“Lucidez e/é Enfermidade: Cioran e o paradoxo entre saúde e conhecimento de si” – Rodrigo MENEZES

O conhecimento de si, o mais amargo de todos, é também aquele que menos cultivamos: para quê surpreendermo-nos de manhã à noite em flagrante delito de ilusão, regressar impiedosamente à raiz de cada acto, e perder causa atrás de causa diante do nosso próprio tribunal?

Do inconveniente de ter nascido (1973)

A doença é uma realidade imensa, a propriedade essencial da vida – não apenas tudo o que vive, mas também tudo o que é, a ela está exposto: a pedra mesma está sujeita. Só o vazio não está doente; mas, para ter acesso a ele, é preciso está-lo. Pois ninguém são saberia esperar por ele. A saúde espera pela doença; só a doença pode conduzir à negação salutar de si mesma.

Cahiers: 1957-1972

Sofrer produz saber.

Le mauvais démiurge (1969)

Dir-se-ia que Cioran escolheu a heresia tanto quanto escolheu a insônia: experiência capital que se encontra, como ele afirmou reiteradas vezes, na origem de tudo o que escreveu, desde o primeiro livro, concebido “nos cumes do desespero”. Poder-seia-dizer, por outro lado, que estava “destinado” a uma e outra modalidade de luta consigo mesmo, a ambas as formas de solidão e negação, queda e vertigem, agonia e lucidez.

Para o pensador transilvano, enfermidade e lucidez são correlatas e não contrárias: proporcionais uma à outra. A lucidez não é apenas, e simplesmente, memória de um acesso, de um delírio, de uma dor ou de um padecimento qualquer. É em si mesma (e por ela a consciência se torna) uma “doença”, a “consciência como fatalidade”, a exemplo do ótimo título – Bewusstsein als Verhängnis – de um livro (de Alfred Seidel) que, segundo as exigências do leitor insone, não corresponde às expectativas.

Doença e lucidez encontram-se visceralmente ligadas no logos (pensar-dizer) de Cioran, que diverge de Nietzsche no sentido de que, para o pensador romeno, a correlação não se dá entre saúde e atividade ou movimento, mas entre saúde e repouso e, portanto, ausência de atividade, movimento, dinamismo.

A lucidez é a consciência da insinuação progressiva em nós das forças que anulam a vida e, por conseguinte, anulam a nós mesmos, enquanto existências, de tudo o que vem a comprometer a saúde e a vitalidade de um ser, revelando a sua fragilidade e o seu nada ulterior. É a consciência da insignificância última de toda “saúde” (convenção, ficção, trapaça), indo muito além do plano meramente fisiológico e/ou psicológico, chegando ao ponto temerário de reconhecer um princípio de “enfermidade” inclusive nas ideias e nas coisas (nem a pedra escaparia), nos objetos do espírito e nos objetos do mundo, inclusive no princípio de identidade e de não-contradição, e a “realidade” do que “é”, ou parece “ser”, a existência mesma, subjetiva e objetivamente considerada, aparece aos olhos de Cioran como permanente “ruptura, heresia, abolição das normas da matéria. E o homem, em relação à vida, é heresia em segundo grau, vitória do individual, do capricho, aparição aberrante, animal cismático que a sociedade – soma de monstros adormecidos – pretende reconduzir ao caminho reto.” (História e utopia)

A lucidez cioraniana é a face ou a dimensão gnosiológica, ativa, “luciferina”, do tédio, da melancolia e da tristeza, padecimentos que são, em si mesmos, enquanto tais, experiências de pura passividade sofrente. Como já apontado por Sylvie Jaudeau, é na correlação entre crise existencial e/ou religiosa (a fortiori mística), enfermidade como aniquilação e revelação, e o sofrimento como fonte de conhecimento (um saber intuitivo e negativo, na experiência interior, na interioridade do corpo, em sua profundidade física e imaginal), que se deve buscar o núcleo duro da “gnose” cioraniana, enquanto experiência de “exaltação extática na imanência”, “visão incandescente da loucura deste mundo”:

Eis uma base para a metafísica – válida mesmo para os últimos instantes, para os momentos do fim… O verdadeiro êxtase é perigoso – ele se parece com a última fase de iniciação dos mistérios egípcios, onde a fórmula: “Osíris é uma divindade negra” substituía o conhecimento explícito e definitivo. Em outros termos, o absoluto permanece, enquanto tal, inacessível. Eu só vejo no êxtase das raízes últimas uma forma de loucura, não de conhecimento.

“Êxtase”, Nos cumes do desespero (1934)

MENEZES, Rodrigo Inácio R. Sá, “Lucidez e/é enfermidade: Cioran e o paradoxo entre saúde e o conhecimento de si”, Portal E.M. Cioran Brasil, 21 de junho de 2021.

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