira passagem significativa, do Breviário de decomposição, referente à oposição entre a imagem e sua ausência, entre a visão e essa cegueira clarividente que nos comunica a écriture de Cioran, conhecimento mundano como não-conhecimento (falso, inessencial) e o saber-compreender do ponto de vista da lucidez (vertiginosa, abismal, insuportável) como uma espécie de não-saber essencial, um nada-saber libertador em virtude de um excesso nefasto de clarividência:
A verdadeira grandeza dos santos consiste nesse poder – insuperável entre todos – de vencer o Medo do Ridículo. Nós não poderíamos chorar sem sentir vergonha; eles invocam “o dom das lágrimas”. Uma preocupação de honorabilidade em nossas “securas” imobiliza-nos como espectadores de nosso infinito amargo e comprimido, de nossas expansões que não acontecem. No entanto, a função dos olhos não é ver, mas chorar; e para ver realmente é preciso fechá-los: é a condição do êxtase, da única visão reveladora, enquanto que a percepção esgota-se no horror do já visto [déjà vu], do irreparavelmente sabido desde sempre.[5]
“Lipemania”, Breviário de decomposição (1949)
Eis outra passagem notável, de La chute dans le temps (inédito em português), acerca das virtudes gnosiológicas da ausência de toda e qualquer imagem, e, mais ainda, as vantagens inauditas de nada ver (falta de visão, cegueira para o mundo[6]), de onde o acesso interior a um novo e especial tipo de visão, à visão mística que é, para Cioran, muito mais e muito menos que a experiência imediata da presença de Deus, conforme Bernard McGinn define a mística cristã, a saber, experiência-limite do que estaria além e acima de Deus: a “Divindade”, em termos eckhartianos, ou o “Nada supremo”, em termos cioranianos.
Ceder, em meio aos nossos males, à tentação de crer que não nos terão servido para nada, que, sem eles, estaríamos infinitamente mais avançados, é esquecer o duplo aspecto da doença: aniquilamento e revelação; ela só nos arranca às nossas aparências e só as destrói para melhor nos abrir à nossa realidade última, e às vezes ao invisível.[7]
“Sur la maladie”, La chute dans le temps (1964)
Por último, em Le mauvais démiurge (também inédito em português), encontramos esta passagem bastante significativa acerca do tema:
O despertar independe das capacidades intelectuais: pode-se ter gênio e ser um néscio, espiritualmente falando. Por outro lado, não se avança nem um pouco com o conhecimento enquanto tal. ‘O olho do Conhecimento’ pode ser possuído por um iletrado, que se encontrará, portanto, acima de qualquer sabichão. Discernir que o que você é não é você, que o que você tem não é seu, não ser cúmplice de nada, nem mesmo da própria vida, isso é ver com precisão, isso é descer à raiz nula de tudo.[8]
“Paleontologie”, Le mauvais démiurge (1969)

Para concluir, “Contra a imagem” é um texto que reforça a imagem, sedimentada ao olhar do leitor, de um pensador aporético preso nas contradições das flutuações dos seus temperamentos. O pró e o contra da Imagem: podemos aplicar em relação a ela, particularmente, a mesma atitude que Cioran demonstra, no Livro das ilusões (1936), em relação à Verdade, e que valeria para qualquer outra coisa que seja, segundo ele, digna de ser pensada: “Estar com a verdade contra ela não é uma fórmula paradoxal, porque todos os que compreendem seus riscos e revelações não podem deixar de amar e de ao mesmo tempo odiar a verdade. Quem acredita na verdade é um ingênuo; quem não acredita, um estúpido. A única via reta passa pelo fio da navalha.”[9]
De resto (tendo em mente a nota supracitada, dos Cahiers, sobre o texto em questão), cumpre assinalar de antemão as figuras inusitadas (religiosas, místicas) citadas por Cioran em “Contra a imagem”: São Gregório Palamás,[10] Serafim de Sarov,[11] Jan Van Ruysbroek[12] e Meister Echkart.[13] (o texto encontra-se logo abaixo, após as notas).
MENEZES, Rodrigo Inácio R., “Uma reflexão sobre (contra) a imagem, de E.M. Cioran”, Portal E.M. Cioran Brasil, 21/05/2021
CONTRA A IMAGEM
I. O espírito que se encaminha à desnudez rechaça as semelhanças que o fazem lembrar deste mundo, do qual deseja separar-se. Só se exaspera com o que existe ou parece existir. Quanto mais se afasta das aparências, menos necessitará de signos que as realcem ou de simulacros que as denunciem, ambos igualmente desastrosos para a busca do que importa, do que se oculta, desse fundo último que exige, para ser apreendido, a ruína de toda a imagem, espiritual inclusive.
II. Privilégio maldito do homem exterior, a imagem, por mais pura que seja, conserva sempre um traço de materialidade, certa rugosidade, e, posto que se refere necessariamente ao mundo, carrega consigo um elemento de incerteza e de perturbação. Só pela vitória sobre ela se pode caminhar em direção ao ser desnudo, a essa segurança sem amarradas chamada libertação. Libertar-se significa, na verdade, despojar a imagem, abandonar todos os símbolos do aqui embaixo.
III. Só nos libertamos da imagem se, num movimento semelhante, nos libertarmos da palavra. Cada palavra equivale a uma mancha, cada palavra é um atentado à pureza. “Nenhuma palavra pode esperar outra coisa senão a sua própria derrota”, proclama Gregório Palamás, em sua Defesa dos Santos quietistas. Só por meio do silêncio se pode chegar a esse fundo mais além das aparências, a esse silêncio que, segundo Séraphin Sarov, torna os homens semelhantes aos anjos.
Algo digno de levar-se em consideração: não há silêncio frívolo, não há silêncio superficial. Todo silêncio é essencial. Quando o saboreamos, conhecemos de imediato uma espécie de supremacia, uma estranha soberania. É possível que isso que se designa por interioridade não passe de uma espera muda. Da mesma forma, não existe “vida verdadeira”, uma vida espiritual árida, que não implique a morte da imagem e da palavra, a destruição, no mais íntimo do ser, deste mundo e de todos os mundos. A experiência mística se confunde, no limite, com a bem-aventurança de um supremo rechaço.
IV. Perseguir, buscar a imagem, é provar que permanecemos aquém do absoluto, que não estamos qualificados para a visão pura. E é compreensível, porque não se trata de uma visão sem objeto, mas de uma visão além de todo o objeto. Pode-se dizer até que o que ela nos permite ver é a ausência ilimitada de tudo o que pode ser visto, a desnudez tal e qual, a vacância como plenitude, ou, melhor ainda, esse “abismo da superessência”, celebrado por Ruysbroek.
V. De todos os que procuram, só o místico encontrou, mas, como compensação por um favor tão excepcional, nunca poderá dizer o que encontrou, apesar de possuir a segurança que só o conhecimento intransmissível confere (conhecimento verdadeiro, de resto). O caminho pelo qual nos convida a segui-lo conduz a um vazio sem precedentes, mas – e eis o que é maravilhoso – um vazio que preenche, pois substitui todos os universos abolidos. Trata-se aqui de uma empreitada, a mais radical já se tentou, para ancorar-se em algo mais puro que o ser ou a ausência de ser, em algo superior a tudo, inclusive ao absoluto.
VI. O conhecimento que se nutre das aparências é um falso saber ou, se preferir, um não-saber. Para o místico, o conhecimento, no sentido último da palavra, assume a forma de uma ignorância iluminada, uma ignorância “translúcida”. “Quem vive na companhia dessa ignorância e da luz divina, percebe em si mesmo algo como uma solidão devastada”, diz Ruysbroek. A partir desta solidão compreender-se-á facilmente a necessidade, a urgência do deserto, espaço propício à fuga para a ausência de imagens, para um despojamento inusitado, para a unidade desnuda, mais para a Divindade do que para Deus. “A Deidade e Deus”, nos diz Meister Eckhart, “são tão diferentes quanto o céu e a terra. O céu está milhares de léguas mais alto. Assim também a Deidade em relação a Deus. Deus devém e passa.”
Ater-se a Deus é ainda, como observou um comentarista, permanecer “no limiar da eternidade”, não penetrá-la, pois a eternidade não é alcançada senão elevando-nos à Deidade. Inspirados por essa mesma “solidão devastadora”, como não evocar essa “oratio ignita”, essa “oração de fogo” da qual, segundo um Padre dos primeiros séculos, só somos capazes quando estamos tão impregnados de uma luz vinda de cima, que já nos é impossível empregar a linguagem humana?
CIORAN, E.M., “Contra a imagem”, in Contra la la Historia. 2. ed. Trad. de Esther Seligson. Barcelona: Tusquets, 1980, p. 151-154. Tradução do espanhol de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes.
NOTAS:
[1] Após estudar Química na Universidade Nacional Autônoma do México, Seligson voltou-se ao estudo da História (sobretudo a história do México) e das Letras. Posteriormente, estudaria cultura judaica no Centre Universitaire d’Ètudes Juives em Paris, e no Mahon Pardes em Jerusalém. Ministrou aulas de História do Teatro no Centro Universitário de Teatro da UNAM, além de cursos de Artes Cênicas e mis-en-scène teatral. Seligson viveu em Lisboa e, mais tarde, em Jerusalém. A escritora Elena Poniatowska, que a conhecera em Israel, afirma que “Esther Seligson me atraiu por causa de suas habilidades de faquir. Nos vimos em Jerusalém, e ela me proporcionou o espetáculo de sua beleza bronzeada pelo sol do deserto.” – https://es.wikipedia.org/wiki/Esther_Seligson
[2] Do latim aegyptiacus, -a, -um, do grego aiguptiakós, –ê, -ón, egipcíaco, egípcio; 1. Que é de azar ou o faz recear. 2. De mau agouro. Confrontar: aziado. “Aziago”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/aziago [consultado em 21-05-2021].
[3] A ambivalência resultante do paradoxo que reside no coração do pensamento de Cioran faz com que ele mantenha atitudes e opiniões contraditórias sobre as questões essenciais (obsessões) que ocupam os seus pensamentos. As aparências (e tudo o que se encontra implicado nelas, notadamente a ilusão e o autoengano, o apego à vida que é causa de sofrimento ilusório, etc.) não constituem exceção; ao longo do arco que compreende o primeiro e o último livro de Cioran, encontraremos em cada um deles expressões de rechaço e confissões de apego, declarações de ódio e de amor em relação às aparências e à Ilusão enquanto tal (cf. O Livro das ilusões), do ponto de vista do espírito vertiginosamente lúcido, que, vazio de ilusões, toma consciência da necessidade delas e ao mesmo tempo da sua impossibilidade.
[4] Andrei Rublev (1360/1370 — 1427/1430) é o maior pintor de ícones russo. Há pouca informação sobre sua vida. A primeira menção de Rublev foi em 1405, quando decorou os ícones e afrescos da Catedral da Anunciação no Kremlin em Moscou. Na arte de Rublev duas tradições se combinam: a mais alto ascetismo e a harmonia clássica das maneiras Bizantinas. As personagens em suas pinturas são sempre calmas e pacíficas. Em 1966, Andrei Tarkovsky dirigiu um filme sobre a vida de Andrei Rublev. O filme, intitulado Andrei Rublev, é protagonizado por Anatoliy Solonitsyn, numa representação epocal da Rússia da Idade Média.
[5] CIORAN, E.M., “Lipemania”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 120.
[6] “Um cego, por uma vez verdadeiro, estendia a mão: na sua atitude, na sua rigidez, havia qualquer coisa que vos prendia, que vos cortava o coração. Ele passava-vos a cegueira dele.” CIORAN, E.M., Do inconveniente de ter nascido, p. 52.
[7] CIORAN, E.M., “Sur la maladie”, La chute dans le temps, in Œuvres. Paris : Gallimard, 1995, p. 1126.
[8] CIORAN, E.M., Paléontologie, Le mauvais démiurge, Op. cit., p. 1199.
[9] CIORAN, Emil, O livro das ilusões. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 193.
[10] Gregório Palamas (1296 -1359) foi um monge do Monte Athos, na Grécia, conhecido como o mais preeminente representante do hesicasmo cristão. É venerado como santo pela Igreja Ortodoxa. Alguns dos seus escritos integram a Filocalia, literalmente “Amor à beleza” (notadamente a beleza divina), de onde a famosa frase de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”. Trata-se da beleza espiritual infundida pelas energias incriadas de Deus, e não de uma qualquer beleza mundana, poética ou de qualquer outra natureza, profana em todo caso. A Filocalia é uma leitura essencial no conjunto da literatura cristã ortodoxa. O segundo domingo da Grande Quaresma, na tradição ortodoxa, é chamado Domingo de Gregório Palamas. https://pt.wikipedia.org/wiki/Greg%C3%B3rio_Palamas
[11] São Serafim de Sarov (1759–1833), nascido Prokhor Issidórovitch Mashnin, foi um monge e taumaturgo ortodoxo, um stárets e um dos santos mais venerados da Igreja Ortodoxa Russa. Foi glorificado pela Igreja Ortodoxa em 1903, e, apesar de não ter sido canonizado pelo Vaticano, é popularmente venerado pelas Igrejas Católicas Orientais, de tal modo que o Papa João Paulo II referiu-se a ele como santo. As suas relíquias estão depositadas no Convento Diveiévski, próximo de Sarov, Níjni Novgorod. https://pt.wikipedia.org/wiki/Serafim_de_Sarov
[12] Jan van Ruysbroek (1293/1294- 1381), que carrega o epíteto de Doctor Divinus Ecstaticus, foi um dos mais importantes místicos flamengos, de tradição agostiniana. Algumas de suas principais obras incluem O Reino dos Amantes Divinos, As Doze Beguinas, As Esposas Espirituais, Um Espelho da Bem-Aventurança Eterna, O Pequeno Livro da Iluminação e A Pedra Cintilante. Algumas de suas cartas também sobreviveram até nós, além de vários dísticos breves. Ele escreveu em língua vernácula holandesa, não em latim, a língua da liturgia da Igreja Católica e dos textos oficiais, a fim de atingir um público mais amplo. https://en.wikipedia.org/wiki/John_of_Ruusbroec
[13] “Eliade me contou que seu professor de filosofia, Dasgupta, que escreveu a maior história da filosofia hindu em inglês, disse a ele: ‘O maior pensador ocidental é Meister Eckhart’. Citei-o recentemente para um filósofo alemão e ele riu, achando aquilo isso completamente ; mas é verdade. Pode-se dizer que Meister Eckhart é o pensador mais profundo que surgiu no Ocidente. Não é um exagero, uma aberração. Mas o tipo de pensador como Meister Eckhart, acho que é um caso único. E ele foi também um enorme escritor. Eu concordo com Dasgupta. Meister Eckhart é realmente um pensador que poderia ter nascido na Índia.” CIORAN, E.M., Entretien avec Léo Gillet, Entretiens. Paris: Gallimard, p. 80.