Portal E.M. Cioran Brasil, 7 de junho de 2021[1]

Kerstin BORCHHARDT é filósofa e historiadora da arte, doutora em História da Arte pela Universidade Friedrich-Schiller, em Iena, onde obteve bolsas de estudo de importantes instituições como Studienstiftung des deutschen Volkes, Gerda Henkel Stiftung e Fritz Thyssen Stiftung. Lecionou na Universidade de Erfurt de 2013 a 2014. De 2014 a 2019, trabalhou como assistente de pesquisa no Instituto de História da Arte da Universidade de Leipzig. Em 2019, fez uma estadia de pesquisa na Cidade do México, onde participou do Encuentro Internacional Cioran: entre Filosofía y Literatura, apresentando uma conferência sobre a assimilação da filosofia de Nietzsche por Emil Cioran.
Tem colaborado com inúmeros projetos artísticos e científicos.
É autora de diversas publicações, dentre as quais Böcklins Bestiarium: Mischwesen in der modernen Malerei (Berlin, Reimer, 2017), Germinal Monsters and New Kinships in Contemporary Art (in: ARKEN Bulletin, vol. 8, edição especial, From a Grain of Dust to the Cosmos), Rethinking Positions of the Human Through Art, editado por Anne Kølbæk Iversen e Gry Hedin (ARKEN Museum of Modern Art, Ishøj, Denmark, 2020) e From Mental Experiments to Material Presence: Expanded Ecotopias Between Nature, Science and Spirituality, Contemporary Art (2020). Entre suas publicações mais recentes encontra-se um artigo importante sobre as conexões histórico-filosóficas entre Cioran e Nietzsche: “On the Power of Frustration: Cioran’s Nietzsche reception in his Syllogisms of Bitterness” (Anale Seria Drept, Universitatea “Tibiscus” din Timișoara, 2020) . Atualmente, Kerstin Borchhardt leciona na Universität Siegen, na Alemanha.
Em 12 de junho de 2021, às 14:00 (Bra), o Portal E.M. Cioran Brasil receberá a profa. Kerstin Borchhardt para uma live tertúlia sobre os temas suscitados na entrevista. Serão levantadas outras questões, diferentes das perguntas feitas na entrevista escrita.
Rodrigo Menezes: Prezada Kerstin, primeiramente quero agradecer a gentileza de nos conceder esta entrevista. Minhas primeiras perguntas seriam, por curiosidade: quando você leu Cioran pela primeira vez, e que livro foi ? Foi uma tradução alemã? O que suscitou o seu interesse, e como foi impactada pelos escritos de Cioran?
Kerstin Borchhardt: Prezado Rodrigo, obrigada pelo convite para participar da plataforma e da comunidade cioraniana que a acompanha. Fazer este intercâmbio entre Brasil e Alemanha, em torno de Cioran, é um imenso prazer para mim. Uma vez que venho dos estudos de arte clássica e cultura visual, com foco em suas interseções com a filosofia e as ciências naturais, minha perspectiva e pensamentos sobre Cioran podem diferir da dos estudiosos da filosofia. De qualquer forma, gostaria de compartilhar com vocês minha “história” com Cioran, e o que ele significa para mim, na minha pesquisa.
Um dos primeiros livros que li (em língua inglesa) foi Silogismos da amargura, em 2013 (e li a edição alemã, de 1980, vários anos depois). Para além da argumentação filosófica acadêmica clássica, me fascinam as formas linguísticas alternativas, como os aforismos de Nietzsche e os silogismos de Cioran, e isso porque, por um lado, eles proporcionam um discurso mais metafórico e poderoso, e, por outro, por serem formas que exigem um argumento muito direto e claro.
Do meu ponto de vista, o pessimismo de Cioran oferece uma das críticas mais profundas dos vários pilares otimistas do progresso da história ocidental, desde os tempos da Grécia Antiga, em termos de condição humana, história, evolução cultural, impulso criativo, heroísmo e moral humanística, e que muitas vezes foram tidos como certos, sem ser questionados, como valores positivos no mainstream filosófico ocidental até o século XIX. No entanto, além de todas as suas qualidades inquestionáveis para o desenvolvimento cultural e tecnológico, esses valores também forneceram as pedras angulares [cornerstones] de uma História que gira em círculos, numa sucessão de guerras, massacres e extinção em massa, culminando na Segunda Guerra Mundial, durante a vida de Cioran. No rescaldo desta guerra, uma crítica essencial das pedras angulares filosóficas da História Ocidental torna-se ainda mais crucial para a filosofia crítica contemporânea, do pós-modernismo (Derrida, Horkheimer, Jameson) ao pós-humanismo (Donna Haraway,[2] Rosi Braidotti,[3] Kathrin Hayles[4]) , que também são importantes para os meus estudos atuais, que giram em torno da relação ambígua entre arte contemporânea, tecnologia e filosofia pós-moderna das redes (Haraway, Anna Tsing,[5] Bruno Latour,[6] Timothy Morton[7]), no contexto das crises sociais e ecológicas decorrentes do Antropoceno.[8]
RM: Você fez seus estudos de pós-graduação sobre Cioran? Em caso afirmativo, quais foram os temas gerais de sua pesquisa, a metodologia, os objetivos teóricos e hermenêuticos? Aliás, poderia falar um pouco da inserção de Cioran como objeto de estudos nas universidades alemãs? Seus textos, suas ideias, são amplamente estudados e debatidos na Alemanha, hoje?
KB: Difícil dizer. Na Alemanha, cada universidade é um pequeno universo em si mesmo, com áreas de pesquisa diferentes – especialmente no caso de uma área tão ampla como a Filosofia. Não conheço nenhuma instituição ou acadêmico [scholar] alemão na Filosofia que se concentre especialmente em Cioran. Então, diria que Cioran é meio que uma “dica secreta”[9] no âmbito da filosofia acadêmica alemã. Durante os meus estudos de mestrado, na Friedrich-Schiller-Universität, em Iena, quando me especializei em Filosofia, não tive nenhum curso sobre Cioran. Não poderia dizer muito sobre a sua recepção em outras universidades, mas sei que há uma dissertação,[10] de Diana Lohwasser, sobre o problema da existência nas obras de Camus, Cioran e Lévinas, pela Universidade de Colônia (2015), provando que Cioran ainda se faz presente no mundo acadêmico alemão. Em todo caso, como já mencionei, não foi antes do meu doutorado, em 2013, que, estudando a recepção de Nietzsche no século XX, eu encontrei Cioran.
RM: Todos os livros de Cioran – franceses e romenos – estão traduzidos e publicados em alemão? Existem outros tradutores além de Paul Celan[11]? Aliás, poderia nos contar um pouco sobre a recepção (crítica) alemã da obra de Cioran, para além da Academia, sua penetração e ressonância nos mais variados segmentos da cultura alemã?
KB: Li principalmente as traduções inglesas, que estavam bastante disponíveis nas bibliotecas que eu frequentava. Portanto, não me sinto muito qualificada para dar uma opinião fundamentada sobre as traduções alemãs. Em geral, encontrei muito pouca literatura acadêmica sobre Cioran em alemão. Mas gosto [da biografia crítica] de Bernd Mattheus: Cioran: Porträt eines radikalen Skeptikers[12] (2007). E quanto aos estudos, li principalmente os de língua inglesa, como Styles of Radical Will,[13] de Susan Sontag (1975), e o estudo comparativo de Willis G. Regier entre Cioran e Nietzsche.[14] Mas Cioran parece ter se tornado cada vez mais conhecido, nos últimos tempos, graças a publicações populares e suplementos de jornais e revistas na Alemanha. Por exemplo, durante os últimos anos, foram publicados vários artigos no Deutschlandfunk Kultur, um dos mais populares canais de notícias e cultura alemães, como “Ein Gedanke muss ätzen wie ein Gifttropfen” [Um pensamento deve queimar como uma gota de veneno], de Burkhard Reinartz.[15] De qualquer forma, devido ao antigo fascínio de Cioran pelo nacional-socialismo, em seus primeiros escritos, ele é um pensador altamente controverso.[16]
RM: A recepção crítica da obra de Cioran na Alemanha me interessa especialmente, uma vez que ele viveu perpetuamente assombrado pelo seu “passado infame”, para falar como Marta Petreu, marcado por um nietzscheanismo delirante, desesperado e fanático, quando se deixara seduzir pela sirena do populismo extremista da Guarda de Ferro, tornando-se um enfático admirador de Hitler e do fenômeno ascensional do nazismo na Alemanha (quando morava e estudava naquele país, em meados da década de 1930, graças a uma bolsa de estudos que lhe fora concedida pelo Instituto Humboldt). Por isso, o autor romeno é frequentemente comparado a Heidegger e outros intelectuais que, na primeira metade do século XX, se engajaram ou simpatizaram com ideologias e regimes totalitários. Há uma entrevista com Fritz J. Raddatz,[17] reunida no volume Entretiens, em que o entrevistador alemão meio que põe Cioran contra a parede, acusando-o de irresponsabilidade, senão de pura insanidade, questionando se as suas ideias, cínicas, niilistas, não estimulariam a indiferença ou a perversidade. Ele então compara Cioran a Gottfried Benn,[18] que seria também um autor “perigoso”, marcado por um “passado infame”. No caso do passado legionário de Cioran, como você acha que esse dado biográfico influencia a recepção crítica da obra de Cioran na Alemanha a partir da segunda metade do XX? Há outros críticos, como Fritz J. Raddatz, que condenam Cioran por razões éticos e/ou morais, acusando-o de criptofascismo ou coisa do tipo?
KB: Na Academia e no jornalismo alemães contemporâneos, a reavaliação e a reflexão crítico-histórica, especialmente em se tratando de fascismo, nacional-socialismo e a Segunda Guerra Mundial, são questões importantes, assim como uma perspectiva crítica sobre pensadores proeminentes e seus possíveis envolvimentos com esses movimentos. Isso não deve surpreender, uma vez que os massacradores bárbaros e vergonhosos causados pelos nazistas são amplamente considerados um ponto nevrálgico na história alemã recente, lançando suas sombras ainda nos tempos contemporâneos. Não obstante, penso que ainda é incorreto julgar figuras históricas do passado de maneira irrefletida, à luz do conhecimento e dos valores das sociedades contemporâneas. Muitas pessoas preferem olhar para trás, na História, em termos de preto ou branco, enfatizando uma concepção binária dos “malvados” e dos “ingênuos”, que seguiram ou se apaixonaram por ideais fascistas e que devem, portanto, ser criticados, e os “bonzinhos”, os “espertos”, que, estando contra aqueles, devem ser elogiados. Mas a história prova ser muito mais complexa. Assim, é muitas vezes chocante ver como as pessoas inteligentes, intelectuais, respeitadas e adoradas pelos estudiosos até hoje, como Heidegger, Benn, Cioran ou mesmo Gustav Mensching, o “filósofo da tolerância”,[19] foram simpatizantes de regimes totalitários, quando não chegaram até mesmo a cooperar com eles (pelo menos temporariamente), o que, mais tarde, muitos deles viriam a lamentar (ou pelo menos fingiram fazê-lo). A julgar pelo atual estado de conhecimento, uma admiração tão recorrente pelos regimes de terror certamente não pode ser ignorada, muito menos desculpada, mas como esses autores são peças importantes da História, moldando nossas formas de pensar até hoje, precisamos encontrar maneiras de lidar com eles. Isso torna a recepção crítica de sua vida e obra ainda mais necessária. Infelizmente, a tendência atual da “cultura do cancelamento”, praticada em diversos meios de comunicação, parece ser menos crítica, ou, pelo menos, muito menos autocrítica consigo mesma. Desse modo, muitas vezes me parece um pouco exagerado, e populista, cair nesse pensamento do preto e do branco que mencionei anteriormente. Não creio que qualquer autor possa ser ou não ser “perigoso” per se; em vez disso, são as ideias que podem se tornar perigosas (talvez a palavra “tóxicas” seja mais apropriada aqui), especialmente em virtude de como são recebidas. Por esta razão estou convencida de que uma recepção aprofundada e crítica de certas figuras históricas, sem idolatria, branqueamento [whitewashing],[20] condenação sobre os papeis que desempenharam em suas épocas e os que deveriam desempenhar hoje, mas tampouco ignorando o conteúdo do seu trabalho e da sua biografia, eis a melhor maneira de produzir formas consistentes de conhecimento histórico, lidando com o passado ambíguo e, quem sabe, aprendendo com os caminhos errados. Além disso, pela minha experiência, no que concerne à recepção de Cioran na Alemanha, na Academia, na imprensa e na literatura de divulgação científica, o elemento crítico é muito mais comum do que o mero “cancelamento”, que também se verifica em diversos artigos do Deutschlandfunk.
RM: Você acha razoável o juízo de alguns intérpretes, como Susan Sontag, segundo o qual Cioran é o mais proeminente continuador de Nietzsche no século XX (e nada mais)? Alguns chegam mesmo a dizer que Cioran não passaria de um êmulo de Nietzsche, reescrevendo em um estilo ligeiramente distinto sobre os mesmos temas. Ou talvez não seja uma questão “continuar”, de ser um “continuador” (um receptáculo passivo e submisso), mas antes uma questão de herança, Cioran herdeiro filosófico de Nietzsche?
KB: Acho que ele encontrou inspiração em muitas das ideias de Nietzsche. Uma das mais importantes é a do Pessimismo Cultural,[21] que é mencionado por Sontag. Embora eu realmente aprecie o seu texto, as análises que ela faz da relação de Cioran com Nietzsche deixam muito a desejar, por ignorar as diferentes concepções de pessimismo cultural. Para Nietzsche, a ideia de desenvolvimento e de superação do estado da cultura do século XIX, paupérrimo no seu ponto de vista, é um elemento importante sintetizado no conceito de Übermensch. Em contraste com essa concepção, para Cioran, o ressentimento, a resignação diante da impossibilidade de tal aperfeiçoamento, levam-no a rejeitar a ênfase na ideia de um desenvolvimento cultural futuro em direção a algo melhor, tornando-se mais proeminente em sua obra. Desse modo, Cioran aprofunda o pessimismo cultural de maneira ainda mais intransigente que Nietzsche, não apenas por identificar os sintomas da Décadence, mas também por empreender uma genealogia dos erros da moral cristã e da hipocrisia burguesa, concentrando-se na concepção altamente falha da condição humana.
RM: Parece-me que não há nada mais indeterminado, mais difícil de definir, que a posição geral de Cioran em relação a Nietzsche. Não há uma descrição única, no conjunto dos seus textos, que possa ser erigida como o Nietzsche definitivo segundo Cioran. Como o filósofo alemão, descrito em A tentação de existir (1956), penso que Cioran é, ele mesmo, “uma soma de atitudes” sem nenhuma vontade de ordem, nenhuma preocupação de unidade. Por outro lado, a interpretação de Cioran está longe de ser um consenso entre estudiosos e leitores de Nietzsche (poder-se-ia dizer que é um Nietzsche demasiado “cioraniano”). A julgar por Cioran, Nietzsche seria uma espécie de criatura mutante e titânica, uma metamorfose ambulante, um gigante temerário, uma heresia da Natureza; “das noch nicht festgestellte Tier, o animal cujo tipo ainda não foi determinado, fixado”,[22] conforme se lê em La chute dans le temps (1964), no texto inaugural, “L’arbre de vie”, em que Nietzsche é citado nominalmente e, o que é mais extraordinário, no original alemão! Penso que Nietzsche extrai essa definição do humano de sua própria existência; a partir da sua experiência subjetiva, da sua singularidade, enquanto existência individual, Nietzsche erige toda uma antropologia trágica. Cioran faz mais ou menos a mesma coisa; ambos seriam, assim, “fisiologistas”[23] cuja filosofia é inseparável de seus padecimentos de todo tipo. Cioran não costuma elogiar Nietzsche efusivamente, como em relação a outras figuras (o contrário seria mais bem verdade), mas parece às vezes referir-se a Nietzsche para sinalizar que ele mesmo se vê daquela forma como o retrata (afinidades eletivas), ou então para marcar a sua distância desejada em relação ao ídolo de juventude. Ambos se encaixam na definição do homem, formulada por Nietzsche, como das noch nicht festgestellte Tier.
Outro retrato do filósofo alemão, também no conjunto dos escritos franceses de Cioran, encontra-se em Silogismos da amargura (1952). Aliás, você escreveu um artigo, intitulado “Sobre o poder da frustração”, sobre a recepção de Nietzsche por parte de Cioran, tendo como ponto de partida este aforismo (relativamente longo, aliás). Aqui, também, podemos vislumbrar a imagem do próprio Cioran através da sua descrição de Nietzsche: “Espírito nômade, é um especialista em variar seus desequilíbrios. Sustentou sempre o pró e o contra de tudo: é o procedimento dos que se dedicam à especulação por não haver podido escrever tragédias ou dispersar-se em múltiplos destinos. O certo é que Nietzsche, expondo suas histerias, nos desembaraçou do pudor das nossas; suas misérias nos foram salutares. Ele inaugurou a era dos ‘complexos’.”[24]
KB: Acho que Cioran é tanto, ou tão pouco, um anti-Nietzsche, quanto Nietzsche é um anti-Schopenhauer. Há uma linha histórica e um movimento de filosofia pessimista e niilista ocidental com um componente muito individualista. Conforme mostrado pelo estudo de Willis G. Regier (“Cioran’s Nietzsche”, publicado em 2005), os escritos de Cioran dos primeiros anos foram especialmente inspirados pela filosofia de Nietzsche, sendo que Cioran se emanciparia progressivamente, em seus trabalhos posteriores, para se tornar um autor independente e excêntrico. Neste ponto, ele está alinhado com Bollon (e também comigo). No entanto, do meu ponto de vista, seria insuficiente traçar uma linha coerente de desenvolvimento em termos de um seguidor de Nietzsche a um pensador anti-Nietzsche, especialmente porque ambos os autores têm um estilo de escrever bastante excêntrico, muitas vezes fragmentado, desafiando os critérios de rigor, coerência e cronologia. Para analisar as referências de Cioran a Nietzsche, seria mais produtivo elaborar explicitamente em torno de ideias, motivos e contextos particulares apresentados em suas obras, em termos de semelhanças, diferenças, referências, contradições, em vez de tentar construir uma cronologia de um desenvolvimento alienante ou uma “grande virada”. Por exemplo, a investigação que me interessa particularmente é a recepção por parte de Cioran dessa ideia tão complexa de Nietzsche que é o Übermensch, contextualizada junto à ideia do Eterno Retorno do Mesmo. Nietzsche escreveu sobre a esperança de surgimento de um super-humano[25] para melhorar a condição e a cultura humanas. Cioran, ao contrário, escreve sobre a decepção por tais esperanças permanecerem irrealizadas, e – o que é pior – irrealizáveis, pois, devido à sua essência intrinsecamente falível, a imperfeita condição humana sempre se repetirá ao longo da História.
Assim, Cioran censura Nietzsche em muitos dos seus textos, basicamente, por ter compreendido mal a natureza humana. Por exemplo, Cioran afirma que Nietzsche “limitou-se a observar de longe os homens. Se os tivesse olhado de mais perto, nunca teria podido conceber nem louvar o super-homem”,[26] acusando-o de manter uma “imagem falsa da vida e da história”.[27]
RM: Um importante intelectual alemão que tem manifestado um interesse renovado por Cioran – de tal forma que muitos dos seus textos têm se dedicado a discutir, citando-o, os textos do filósofo romeno, aumentando assim a atenção para sua existência como autor – é Peter Sloterdijk.[28] Em artigo publicado na Magazine littéraire e no Cahier L’Herne Cioran, ele sustenta que “Cioran foi o primeiro a realizar o que Nietzsche queria mostrar como se tivesse existido desde sempre: uma filosofia do puro ressentimento”. Em um de seus livros mais recentes, Pós-Deus, encontramos uma elaboração ulterior sobre o que seria essa filosofia de puro ressentimento: segundo ele, trata-se de uma “gnose negra” (em oposição à “gnose branca”[29]), niilismo gnóstico ou gnose niilista, em todo caso, “um atrofiamento da gnose até um existencialismo sombrio”, marcado por um “orgulho da incurabilidade” e pela “zombaria refratária voltada contra todas as tendências de esclarecimento. […] Eles não conseguem esquecer nem o mundo nem a si mesmos, eles vivem como memória da raiva. São patéticos do ‘ficar preso’, vítimas teimosas da coerção ao ‘ter que ser’ – sua centelha de autoconsciência incandesce na insistência do direito de permanecer magoado.”[30]
Você concorda com Sloterdijk, em que Cioran conscientemente concebe e deliberadamente realiza uma filosofia de puro ressentimento, na direção oposta de tudo que Nietzsche diagnosticou e propôs em termos da psicologia do ressentimento e da própria necessidade de superá-lo?
KB: Em termos, sim. Quando li Cioran pela primeira vez, senti um enorme fascínio, mas, honestamente, não foi nenhum amor à primeira vista. Dito isso, foi especialmente Cioran se regozijando em sua atitude de ressentimento o que fez a amargura dos seus silogismos parecer tão “amarga” para mim, metaforicamente, como uma filosofia à beira do abismo. No entanto, sobretudo a ênfase com que ele leva a cabo esse ressentimento, o que torna o seu pessimismo cultural tão marcante para mim, uma vez que Cioran não mantém uma visão fatalista, mas, sim, uma concepção criativa e produtiva do pessimismo que contribui para uma crítica profunda dos axiomas e fundamentos da filosofia ocidental. Então, do meu ponto de vista, o ressentimento demonstrado por Cioran, na contramão de Nietzsche, não é simplesmente debilitante [depowering], senão que fornece também um fundamento crítico de empoderamento [empowerment] e emancipação em relação aos regimes tradicionais de poder, de conhecimento e de produção de valores da cultura ocidental. Uma tal atitude filosófica prefigura a ideia derridiana da Desconstrução, crucial para a filosofia crítica pós-moderna, assim como para o movimento e a literatura filosófica antinatalista – por exemplo, Anaba[31] e Ligotti.[32]
RM: Numa entrevista concedida a Fernando Savater, Cioran diz: “Creio que a possível não é mais possível senão como fragmento. Na forma de explosão. Já não se pode meter-se a elaborar um capítulo atrás do outro, na forma de tratado. Neste sentido, Nietzsche foi eminentemente libérateur. Foi ele quem sabotou o estilo da filosofia acadêmica, quem atentou contra a ideia de sistema. Ele nos foi salutar, porque, depois dele, pode-se dizer tudo… Agora somos todos fragmentistes, ainda que escrevamos livros de aparência coordenada. O que combina com o estilo da nossa civilização…”[33]
Refletindo acerca da exigência fragmentária de Nietzsche – intimamente relacionada à sua visão trágica da existência, e também ao estilo singular de Nietzsche, concebido como arte de “dar estilo ao próprio caráter”[34] –, Maurice Blanchot busca respostas às seguintes perguntas: O que houve com Nietzsche, hoje? […] Por que o destino de Nietzsche foi ser entregue a falsários?”[35] Sua resposta é que Nietzsche teria, ao final da vida, sentido a necessidade crescente de se fazer mais amplamente compreendido, traindo assim essa sua exigência fragmentária (Blanchot), de tal maneira que o equilíbrio entre os dois desejos contraditórios, o de ser compreendido e o de permanecer incompreendido, penderia mais e mais ao primeiro. “De onde vem essa espécie de trapaça que permitiu, não sem boa fé, impor uma compilação de editores como a obra essencial? De preconceitos, e sobretudo daquele grande preconceito que afirma não haver grande filósofo sem uma grande obra sistemática.”[36] Além disso, argumenta Blanchot, haveria duas “falas”, dois registros discursivos nos textos de Nietzsche: um é descontínuo e fragmentário, voltado ao individual, singular, solitário, e o outro é contínuo, dialético e comunitário, enredado nas tramas da História e comprometido com o debate das ideias, em diálogo com os grandes filósofos ,de Platão a Kant, e outras figuras históricas, passadas e presentes. Resumindo, Nietzsche teria terminado nas mãos erradas por um descuido seu, por uma fraqueza sua, a saber, o preconceito e a vaidade do filósofo que aspira a uma legar uma grande obra unificadora de todo o seu pensamento. Aquele que exclamou: “Sobretudo não me confundam!”,[37] acabou sendo confundido por alguém que não era e que jamais queria ser. Cioran, por sua vez, parece ser mais adepto de uma espécie de “confusionismo”alexandrino,[38] em sua zombaria obstinada contra toda pretensão de clareza, objetividade, unidade, ordem, de tal modo que podemos imaginá-lo exclamar: “Sobretudo me confundam!”
Você acha que Blanchot tem razão? Cioran teria tirado do caso Nietzsche uma importante lição, a de acentuar ainda mais a exigência fragmentária, o pensamento e a palavra da Solidão, da singularidade, da separação, da incompreensão? Seria essa dimensão propositiva, dir-se-ia “edificante” (na opinião de Cioran), do pensamento ulterior de Nietzsche, essa necessidade, de que fala Blanchot, de se fazer compreender, de ser mais palatável, seria essa uma das razões pelas quais Cioran se distancia de Nietzsche, após tê-lo exaltado como o ídolo de sua juventude? Uma vez mais, parece que a exigência de Cioran, irônico e ressentido, é inversa à de Nietzsche: “Sobretudo, me confundam!”, exclamaria o sucessor romeno de Nietzsche. “Uma regra de ouro: deixar uma imagem incompleta de si mesmo.” Não seria essa a razão pela qual Cioran enfrenta as consequências de ser mal compreendido, mal julgado, equivocado, também ignorado, rejeitado, “cancelado” – na medida em que se manteve fiel à exigência fragmentária de ser “uma soma de atitudes”, tendo criado um trabalho totalmente subjetivo, “patográfico” (Sloterdijk), em última análise, inabordável? Não é o fragmentarismo cioraniano um índice do ressentimento, de onde essa escrita “patográfica” que, segundo Sloterdijk, teria escandalizado Nietzsche?
KB: Eu concordaria totalmente com a declaração de Cioran de que a filosofia moderna está marcada pela fragmentação. Quanto a Nietzsche, a fragmentação e a incoerência são a dádiva e a ruína de sua filosofia. Mas não concordaria com Blanchot. Prefiro pensar que a obra de Nietzsche exige interpretações na linha de uma Hermenêutica Moderna e Pós-moderna. Na esteira de Frederic Jameson, Jean-François Lyotard, Mikhail Bakhtin e muitos outros pensadores do século 20, a fragmentação, a ambiguidade, a interminabilidade e a ausência de grandes narrativas (Lyotard) são elementos centrais do pensamento pós-moderno. Esses paradigmas não devem ser vistos como algo necessariamente negativo, pois, conforme à teoria da morte do autor de Roland Barthes, refletem um câmbio de paradigmas, de uma relação produtor-receptor monolinear, focado na perspectiva autoral (do autor, autoritas, autoridade), aos processos de comunicação, recepção e suplementação, focado nos diversos destinatários e suas interpretações como coprodutores do conhecimento. Ainda assim, essa Hermenêutica é frequentemente considerada um fenômeno bastante pós-moderno desde o século XX, como resultado da fragmentação social, científica e cultural que tem marcado cada vez mais a cultura europeia e norte-americana desde o século XIX, como já demonstrado pela obra do historiador Jürgen Osterhammel.[39] Contra esse pano de fundo, o estilo fragmentado de Nietzsche reflete um Zeitgeist particular de uma era que já havia perdido a sua crença numa única verdade universal, e, portanto, na única verdade universal e na única maneira de interpretá-la. E sim, estou de acordo, é uma “espada de Dâmocles” filosófica.[40] Por um lado, oferece a liberdade de interpretação, além de facilitar a inserção de autores que praticam um estilo fragmentário, como Nietzsche, em uma diversidade de discursos, o que pode ser um dos motivos da sua grande popularidade, tanto na Academia como na cultura popular até hoje. Por outro lado, isso torna uma tal filosofia suscetível a abusos, como comprova a apropriação de Nietzsche pela ideologia nazista. Este é o lado negativo da ambiguidade, exemplificado também pela faceta obscura dos pensamentos e dos paradigmas moderno/pós-moderno, que são muitas vezes glorificados meramente em termos de liberação e emancipação.[41] Mas a liberdade, inclusive a liberdade de interpretação, também pode em alguns casos levar a consequências desastrosas, à perversão das ideias filosóficas, caso caiam em mãos erradas, o que pode ser exemplificado pela recepção de Nietzsche. Então, diria eu, a crítica de Nietzsche, no que concerne ao estilo fragmentário da sua obra, implica uma crítica muito mais geral e mais importante da condição moderna/pós-moderna de pensamento, da crise da verdade mesma.
RM: Tem algum aforismo favorito de Cioran, ou mais de um, que leve na memória?
KB: Eu gosto dos Silogismos da amargura. Não tenho um silogismo favorito, mas uma frase: “Se Noé tivesse possuído o dom de prever o futuro, teria certamente naufragado.”
RM: Prezada Kerstin, gostaria de agradecer mais uma vez pela generosidade desta entrevista, que abre um amplo leque de possibilidades, filosóficas e de outras áreas do saber, de estudos sobre a obra de Cioran. Espero que este seja o primeiro passo de um intercâmbio filosófico duradouro, em torno deste pensador, entre os nossos países, o Brasil e a Alemanha. Você gostaria de concluir deixando algumas palavras finais?
KB: Quero agradecer a você e ao público, pela atenção, e convidar a todos os que se interessarem a entrar em contato comigo, para tirar alguma dúvida, fazer críticas ou discutir algum tema. Em todo caso, a exemplo de Nietzsche, Cioran não é o tipo de pensador que diz o que se quer ouvir, mas o que precisa ser dito para que se reflita criticamente sobre os próprios fundamentos da história e dos valores ocidentais.
SÁ MENEZES, R. I. R., “Pós-Metafísica, Pós-Modernidade, Pós-História, Pós-Humanismo: em diálogo com Kerstin Borchhardt a propósito da relação Cioran-Nietzsche”, Portal E.M. Cioran Brasil, Maio/Junho de 2021.
NOTAS:
[1] Entrevista originalmente realizada em língua inglesa (18/05/2021). Tradução de Rodrigo Inácio R. Sá Menezes para o Portal E.M. Cioran Brasil.
[2] Donna Haraway (Denver, Colorado, 1944) é uma bióloga, filósofa, escritora e professora emérita estadunidense, vinculada ao Departamento de História da Consciência da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (CA). É autora de diversos livros e artigos em torno de questões como ciência e feminismo, tais como A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century (1985) e Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective (1988), ambos traduzidos ao português.
[3] Rosi Braidotti é uma filósofa e professora, representante da filosofia continental contemporânea, e teórica feminista. Desde 1988, leciona na Universidade de Utrecht. Recebeu títulos honorários de Hensinki (2007) e Linkoping (2013); é membra da Australian Academy of the Humanities (FAHA) e da Academia Europaea (MAE). As suas principais publicações incluem Nomadic Subject (2011), Nomadic Theory (2011), The Posthuman (2013) e Posthuman Knowledge (2019). Co-editou, com Paul Gilroy, Conflicting Humanities (2016), e, com Maria Hlavajova, The Posthuman Glossary (2018).
[4] Nascida nos EUA, Nancy Katherine Hayles (1943-) é uma crítica literária pós-moderna, conhecida por suas contribuições aos campos da literatura e da ciência, da literatura eletrônica e da literatura estadunidense. É professora e diretora do programa de estudos pós-graduados de Literatura da Duke University.
[5] Anna Tsing (1952-) é uma antropóloga estadunidense. É professora do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz (CA). Hayles entende os conceitos de “humano” e “pós-humano” como construções emergentes de compreensões historicamente determinadas segundo diferentes condições de tecnologia, cultura e conhecimento. O conceiteo de “humano” está vinculado a concepções iluministas e humanistas, com ênfase na naturalidade da natureza humana e na liberdade ou livre-arbítrio do indivíduo. O conceito de “pós-humano” suplanta a noção de um eu “natural” e surge quando a inteligência humana é concebida como o resultado de uma coprodução entre seres humanos e máquinas inteligentes. A concepção pós-humana e pós-humanista privilegia a informação e o processo sobre a materialidade e o sujeito, considerando a consciência como um epifenômeno da evolução e o corpo como uma extensão material protética (uma prótese biológica) da mente. Hayles argumenta que na concepção pós-humana não há diferenças essenciais ou demarcações absolutas entre o natural e o artificial, o humano e o robótico.
[6] Bruno Latour (1947-) é um importante antropólogo e filósofo francês, um dos fundadores dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia (ESCT). Sua principal contribuição teórica é o desenvolvimento da Actor-Network Theory (ANT), Teoria Ator-Rede em português, que considera, em sua análise da atividade científica contemporânea, tanto os agentes humanos como os não-humanos (máquinas). Conhecido pelos seus livros que descrevem o processo de pesquisa científica, dentro da perspectiva pós-construtivista que privilegia a interação entre o discurso científico e a sociedade, os de maior destaque são: Jamais Fomos Modernos, Ciência em Ação e Reagregando o Social. Latour é professor do Institut d’Etudes Politiques de Paris (Sciences Po). Lecionou na Universidade da Califórnia em San Diego. Também leciona, como professor-visitante, na London School of Economics e em Harvard. Em 2013, Latour lançou a Investigação Sobre os Modos de Existência: Uma Antropologia dos Modernos, uma obra coletiva.
[7] Timothy Bloxam Morton (1968-) leciona na Rice University, em Houston, Texas. É um representante de um movimento contemporâneo da filosofia voltada aos objetos [object-oriented philosophy]. Seu trabalho explora a interseção entre o pensamento voltado aos objetos e os estudos ecológicos. Seu livro Humankind: Solidarity with Non-Human People explora a separação entre humanos e não-humanos, argumentando que os humanos precisam repensar radicalmente a maneira como concebem e se relacionam com os não-humanos, objetos, animais e a natureza como um todo, explorando as implicações políticas de uma tal mudança de paradigmas. Morton tem inúmeras publicações sobre a literatura de Percy Bysshe Shelley e Mary Shelley, Romantismo, Dieta e Ecoteoria. É professor do programa de pós-graduação em Paisagens Sintéticas do Southern California Institute of Architecture (SCI-Arc).
[8] Antropoceno é um conceito empregado por certos cientistas para descrever o período mais recente na história do planeta Terra. Não há consenso sobre o início do período, mas muitos consideram que seja em finais do século XVIII, quando as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo (negativo, predatório) no clima do planeta e no funcionamento dos seus diversos ecossistemas. Este marco inicial coincide com a aprimoração do motor a vapor, por James Watt, em 1784. Outros, mais radicais, julgam que o Antropoceno teria começado ainda antes, por exemplo, com o advento antigo da agricultura (cultura da terra para subsistência), ou ainda com o Homo sapiens. É um conceito bastante presente no debate e nos estudos do antropólogo brasileiro, mundialmente reconhecido por suas contribuições aos estudos dos povos ameríndios, Eduardo Viveiros de Castro. Cf. DANOWSKI, Deborah; DE CASTRO, Eduardo Viveiros, Há mundo por vir? Ensaios sobre os medos e os fins. Rio de Janeiro: ISA, 2014.
[9] Ein Geheimtipp für Kenner em alemão, literalmente: “uma dica secreta para conhecedores”, expressão empregada por Verena von der Heyden-Rynsch, em artigo publicado no jornal alemão Die Zeit, em 18 de janeiro de 1980, intitulado Der Mensch: ein Rechenfehler der Natur [O Homem: um Erro de Cálculo da Natureza], em alusão ao caráter obscuro e marginal, fora do mainstream, da obra Cioran, que só seria acessível a alguns poucos conhecedores alemães.
[10] LOHWASSER, Diana, „Es ist das Leben sonst nichts.“ Existenz in bildungstheoretischer Hinsicht bei Camus, Cioran und Lévinas. [A existência nada mais é. Existência em termos de teoria educacional em Camus, Cioran e Lévinas], tese de doutorado da Faculdade de Ciências Humanas [Humanwissenschaftlichen Fakultät] da Universidade de Köln, 2015. Disponível em: https://kups.ub.uni-koeln.de/6387/1/Dissertation_Lohwasser.pdf
[11] Nascido em Cernăuţi, na Romênia, Paul Celan (1920-1970), pseudônimo de Paul Pessakh Antschel (em alemão), ou Paul Pessakh Ancel (em romeno) foi um poeta, tradutor e ensaísta romeno radicado na França, como Cioran, de quem foi amigo e de quem traduziria alguns dos livros ao alemão. Celan traduziu as obras de mais de quarenta poetas, de diferentes línguas, inclusive Fernando Pessoa, do português. Sobrevivente do Holocausto, Celan é considerado um dos mais importantes poetas modernos de língua alemã. Suicidou-se por afogamento, no rio Sena, em abril de 1970, aos 49 anos. Cioran escreve sobre o suicídio do amigo nos Cahiers: “Il paraît que Paul Celan se serait suicidé. Cette nouvelle non encore confirmée me remue plus que je ne puis dire. Depuis des mois je suis moi aussi agité par ce « problème ». Pour ne pas avoir à le résoudre, j’essaie d’en déchiffrer la signification.” [Ao que parece Paul Celan se suicidou. Esta notícia ainda não confirmada mexeu comigo mais do que eu poderia dizer. Há meses que eu me agito sobre esse ‘problema’. Por não poder me resolver a ele, tento decifrar a sua significação.] CIORAN, E.M., Cahiers: 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997, p. 470.
[12] Recém-traduzida ao italiano: Rittrato di um scettico estremo. Trad. de Claudia Tatasciore e prefácio de Vincenzo Fiore. Bergamo: Lemma Press, 2019.
[13] Publicado no Brasil como A vontade radical (Companhia das Letras, 2015), a coletânea contém um ensaio sobre Cioran, “Pensar contra si próprio: reflexões sobre Cioran”, originalmente publicado como prefácio à edição inglesa de La tentation d’exister: The temptation to exist (Quadrangle Books, 1968, trad. de Richard Howard).
[14] REGIER, Willis G., “Cioran’s Nietzsche”, French Forum, vol. 30, nr. 3, 2005.
[15] REINARTZ, BURKHARD, “Ein Gedanke muss ätzen wie ein Gifttropfen”, Deutschlandfunk Kultur, 23 de novembro de 2016. Disponível em: https://www.deutschlandfunk.de/emil-cioran-ein-gedanke-muss-aetzen-wie-ein-gifttropfen.2540.de.html?dram:article_id=371670
[16] „Mord und Bestialität sind Tugenden”, Cicero – Magazin für politische Kultur, s/d. Disponível em: https://www.cicero.de/kultur/mord-und-bestialitaet-sind-tugenden/44075
[17] Fritz Joachim Raddatz (1931–2015) foi um folhetinista, ensaista, biógrafo e romancista alemão. Uma das entrevistas com Cioran reunidas no volume Entretiens (Gallimard, 2015) foi realizada por ele, e originalmente publicada no jornal alemão Die Zeit, em 4 de abril 1986, com o título « Tiefseelaucher des Schreckens » [O Escafandrista do Horror].
[18] Gottfried Benn (1886-1956) foi um poeta, ensaísta e prosador alemão, um dos mais destacados representantes do expressionismo literário no século XX e renovador da poesia lírica na Alemanha pós-guerra. Benn interrompeu as atividades de escritor em 1936 e retomou a escrita em 1948, com “Poemas Estáticos”. Grande expressionista, Benn cultiva um niilismo sombrio e agressivo alegadamente influenciado por Nietzsche. Para Benn, existe o poema absoluto como sistema fechado, formado por uma ideia única e absoluta, como se o absoluto residisse exclusivamente na voz e no labor do poeta criador, de modo que o leitor não conta, não participa de forma alguma no processo criativo. Seu poema “Homem e Mulher Passam pelo Pavilhão de cancerosos” foi escolhido como o 100º melhor poema do mundo no século XX pela Folha de S. Paulo.
[19] Gustav Mensching (1901-1978) foi um teólogo protestante alemão que se voltou cada vez mais a uma perspectiva não confessional da religião, reivindicando independência crítica dos estudos religiosos, em contraste com as posições dogmáticas mantidas anteriormente. Na obra de Mensching, três pontos focais podem ser identificados: a fenomenologia e a tipologia da religião, a sociologia da religião e a história geral e comparada da religião. É autor de Toleranz und Warheit in der Religion [Tolerância e Verdade na Religião] (1955).
[20] Whitewashing, “embranquecimento”, é um termo utilizado para designar as produções culturais que substituem pessoas de etnias diversas (negros, pardos, asiáticos, latinos, entre outras) por pessoas brancas.
[21] Grosso modo, o que veio a ser conhecido filosoficamente, em língua alemã, como Kulturpessimismus, “Pessimismo Cultural”, denota uma visão melancólica e desenganada em relação às tendências e formas da cultura atual, bem como de seus desenvolvimentos futuros, como um processo de decadência progressiva, inevitável e irreversível. Muito embora haja expressões pontuais desse tipo de desencantamento cultural que podem ser localizadas desde os tempos antigos, é apenas no final do século XIX, no contexto de Nietzsche, que o termo virá a consolidar-se no debate público significando a antítese ao otimismo cultural e à crença otimista no progresso histórico.
[22] CIORAN, E.M., “L’arbre de vie”, La chute dans le temps, in Œuvres. Paris : Gallimard, 1995, p. 1078.
[23] “Baudelaire introduziu a fisiologia na poesia; Nietzsche, na filosofia. Com eles, as perturbações dos órgãos se elevaram a canto e a conceito. Proscritos da saúde, cabia a eles assegurar uma carreira à doença.” CIORAN, E.M., Silogismos da amargura. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 17.
[24] Ibid., p. 35.
[25] Sem entrar no mérito conceitual da melhor tradução para Übermensch, termo tem sido traduzido de muitas maneiras diferentes, traduzimos superhuman, aqui, instrumentalmente, por “super-humano”.
[26] CIORAN, E.M., Do inconveniente de ter nascido. Trad. de Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010, p. 79.
[27] IDEM, Silogismos da amargura, p. 35.
[28] Sloterdijk escreveu ao menos um ensaio sobre Cioran, além de um livro que, embora não lhe dê nenhum protagonismo, apresenta uma temática que tem tudo a ver com ele (Cioran é citado num dos capítulos, a propósito da heresia gnóstica). O livro é Nach Gott (2017), “Pós-Deus” na edição brasileira. O ensaio, incluído posteriormente no livro de Sloterdijk intitulado Du musst dein Leben andern: Über Anthropotechnik [Você deve mudar sua vida: sobre Antropotécnica], de 2013, com o título “Budismo parisiense: os exercícios de Cioran”, foi publicado antes no Cahier L’Herne Cioran e republicado no dossiê especial dedicado à Cioran da Magazine Littéraire, em 2011, com o título “O Prior da Ordem da Santa Louca Temeridade”.
[29] Enquanto a “gnose negra” é uma atitude desabusadamente niilista, pessimista, ateísta, desconsolada e sem salvação, não reconhecendo senão a experiência negativa da “queda no tempo” e da habitação neste mundo de “decomposição” ici-bas, a “gnose branca”, por sua vez, seria esperançosa, otimista, utópica, preocupando-se menos com o caminho para baixo e interessando-se mais em fabular e especular sobre o retorno, o caminho de volta, para o alto, seja pensado como salvação (cristã) ou redenção. Cioran ataca a teosofia logo nas primeiras páginas de A tentação de existir (cf. “Pensar contra si”). Muito embora demonstre, principalmente em seus textos franceses mais tardios, a partir de La chute dans le temps, uma profunda e inequívoca preocupação pela questão da salvação (salut, em francês), ou antes, da libertação (délivrance), em chave oriental (budista), a verdade é que – considerado pelo conjunto da obra – o autor romeno parece insistir quase o tempo todo na negatividade da queda, no momento negativo, no mal de existir neste mundo, tratando toda aspiração à salvação ou à libertação como uma afetação injustificável e um capricho inadmissível, uma vontade de autoanulação, uma aniquilação em Deus. “Mas, se não queremos libertar-nos do sofrimento nem vencer as contradições e os conflitos, se preferimos as nuanças do inacabado e as dialéticas afetivas à unidade de um sublime beco sem saída? A salvação acaba com tudo; e acaba conosco. Quem, uma vez salvo, ousa considerar-se ainda vivo?” (“Anulação pela libertação”, Breviário de decomposição). De Nos cumes do desespero ao Breviário de decomposição, predomina a negatividade meio trágica, meio niilista, da “recusa a libertar-se do sofrimento” (Ibidem), cedendo espaço pouco a pouco, nos livros posteriores, a toda uma reflexão soteriológica em torno do ideal da délivrance pelo vazio ou vacuidade, em chave budista (sunya; sunyata). Cf. “Paléontologie” e “L’indélivré”, em Le mauvais démiurge (1969), em que se encontra o suprassumo da reflexão soteriológica profunda de Cioran.
[30] SLOTERDIJK, Peter, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 94.
[31] Philippe Annaba, escritor e jornalista francês conhecido por sua defesa do antinatalismo.
[32] Nascido em 1953, Thomas Ligotti é um escritor de ficção estadunidense proponente do gênero conhecido como horror cósmico ou mesmo horror filosófico, cujas narrativas e personagens são profundamente existenciais e problemáticos, em crise, por vezes borrando os limites convencionais entre razão e delírio, vigília e sonho, vida e morte, ser e não-ser. Ligotti tem a reputação de ser um completo recluso quase nunca visto em público, menos ainda fotografado (o que só aumenta a aura mítica ao redor da sua figura). Possui um círculo de leitores e apreciadores apaixonados e fieis, nos EUA e em todo o mundo, inclusive no Brasil. É conhecido como um representante literário das filosofias antinatalista, niilista e pessimista (enquanto modelos éticos negativos), paralelamente a Julio Cabrera e David Benatar, na filosofia. Ligotti é uma das inspirações da série True Detective (HBO) e uma das leituras preferidas, ao lado de Cioran, Nietzsche e Schopenhauer, do criador do programa: Nic Pizzolato. Seu livro mais famoso é provavelmente The Conspiracy Against The Human Race (2010).
[33] CIORAN, E.M., Entrevista com Fernando Savater, Entretiens. Paris: Gallimard, 1995, p. 22.
[34] “Uma coisa é necessária. — ‘Dar estilo’ a seu caráter — uma arte grande e rara! É praticada por quem avista tudo o que sua natureza tem de forças e fraquezas e o ajusta a um plano artístico, até que cada uma delas aparece como arte e razão, e também a fraqueza delicia o olhar. Aqui foi acrescentada uma grande massa de segunda natureza, ali foi removido um bocado de primeira natureza: — ambas as vezes com demorado exercício e cotidiano lavor. “NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, § 290. Trad. de Paulo César de Souza. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 195.
[35] BLANCHOT, Maurice, “Reflexões sobre o niilismo”, A conversa infinita, vol. II. Trad. de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007, p. 89, 92.
[36] Ibid., p. 92-93.
[37] “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me confundam!” NIETZSCHE, Friedrich, Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 15.
[38] “A instauração de um equívoco universal é a proeza mais calamitosa que teremos cumprido e que nos põe como rivais do demiurgo.” Id. Le mauvais démiurge, Op. cit., p. 1177. Neste trecho, ele usa équivoque. No Breviário há uma definição do alexandrinismo que cai como uma luva a Cioran, reiterando a noção do confusionismo: “O alexandrinismo é um período de sábias negações, um estilo de inutilidade e de recusa, um passeio de erudição e sarcasmo através da confusão dos valores e das crenças. Seu espaço ideal se encontraria na interseção da Hélade e da Paris de outrora, no ponto de confluência da ágora e do salão.” Id., “Rostos da decadência”, Breviário de decomposição. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 150.
[39] Nascido em 1952, Jürgen Osterhammel é um historiador alemão especializado em História Mundial. Começou a carreira academia na London School of Economics. Em 1980, doutorou-se pela Universidade de Kassel, na Alemanha e, dois anos mais tarde, tornou-se professor do German Historical Institute de Londres. As áreas específicas de seus estudos e publicações concentram-se em temas como o colonialismo, a história eurasiana, teoria da historiografia e história mundial.
[40] Dâmocles é o protagonista de uma anedota moral que figurou originalmente na História Perdida da Sicília por Timeu de Tauromênio (c. 356-260 a.C.). Dâmocles era um cortesão bastante bajulador na corte do tirano Dionísio de Siracusa. Ele dizia que, como um grande homem de poder e autoridade, Dionísio era verdadeiramente afortunado. Dionísio ofereceu-se para trocar de lugar com ele por um dia, para que ele também pudesse sentir o gosto de toda esta sorte, sendo servido em ouro e prata, atendido por garotas de extraordinária beleza, e servido com as melhores comidas. No meio de todo o luxo, Dionísio ordenou que uma espada fosse pendurada sobre o pescoço de Dâmocles, presa apenas por um fio de rabo de cavalo. Ao ver a espada afiada suspensa diretamente sobre sua cabeça, Dâmocles perdeu o interesse pela excelente comida e pelas belas garotas e abdicou de seu posto, dizendo que não queria mais ser tão afortunado.
[41] Os aspectos nocivos – e como que o efeito paradoxal, pois repressor e coercitivo – dessa liberação total, tornada ideologia cultural (“é proibido proibir”, etc.), esses aspectos implicados no paradoxo da ambiguidade pós-moderna são tematizados, por exemplo, por Slavoj Žižek e Byung Chul-Han. “Como é amplamente sabido, Jacques Lacan afirmou que a prática psicanalítica nos ensina a inverter o dito de Dostoiévski: “Se Deus não existir, então tudo é proibido”. Essa inversão é difícil de engolir para nosso senso comum moral: numa resenha um tanto positiva sobre um livro de Lacan, um jornal esloveno de esquerda publicou assim a versão de Lacan: “Mesmo se Deus não existir, nem tudo é permitido!” – uma vulgaridade benevolente, transformando a inversão provocadora de Lacan na garantia modesta de que mesmo nós, ateus ímpios, respeitamos alguns limites éticos… Contudo, mesmo que a versão de Lacan pareça um paradoxo vazio, um breve exame de nossa paisagem moral confirma que é muito mais apropriado descrever o universo dos hedonistas liberais ateus: eles dedicam a vida à busca dos prazeres, mas como não há nenhuma autoridade externa que lhes garanta o espaço para essa busca, eles acabam intricados numa densa rede de regras autoimpostas e politicamente corretas, como se um supereu muito mais severo que o da moral tradicional os controlasse. Eles se tornam obcecados com a ideia de que, ao buscar seus prazeres, eles podem humilhar ou violar o espaço dos outros, por isso regulam seu comportamento em regras detalhadas de como evitar “assediar” os outros, isso sem mencionar regras menos complexas relacionadas ao cuidado de si (ginástica, alimentação saudável, relaxamento espiritual…). Na verdade, nada é mais opressor e regulado que um simples hedonista.” ŽIŽEK, Slavoj, “O cristianismo contra o sagrado”, in ŽIŽEK, Slavoj; GUNJEVIĆ, Boris, O Sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse. Trad. de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, p. 38. “Vivemos em um momento histórico particular, no qual a própria liberdade provoca coerções. A liberdade de poder (Können) produz até mais coerções do que o dever (Sollen) disciplinar, que expressa regras e interditos. O dever tem um limite; o poder não. Portanto, a coerção proveniente de poder é ilimitada e, por esse motivo, encontramo-nos em uma situação paradoxal. A liberdade é a antagonista da coerção. Ser livre significa estar livre de coerções. Ora, mas essa liberdade que deveria ser o contrário da coação também produz ela mesma coerções. Doenças psíquicas, como depressão ou burnout são expressões de uma profunda crise da liberdade: são sintomas patológicos de que hoje ela se transforma muitas vezes em coerção. O sujeito do desempenho, que se julga livre, é na realidade um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem um senhor, explora voluntariamente a si mesmo. Nenhum senhor o obriga a trabalhar. O sujeito absolutiza a vida nua e trabalha.” HAN, Byung-Chul, Biopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. de Maurício Liesen. Belo Horizonte/Veneza: Ayiné, 2018, p. 10.
© Portal E.M. Cioran Brasil (2021)