Filosofia da Animalidade, Vitalismo e Mortalismo, Cioran na Argentina e o “Nada Sulamericano”: em diálogo com Gustavo Romero (Argentina)

A terceira live tertúlia de 2021, realizada em 28 de maio e transmitida no YouTube, contou com a presença de Gustavo Romero, filósofo e professor da Universidad de Buenos Aires (UBA)

Além dos comentários contextuais e metateóricos acerca da recepção da obra de Cioran na Argentina, dentro e fora da Academia, Gustavo teceu importantes considerações acerca da obra e do pensamento de Cioran pela perspectiva de uma filosofia da animalidade (área de concentração do curso de filosofia da UBA do qual faz parte), em diálogo com filósofos franceses e contemporâneos de Cioran, como Michel Foucault e Gilles Deleuze, objetos dos estudos de pós-graduação de Gustavo Romero.

Quando o homem se esquece de que é mortal, sente-se tentado a fazer grandes coisas e por vezes consegue-o. Esse esquecimento, fruto da desmesura, é simultaneamente a causa das suas infelicidades.
«Mortal, pensa enquanto mortal». A Antiguidade inventou a modéstia trágica.

Do inconveniente de ter nascido (1973)

Parece mais viável e mais fecundo, pensa Romero, fazer dialogar Cioran com Foucault do que com Deleuze. A afinidade entre eles se exprimiria em termos de uma ontologia negativa e de um mortalismo que seria a antítese, o oposto negativo, do vitalismo. Na prática, significa que não é vida que detém o protagonismo e a palavra final, sendo a morte uma instância não separada da (e não paralela à) vida (encontrando-se apenas ao fim da duração de uma existência), mas uma realidade fundamental e atual que atravessa todo o ser, a existência, a experiência do ser vivente, ainda mais no caso do ser autoconsciente. É a imanência da morte na vida, esse “demonismo vital” (Cioran) que faz da vida um presente envenenado, uma caixa de Pandora, um milagre natimorto, uma “exuberância corruptora” neste mundo em que “só a impureza é sinal de realidade” (Breviário).

É porque ela não repousa sobre nada, porque carece até mesmo da sombra de um argumento que perseveramos na vida. A morte é demasiado exata; todas as razões encontram-se de seu lado. […] De tanto acumular mistérios nulos e monopolizar o sem-sentido, a vida inspira mais pavor do que a morte: é ela a grande Desconhecida.

“Variações sobre a morte (I)”, Breviário de decomposição

Os estudos de Gustavo Romero sobre Foucault se concentram sobre a questão das diferentes concepções e representações da vida enquanto tal ao longo da história. Uma questão, portanto, de genealogia — outro ponto de contacto, guardadas as diferenças, entre o autor de Vigiar e punir e Cioran. Enquanto há em Deleuze uma ontologia positiva, e portanto um otimismo vitalista (talvez herança de Bergson), em Foucault há — e nisto ele se aproximaria mais de Cioran — uma ontologia negativa, um mortalismo: o homem é demasiado mortal, não morre uma única vez senão que vive morrendo, pensando na morte o tempo todo, antecipando-a sem cessar, de modo que a cultura e a civilização seriam mecanismos simbólicos para domesticar, conjurar, aplacar o império da morte na economia da existência humana. Ademais, cumpre assinalar o profundo interesse de Cioran e de Foucault, manifestado em seus respectivos textos, à sua maneira, pelo cinismo antigo e pela figura de Diógenes, de onde temas éticos-filosóficos, de matriz cínica, como a parrhesía e o cuidado de si (que, no caso de Cioran, mais parece um descuidado ,uma incúria de si). Na interpretação de Gustavo Romero, a leitura que ambos fazem dos Cínicos é fundamentalmente a mesma.

Se para Foucault o que mais importa é pensar a vida e problematizá-la de um ponto de vista histórico-político, para Cioran o mais importante seria, poder-se-ia dizer, não a dimensão histórica e sociopolítica da vida, mas esse fundo vital indeterminado e, em certo sentido (paradoxalmente), sem fundo (grundlos, e por isso alogos, irracional, não-racional), no fundo da alma, acessível apenas pela intuição subjetiva, pela contemplação noética (pela experiência interior, em todo caso), e não pela razão conceitual e discursiva (dianoética). Neste sentido, Cioran, como Nietzsche, parece determinado a rechaçar toda teorização e conceitualização, de todas as coisas e da vida em primeiro lugar, permanecendo, por uma vontade trágica de indeterminação pré-filosófica, num estágio original e cruel da vida e da experiência humana.

A respeito de Nietzsche, Gustavo compartilhou algumas intuições auspiciosas, em termos propedêuticos, em resposta à pergunta feita por um dos participantes acerca da influência do filósofo alemão sobre Cioran. Na contramão das leituras convencionais e equivalentes por simples oposição, segundo as quais Cioran seria “nietzschiano” ou “anti-nietzschiano”, reduzindo-o a um discípulo, especialista ou epígono de Nietzsche, Romero propõe abordar a influência de um sobre o outro, de modo a dar conta do seu caráter dinâmico e mutante, ao longo do tempo, em termos de um pêndulo que oscilaria entre atração e rejeição, elogio e crítica, aproximação e distanciamento, cumplicidade e ruptura, identidade e diferença. É uma leitura sensível às flutuações e aos câmbios na maneira como Cioran se refere e apresenta Nietzsche em seus escritos, com o mérito de evitar interpretações estanques e paralisantes, fazendo justiça ao caráter antilógico e polemista (de pólemos, combate, guerra, conflito) do pensamento cioraniano, sempre determinado a combater energicamente esta ou aquela certeza, esta ou aquela opinião dogmática. Inclusive contra o Cético, indiferente e impassível, do alto da sua ataraxia, vemos Cioran evocar a figura de Jó, arruínado e assolado pela doença, como evidência da “positividade” do sofrimento, e particularmente do sofrimento inocente e injustificado, contra toda epokhé (suspensão do juízo). Entretanto, como a maioria das pessoas está longe de ser cética, o ceticismo é a posição mais frequentemente adotada por aquele cuja obra, segundo Sloterdijk, “pode ser considerada como um conjunto de exercícios, a meio caminho entre ginástica e ascese, experimentando todas as posições do homem sem posição”.

A história das ideias, como a dos fatos, desenrola-se em um clima insensato: quem poderia, de boa-fé, encontrar um árbitro que conciliasse os litígios desses gorilas anêmicos ou sanguinários? Este mundo é o lugar onde se pode afirmar tudo com igual verossimilhança: axiomas e delírios são intercambiáveis; ímpetos e desfalecimentos se confundem; elevações e baixezas participam de um mesmo movimento. Indique-me um só caso em defesa do qual não se pudesse encontrar nada. Os advogados do inferno não têm menos títulos de verdade que os do céu, e eu defenderia a causa do sábio e a do louco com igual fervor.

“Rostos da decadência”, Breviário de decomposição

Dois erros e dois despropósitos muito comuns, aliás, entre leitores e críticos de Cioran: reduzi-lo a um “pós-nietzschiano” ou vê-lo como um autor perfeitamente alheio a Nietzsche, negando assim toda relação histórico-filosófica, todo paralelismo, cumplicidade, entre Cioran e Nietzsche, o que neste caso equivaleria a subestimar o acontecimento-Nietzsche, idealizando, ao mesmo tempo, a figura do seu sucessor romeno (seguindo a sua própria sugestão) como um autor atemporal, situado fora da História (absolutizando e literalizando a metáfora do “exílio metafísico”), sem nenhuma participação no transcurso dos séculos, nenhuma dívida com o passado, nenhuma conexão com os agentes e acontecimentos que a conformam.

Assim como não teria existido Nietzsche sem Schopenhauer, no horizonte da cultura filosófica alemã dos últimos séculos, se pudermos ampliar este horizonte a um contexto europeu maior, compreendendo as periferias da Europa, pode-se dizer de modo igualmente justificado, filosoficamente falando, que não teria havido Cioran sem Nietzsche e Schopenhauer (entre outros). A propósito do viés cioraniano de leitura de Nietzsche, de um certo Nietzsche, observa Romero, é importante lembrar que Cioran não dispunha de uma edição crítica das obras completas, nem dos fragmentos póstumos, carecia, enfim, de todo um corpus de literatura crítica e exegética de Nietzsche graças ao qual o estado atual da produção de saberes sobre Nietzsche está muitíssimo mais avançado que há 50 anos atrás.

A julgar pelas diferentes abordagens hermenêuticas existentes, argumenta Romero, inclusive a recepção negativa — o rechaço — do Übermensch nietzschiano por parte de Cioran estaria profundamente enredada numa compreensão insatisfatória, pois incipiente, ou ainda numa desleitura proposital (a julgar pela teoria da angústia da influência de Harold Bloom), em todo caso, numa interpretação idiossincrática que está longe de ser a única, ou a mais convincente, pressupondo uma certa leitura do Übermensch em virtude da qual ele não poderá, no século XX, senão ser negado por um Cioran desiludido de todas as utopias — inclusive esta, interpretada em chave antropológica. Mas não se pode ignorar, assevera Romero, que há, hoje, muitas outras maneiras de interpretar e compreender a figura do Übermensch, mediante as quais o rechaço de Cioran poderia se reverter em aceitação e ele mesmo identificar-se com a figura, de um ponto de vista artístico, criador e criativo, por mais negativo, pessimista, niilista, que seja ou que se mostre. Dependendo de como se lê Cioran e de como se lê Nietzsche, duas variáveis fora de controle, pode-se descobrir mais conexões, cumplicidades e afinidades do que se poderia supor à primeira vista, ou a julgar pela interpretação preguiçosa e apressada segundo a qual Cioran seria (ao menos a partir do Précis de décomposition) um pensador anti-nietzschiano tout court, tendo sido outrora um discípulo apaixonado e violento, mas não muito fiel.

Se os círculos hermenêuticos se ampliam concentricamente com o passar do tempo, o mesmo se poderá afirmar acerca de Cioran: a riqueza da fortuna crítica acerca da sua obra, francesa e romena, e da sua vida, com a publicação de entrevistas e cartas, dos Cahiers e de novos e novos estudos críticos, acadêmicos ou não, é muito maior, hoje, do que há 50 anos, quando Savater estava para fazer a sua tese de doutorado sobre Cioran, na Espanha, e traduzir pela primeira vez alguns dos seus livros ao espanhol. Não apenas isso, como, a julgar por Schleiermacher, estaríamos igualmente avançados em relação ao próprio Cioran, hermeneuticamente falando, numa posição de vantagem sobre ele em se tratando de compreendê-lo. Pois o objetivo da hermenêutica é “compreender o que é dito inicialmente tão bem quanto o seu autor, e depois melhor do que ele”, pois, já que “não temos dele nenhum conhecimento imediato, é preciso tentar trazer à consciência tanto quanto possa nele permanecer inconsciente, exceto à medida que ele mesmo se torna o seu próprio leitor. Do lado objetivo, ele não possui nenhuma informação a mais do que nós” (Andrew Bowie, “The philosophical relevance of Schleiermacher’s hermeneutics”, in Hermeneutics and Criticism and Other Writings: The Cambridge Companion to Friedrich Schleiermacher, p. 86).

Ainda sobre a incerta relação Nietzsche-Cioran (também o tema da próxima live tertúlia, com Kerstin Borchhardt), e tendo em mente a imagem do pêndulo proposta para compreender as flutuações temperamentais de Cioran em relação ao predecessor filosófico alemão, vale destacar a seguinte consideração de Gustavo Romero: Há, da parte de Cioran, uma tensão erótica fortíssima, tão explosiva quanto fecunda, em relação a Nietzsche. É fundamental preservar, enquanto leitor e intérprete, a consciência desta tensão para evitar os dois extremos perigosos do mesmo movimento pendular: por um lado, o fanatismo tematizado logo nas primeiras páginas do Breviário; por outro, a lucidez absoluta, se é que é humanamente possível, o que conduziria à aniquilação, ao suicídio ou à loucura. Quanto ao fanatismo, não se deve compreendê-lo unicamente no sentido estritamente religioso e/ou político, mas também no sentido da inclinação (autoritária, totalitária) a oficializar uma interpretação particular como sendo a única, a verdade absoluta e universal acerca do que quer que seja. Esse fanatismo em germe é o ingrediente básico do dogmatismo natural que Cioran acusa no homem, dos níveis mais brandos aos mais virulentos, da tendência humana a tomar partido de toda espécie e a aderir às mais diversas ficções e facções, assumidas como verdades e autoridades absolutas, da necessidade “demasiado humana” de crer em quimeras, fantasmas e ídolos, a começar pelos deuses, mas também no “progresso” da “humanidade” — causa, enfim, da inaptidão do homem à santa indiferença que Cioran reconhece na figura do Sábio.


Filosofia da Animalidade. É uma disciplina curricular do curso de Filosofia da Universidad de Buenos Aires, concebida pela professora Monica B. Cragnolini (bastante citada, ao longo da tertúlia, por Gustavo Romero), que possui uma extensa produção filosófica concentrada nesta temática. Fundamentalmente, os estudos da animalidade pressupõem todo um movimento do pensamento filosófico contemporâneo, há algumas décadas, no sentido de reformular e atualizar, criticamente, a concepção do homem, do humano e de humanismo, em grande medida teológica e teleológica, construída pelo pensamento ocidental ao longo da história.

Não basta criticar o conceito de “natureza” humana per se, no fundo tão metafísico (essencialista), quando o que mais importa, o que está efetivamente em jogo são as suas implicações práticas, as suas concreções políticas, culturais e sociais. Neste ponto, a antropologia negativa de Cioran, as suas reflexões antropológicas oferecem um poderoso repositório de pensamento crítico acerca da condição humana desnuda, despida dos acidentes temporais e das modas epocais, despida sobretudo das ficções que desviam o indivíduo da sua interioridade, escamoteando o nada que o habita, fazendo-o substituir a consciência trágica do destino mortal que o aguarda pela ilusão de viver indefinidamente, uma vida sem fim, num eterno presente cadavérico, suspenso numa temporalidade tão estéril quanto estagnada, um “tempo morto” (Cioran) em que nada dura, nada subsiste, nada tem consistência, cor ou sabor, tudo se desmancha no ar, sem verdadeira presença, atualidade e vigor, sem presente, passado e futuro…

Cioran é um filósofo a ser levado muito a sério quando se trata de pensar lucidamente, sem ilusões e fantasias, sem nobres pretextos religiosos ou humanistas, o homem e a condição humana. Há, em seus textos, dispersa em meio à sua “obra” fragmentária e descontínua, assistemática, inacabada e inacabável, toda uma antropologia negativa que dialoga de maneira coerente e frutífera, por exemplo, com Lévi-Strauss. Não é por acaso que Cioran caia como uma luva para os estudos filosóficos da animalidade. Sobretudo no que concerne à crítica ao preconceito atávico (crença) da superioridade (e da diferença ontológica, qualitativa, essencial) do ser humano sobre os demais seres, como se fosse todo especial, detentor de privilégios e prerrogativas por ser dotado do poder da razão, de uma “alma” racional.

Trata-se da milenar questão do especismo, no contexto do Ocidente, herdado em grande medida da tradição bíblica (judaico-cristã) com esse mito do Gênese que era tão caro a Cioran — tanto que se dispôs a reinterpretá-lo em La chute dans le temps (1964), em que se conclui que a serpente levou a melhor por entender mais de psicologia do que o dono do lugar. Especismo que não se encontra, por sinal, conforme assinala John Gray, nas grandes tradições religiosas e/ou espirituais do Oriente, como o taoísmo e o budismo. O mesmo John Gray, aliás, cita Cioran, em seu Cachorros de palha, numa reflexão mortalista acerca da “busca pela mortalidade“, em diálogo com o budismo. Cioran tinha plena consciência da assimetria, entre Oriente e Ocidente, em matéria de mentalidade especista, e muitas das suas críticas ao antropocentrismo ocidental vêm acompanhadas de referências a tal ou tal ensinamento budista ou hinduísta.


Vitalismo e mortalismo. O vitalismo é uma corrente filosófica metafísica que identifica na vida enquanto tal o princípio regulador e ordenador do real, sendo ela, e não a razão, com suas categorias alheias ao vital, o critério de compreensão do real. É uma escola filosófica que se desenvolveu especialmente na Alemanha. A formação filosófica de Cioran, nos seus anos romenos, esteve em grande medida determinada pela influência da cultura alemã sobre os jovens intelectuais daquele período. Dir-se-ia que a Romênia teve o seu próprio “vitalismo”, fabricado localmente pelo grande professor da jovem geração de Cioran, Nae Ionescu, e do qual Ciora seria um representante proeminente: o assim-chamado trăirism, de trăire, “vida”, mas também “vivência”, “experiência” (do verbo a trăi, “viver”, “vivenciar”, “experienciar”), seria uma espécie de vitalismo filosófico romeno e, ao mesmo tempo, um existencialismo de matizes balcânicos.

Na visão de Romero, o pensamento de Cioran corresponderia antes a um mortalismo que a um vitalismo, na acepção original deste último. Enquanto o vitalismo é bem ilustrado pela ideia bergsoniana de uma evolução criadora sumamente positiva e infalível, de um elã vital que consiste numa plena positividade vivente e imanente, sem fissuras nem rupturas por onde possam infiltrar-se o nada, o vazio, o mortalismo argumenta, por sua vez, que essa pura positividade vital não é bem assim, estando no fundo atravessada de negatividade, permeada de tragicidade, animada de uma inesgotável pulsão de morte e destruição, mais ou menos no sentido do comentário de uma personagem, psicóloga, em Aniquilação (2018), dialogando com a protagonista do filme, Lena (interpretada por Natalie Portman): “Você confunde suicídio com autodestruição”, diz a psicóloga; “quase nenhum de nós comete suicídio. A maioria se autodestrói. De alguma maneira, em alguma parte de nossas vidas… A autodestruição não está codificada em nós? Programada em cada célula?”

Fica a questão de saber se o mortalismo é uma filosofia autônoma, uma corrente paralela ao vitalismo e independente dele, tendo existido desde sempre ou ao menos tão longeva, ou se é um fenômeno posterior, uma variação, uma derivação, uma inversão a posteriori: um vitalismo negativo. Seja como for, o que nos vincula ao resto dos viventes e nos torna plenamente humanos, pela perspectiva mortalista, não é uma suposta dádiva ou milagre da vida, o fato contingente de vir a ser, a vontade de potência ou simplesmente de vida, de viver e perpetuar-se, mas antes a negatividade da condição humana em toda sua finitude, na necessidade do seu ser-para-a-morte e no drama de uma consciência reflexiva dotada de um conhecimento que lhe é humanamente insuportável. Ou ainda, nas palavras de Clément Rosset:

Dir-se-ia que um programador divino e universal, a menos que se trate apenas do acaso das coisas como sugere Epicuro, cometeu aqui um erro de base, endereçando uma informação confidencial a um terminal incapaz de recebê-la, de dominá-la e de integrá-la a seu próprio programa: revelando ao homem uma verdade que ele é incapaz de admitir, mas também, e infelizmente, muito capaz de
entender.

Cl. ROSSET, O princípio de crueldade

Outra boa pergunta vinda do público é se a estilística de Cioran pode ser vista como uma forma de sublimação da visão negativa que ele mesmo sustentava a respeito da existência. Evocou-se aqui a figura de Wilhelm Worringer, autor de Abstração e empatia (1907), um dos muitos autores alemães lidos pelo jovem Cioran, a respeito da importância vital da faculdade de abstração, na filosofia, nas artes e na vida em geral, no intuito de construir-se isso que Gustavo Romero, remetendo a Peter Sloterdijk, chama de “bolhas” protetoras e reguladoras. Segundo Paolo Vanini, “o pensador romeno é fortemente fascinado pelas reflexões de Worringer, na qual a questão estética encontra-se imprescindivelmente ligada à inquietude metafísica e melancólica frente ao absoluto” (Cioran e l’utopia, prospettive del grotesco, Mimesis, 2018, p. 77). Um exemplo dessa improvável empatia pela abstração enquanto tal se encontra em Razne, um dos últimos textos de Cioran escritos ainda em romeno, já vivendo em Paris, pouco antes de adotar o francês como língua de escrita, prefigurando o Précis de décomposition (e particularmente o texto intitulado “O veneno abstrato“):

O dia em que não formulei algumas definições, se evaporou sem remédio. Sem elas, não temos nenhum meio para contradizer o nosso nada. Quando milhares delas forem encontradas para a morte, me parecerá que não é mais importante morrer.
A sabedoria é o último cansaço ao qual nos conduz o exercício das definições.

“Pensamentos extraviados” (seleção de aforismos de Razne), in: (n.t.) Revista Literária em Tradução, ano IX, vol. 2, dezembro de 2019

“O Nada Sulamericano”: Cioran e a Argentina

Sobre os intercâmbios entre Cioran e a Argentina, é inevitável evocar de imediato as figuras de Jorge Luis Borges e Ernesto Sábato. O primeiro, por ter sido o objeto de um retrato escrito por Cioran, a pedido de Fernando Savater, e incluído em Exercícios de admiração; o segundo, por ter conhecido Cioran pessoalmente e dedicado a ele uma das memórias na sua autobiografía, Antes del fín, na qual Sábato narra o encontro com o amigo romeno, em Paris.

Além de Borges e Sábato, também foram evocadas algumas importantes amizades que estreitam os vínculos afetivos de Cioran com a Argentina: em primeiro lugar, Jeannine Worms (1923-2006), dramaturga e escritora nascida em Buenos Aires, de pais franceses, muito embora tenha crescido e vivido, até a sua morte, em Paris; e, mais recentemente, Alina Diaconú, escritora e poeta romena, naturalizada argentina, que também teve a oportunidade de conhecer Cioran em Paris, em meados da década de 1980, tornando-se a partir de então uma amiga e correspondente na América do Sul.

Diaconú conta que, numa de suas visitas, Cioran lhe disse: “Na minha opinião, não é a América do Norte, mas a América do Sul e os países da Europa do Leste que suplantarão o Ocidente. Esses países têm algo pelo que lutar.” Segundo ela, o seu compatriota expatriado em Paris “tinha uma verdadeira fascinação pela Argentina, pelo tango (e sua melancolia) e por escritores como Borges, Porchia, Juarroz e Alejandra Pizarnik.” (La Nación, 01/11/2018) Na visão de Gustavo Romero, a história do povo romeno tem muito em comum com a do argentino, o mesmo podendo-se dizer também de outros países sulamericanos (se não de todos).

A propósito, vale evocar uma carta de Cioran ao seu amigo e tradutor brasileiro, José Thomaz Brum, datada de 19 de agosto de 1990, na qual o autor dos Silogismos da amargura afirma que “há indubitavelmente, afinidades entre nossos dois povos, nem que seja por um gênero de fracasso no qual eles se destacam e que lhes confere uma originalidade inteiramente especial.” (Caderno Mais!, Folha de S. Paulo, 2 de julho de 1995)

Há de se ter em mente o paradoxo constitutivo do pensamento cioraniano, sempre ambivalente e aporético. O fracasso aparece, então, não como o signo de uma simples e inequívoca condição de derrota, inferioridade, humilhação, mas como a marca de uma situação privilegiada do ponto de vista da criatividade do espírito, cuja tendência é objetivar-se em formas sempre novas de vida e organização social. As periferias do mundo possuem, sobre as grandes potências mundiais, a Europa ou os Estados Unidos, a vantagem de ter ainda muito chão pela frente, toda uma história a construir… Ademais, não se podem dar o luxo do provincianismo que, segundo Cioran, afeta grande parte das culturas europeia e norte-americana, voltadas exclusivamente para si mesmas, cegas para tudo o que se produz fora delas.

Escreve Cioran a propósito de Borges, “o último delicado”:

Nunca fui atraído por espíritos confinados numa única forma de cultura. Não se enraizar, não pertencer a nenhuma comunidade – essa foi e é minha divisa. Voltado para outros horizontes, sempre procurei saber o que se passava alhures. Aos 20 anos, os Bálcãs não podiam me oferecer mais nada. É o drama, e a vantagem também, de ter nascido num espaço “cultural” menor, qualquer que seja ele. O estrangeiro se tornara meu deus. Daí essa sede de peregrinar através das literaturas e das filosofias, de devorá-las com ardor doentio. O que acontece no leste da Europa deve necessariamente acontecer nos países da América Latina e observei que seus representantes são infinitamente mais informados, mais “cultos” que os Ocidentais, incuravelmente provincianos. Nem na França ou na Inglaterra vi alguém que tivesse uma curiosidade comparável à de Borges, uma curiosidade exacerbada até a mania, até o vício, digo realmente vício porque, em matéria de arte e de reflexão, tudo o que não se transforma em entusiasmo um pouco perverso é superficial, logo irreal.

Gustavo Romero contextualiza o ensaio sobre Borges no qual Cioran se refere à Argentina como um “Nada sulamericano”. Tratava-se, originalmente, de uma carta destinada a Fernando Savater, que lhe havia pedido que escrevesse algo para um livro em homenagem a Borges. Aí, nesta carta-ensaio, encontra-se o mesmo tipo de reproche, típico de Cioran, feito também a Samuel Beckett (nos Cahiers):

Para que festejá-lo quando as próprias universidades o fazem? O azar de ser reconhecido se abateu sobre ele. Merecia coisa melhor. Merecia permanecer na sombra, no imperceptível, tão inapreensível e impopular quanto a nuança. Aí estava em casa. A consagração é a pior das punições – para um escritor em geral e sobretudo para um escritor de sua espécie. A partir do momento em que todos o citam, não se pode mais citá-lo ou, se o fazemos, temos a impressão de vir engrossar a legião de seus “admiradores”, de seus inimigos. Aqueles que desejam lhe fazer justiça a qualquer preço só fazem, na realidade, precipitar sua queda.

Segundo a constatação melancólica de Paul Valéry, o mortalismo elevou-se, no século XX, ao nível das grandes culturas e civilizações: “O predicado da ‘mortalidade’ não compete mais apenas a Sócrates e seus iguais. Ela abandona o exercício silogístico e inunda um continente que não contém a sua guerra”, e agora, acrescenta Peter Sloterdijk, “o reconhecimento da possibilidade de ruína das civilizações não dizia respeito a mundos distantes como Nínive, Babilônia, Cartago. Tratava de grandezas que as pessoas acreditavam conhecer de perto: França Inglaterra, Rússia… até ontem, estes ainda eram nomes cativantes.” (SLOTERDIJK, Pós-Deus, 2019, p. 8) O nosso “Nada sulamericano” (sic) ainda desfruta do privilégio de iludir-se em relação à sua mortalidade — ainda não a levou às suas últimas consequências, ainda não se agitou até o esgotamento.

Assim como um “não-homem” representa mais, segundo Cioran, em termos de possibilidades, do que o homem tal e qual, uma vez que a “o experimento-homem fracassou”, como se lê em um de seus mais belos livros romenos, Amurgul gândurilor1 (“O crepúsculo dos pensamentos”, inédito em português), se transpusermos essa intuição antropológica negativa para o âmbito das culturas, das nações e das civilizações, poder-se-ia dizer, analogamente, que o nada de emancipação, de soberania, de identidade e de unidade nacional, essa negatividade complexa, latente ou manifesta, que caracteriza em grande medida a realidade dos povos sulamericanos, pressupõe um excedente de vitalidade e um desafio no porvir. São potências em desenvolvimento, dotadas da trágica fecundidade espiritual, em escala continental. É o desafio daqueles que não podem repousar ou entediar-se no conforto ou na monotonia de um Ser que é e não pode deixar de ser, o desafio desse nosso fecundo “Nada sulamericano” em pleno devir…


1 “O experimento homem fracassou. Encontra-se em um beco sem saída, enquanto que um não‑homem é mais: uma possibilidade.
Olha fixamente nos olhos de um «semelhante»: que te leva a crer que não podes esperar mais nada? Todo homem é muito pouco…” CIORAN, Emil, Amurgul gândurilor [Crepúscule des pensées], 1940, in Oeuvres. Paris: Gallimard, 1995. Trad. do francês de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes.


SÁ MENEZES, R. I. R., “Filosofia da animalidade, vitalismo e mortalismo, Cioran na Argentina e o ‘Nada Sulamericano’: em diálogo com Gustavo Romero”, Portal E.M. Cioran Brasil, 31/05/2021.

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