“O princípio de incerteza” – Clément ROSSET

“A necessidade de uma fé forte não é prova de fé forte, é, isso sim, o contrário. Se alguém tem essa fé, pode permitir-se o luxo do ceticismo.”

Nietzsche, O Crepúsculo dos ídolos

Montaigne sugere, em uma passagem da Apologia de Raimond Sebond, uma definição da verdade filosófica tão desconcertante quanto pertinente: “Duvido que Epicuro, Platão e Pitágoras tenham acreditado seriamente em suas teorias dos átomos, das idéias e dos números. Eram demasiado sábios e prudentes para crerem em coisas tão incertas e tão discutíveis. O que na realidade pode assegurar-se é que, dada a obscuridade das coisas do mundo, cada um desses grandes homens procurou encontrar um imagem luminosa delas. Seus espíritos acharam explicações que tinham pelo menos uma certa verossimilhança e que, embora não averiguadamente verdadeiras, podiam manter-se contra as oposições contrárias.” Em outras palavras, a verdade enunciada pelos filósofos, e sua verdade mais aguda, a que serve desde milênios para designar e caracterizar seu pensamento, é ao mesmo tempo uma verdade de que nenhum daqueles que a enunciaram estaria disposto minimamente a ser fiador, ou “autor”, no sentido do latim auctor. Lembrarei brevemente, voltando à etimologia latina da palavra autor, que o termo auctor significa, ao mesmo tempo, fiador e produtor. Ora, o que ocorre é que o produtor em questão, quero dizer o filósofo, mostra-se muito desconfiado com relação a seus próprios e melhores produtos: Pitágoras não crê nos números, Platão não crê nas idéias, Epicuro não crê nos átomos. Contrariamente ao fanático, ele possui bastante sabedoria para não defender, a qualquer preço, uma verdade que certamente enunciou mas de que também sabe, e provavelmente melhor do que ninguém, a que ponto é duvidosa, — como sugere ainda Montaigne, em uma outra passagem da Apologia: “Não sei mesmo se o ardor que nasce do despeito e da obstinação que experimentamos ante a opinião e a violência do magistrado, a excitação causada pela ameaça do perigo, ou ainda o desejo de ganhar prestígio, não terão levado certo personagem (que poderia apontar) a subir à fogueira para sustentar sua opinião, pela qual, em liberdade e no meio de seus amigos, não se expusera a queimar um dedo.”

O fato de que um filósofo seja menos persuadido que qualquer outro da verdade que invoca pode parecer altamente paradoxal. O fato é, no entanto, indubitável e provém da natureza mesma da “verdade” filosófica. Pode-se naturalmente e justamente observar que faz parte da natureza de toda verdade, qualquer que seja seu gênero, ser duvidosa. Assim todo fato, por mais simples e evidente que seja no momento de seu acontecimento, torna-se incerto e vago desde que este, uma vez passado, encontra-se convocado ao tribunal da justiça ou da memória coletiva. Da mesma forma uma verdade científica, por mais certa que possa parecer em um dado momento, esgota-se rapidamente ao contato das concepções ulteriores que a interpretam de outra maneira, no espaço de uma teoria nova que modifica radicalmente seus termos. Eis porque não existem, de forma alguma, falando propriamente, “ciências exatas” (exceto as matemáticas, que renunciam a toda verdade de fato e limitam-se a conciliar conclusões com premissas): exatamente como uma verdade histórica, uma verdade física está eternamente sujeita à caução e à revisão. Não é menos verdade entretanto que o historiador e o físico evocam fatos indubitáveis, mesmo se são capazes de propor uma versão certa e definitiva deles. As interpretações da Revolução Francesa ou da lei da queda dos corpos são e serão talvez sempre mais ou menos controvertidas; é impossível, entretanto, pôr seu fato em dúvida, pensar por exemplo que a Revolução Francesa não ocorreu, ou que a queda dos corpos não corresponde a nada de observável na natureza. Uma e outra são verdadeiras: a primeira quando ocorreu, a segunda quando foi concebida. Elas são verdadeiras na medida em que foram verdadeiras em seu tempo e podem assim invocar, como diria Hegel, um certo “momento” de verdade. Ora, o próprio das verdades filosóficas, diferentemente dos outros gêneros de verdade, é jamais poder invocar tal “momento de verdade”. Na medida em que a filosofia ê uma ciência dos problemas insolúveis, ou pelo menos dos problemas não- resolvidos como dizia Brunschvicg, as soluções que ela dá a seus próprios problemas são necessariamente e por definição duvidosas — a tal ponto que uma verdade que fosse certa deixaria, por esta razão mesma, de ser uma verdade filosófica, e que um filósofo que estivesse persuadido da verdade que propõe deixaria imediatamente de ser um filósofo (ainda que possa lhe acontecer, em compensação, ser muito razoavelmente persuadido da falsidade das teses que critica). Este princípio de incerteza, conforme seja respeitado ou não, pode, aliás, servir de critério para diferenciar verdadeiros e falsos filósofos: um grande pensador é sempre muito reservado quanto ao valor das verdades que sugere, enquanto que um filósofo medíocre pode ser reconhecido, entre outras coisas, pelo fato de que permanece sempre persuadido da verdade das inépcias que enuncia.

Pode-se naturalmente perguntar em que consiste o interesse de uma verdade filosófica necessariamente destinada à dúvida e à incerteza, e conseqüentemente privada de todos os atributos tradicionais da verdade. Deve-se observar aqui, antes de tudo, que o interesse de uma idéia jamais se confundiu com o conhecimento seguro de sua verdade, do mesmo modo que o interesse de um fato não se confunde com o conhecimento de sua natureza. Assim, o fato da sexualidade, e o reconhecimento universal de seu interesse, sempre se acomodou sem problemas com seu caráter altamente obscuro e incompreensível, de que testemunham, com toda sinceridade, os que mais tentaram penetrar em seus mistérios, como Freud, Georges Bataille, Lacan e antes deles Schopenhauer. De onde se pode justamente deduzir que, como toda verdade profunda, toda realidade interessante é fundamentalmente ambígua, para não dizer paradoxal: sendo ao mesmo tempo reconhecida por todo mundo e desconhecida de cada um em particular. Mas o interesse principal de uma verdade filosófica consiste em sua virtude negativa, quero dizer, em seu poder de dissipar idéias muito mais falsas do que a verdade que ela enuncia a contrario. Virtude crítica que, se não enuncia por si-mesma nenhuma verdade clara, consegue ao menos denunciar um grande número de idéias tidas abusivamente por verdadeiras e evidentes. A qualidade das verdades filosóficas é mais ou menos como a das esponjas que se utilizam no quadro- negro e às quais não se pede nada mais’ do que conseguir apagar bem. Em outras palavras, uma verdade filosófica é de ordem essencialmente higiênica: ela não fornece nenhuma certeza mas protege o organismo mental contra o conjunto de germes portadores de ilusão e de loucura. E por outro lado esta incerteza mesma, inerente às verdades filosóficas, que faz — se quiserem — sua fraqueza, também faz sua força. O trabalho da dúvida só possui, na verdade, poder sobre o que se faz passar por certo e seguro; em compensação, é totalmente ineficaz contra o que se apresenta, por si mesmo, como incerto e duvidoso. Pois uma verdade incerta é também e necessariamente uma verdade irrefutável: a dúvida não podendo nada contra a dúvida. Eis por que Montaigne escreve, com pertinência, na passagem citada anteriormente, que o próprio de toda grande “invenção” filosófica é “manter-se contra as oposições contrárias”.

Um pensamento sólido é efetivamente um pensamento capaz de defender-se, não apenas contra todas as “oposições” que se possa fazer a ele, mas ainda e eu diria sobretudo contra toda empresa de desnaturação e de interpretação errônea — como diz excelentemente Samuel Butler em uma passagem de A vida e o hábito: “Se uma verdade não é bastante sólida para suportar que a desnaturem e que a maltratem, ela não é de uma espécie bem robusta.” Acontece o mesmo com as traduções que, por mais detestáveis que sejam freqüentemente, só conseguem diminuir, mas de forma alguma anular totalmente, a potência expressiva do texto que elas traduzem, no caso de que este seja de qualidade. Aliás, é o sinal infálivel da qualidade de um texto resistir sempre, ao menos parcialmente, à prova da tradução-traição.

Observarei de passagem que o caráter incerto das mais profundas verdades filosóficas permite explicar o fato, aparentemente paradoxal e enigmático, que proposições formalmente contrárias e mesmo contraditórias possam ser consideradas igualmente pertinentes. Nada mais justo, por exemplo, do que o que dizem respectivamente do amor Platão em O banquete e Lucrécio no De rerum natura — mas também nada mais diametralmente oposto. Esta coexistência pacífica de verdades contrárias explica-se, não pelo fantasma hegeliano de um saber absoluto reconciliando finalmente o conjunto de todos os enunciados filosóficos, mas pelo caráter incerto de cada um desses enunciados. Consideradas como definitivamente adquiridas, as verdades filosóficas excluem-se necessariamente quando não falam a mesma coisa. Em compensação, consideradas como sempre duvidosas e aproximativas, toleram-se reciprocamente. De resto, não há nenhuma razão de interpretar as divergências de doutrina em termos de oposição, de julgar que uma idéia é contraditória em relação a outra, enquanto que ela é somente diferente dela. Nietzsche observa, no início de Além do bem e do mal, que a passagem necessária da idéia de diferença à idéia de contradição constitui um dos principais dogmas da ilusão: “A crença fundamental dos metafísicos é a crença na oposição dos valores. Nem sequer aos mais prudentes dentre eles ocorreu duvidar já aqui no limiar, onde no entanto era mais necessário. (…) Seria até mesmo possível (…) que o que constitui o valor daquelas boas e veneradas coisas consistisse precisamente no fato de estarem, da maneira mais insidiosa, aparentadas, misturadas, confundidas com aquelas coisas ruins, aparentemente opostas, e talvez mesmo em lhes serem iguais em essência”.

Voltando ao fato de que a verdade filosófica só tem valor na medida em que é incerta e não possui definitivamente outra virtude indiscutível a não ser a virtude medicinal, invocarei brevemente o caso do materialismo de Epicuro e de Lucrécio. E evidente que, com efeito — e é nisto que a doutrina epicurista é filosoficamente exemplar —, este materialismo é, ao mesmo tempo, insustentável e salutar: insustentável quanto à sua verdade própria, salutar quanto à soma de erros e de absurdos que revoga. As duas máximas fundamentais do epicurismo podem aparecer, com justa razão, como pensamentos particularmente curtos e pobres. Assimilar a verdade à existência material, o bem à experiência do prazer, equivale certamente a frustrar toda expectativa de elucidação em profundidade e a limitar-se, quanto a esses dois pontos, ao mais minimalista dos discursos. Mas, por outro lado, deve-se observar que a tentativa de assimilar a verdade a outra coisa que não a matéria, o bem a outra coisa que não o prazer, leva geralmente a enunciados eles- mesmos muito mais suspeitos e absurdos que as fórmulas epicuristas. Enquanto filosofia crítica, o materialismo constitui, talvez, o pensamento mais elevado que existe; enquanto filosofia “verdadeira”, em compensação, é o mais trivial dos pensamentos. Como observa Nietzsche em uma passagem do aforismo 9 de Além do bem e do mal, que faz eco direto às palavras de Montaigne citadas anteriormente, uma filosofia deixa de ser digna de credibilidade a partir do momento em que começa a acreditar nela mesma. O que faz a força da filosofia epicurista, como aliás de toda grande filosofia, não é chegar a uma verdade profunda e certa, mas, se posso dizer assim, conseguir limitar-se ao menor dos erros. Quanto a mim, não vejo nenhuma razão para não subscrever a declaração de fé enunciada por um personagem do Clube dos loucos de G. K. Chesterton (embora o autor tenha tido o cuidado de recusá-la logo após havê-la escrito). “Se devo escolher entre ser materialista e ser insensato, escolho o materialismo.” E direi mais, que se uma verdade duvidosa é preferível a uma verdade aparentemente segura, é também porque esta última tende mais do que a outra para essa loucura que consiste em querer obter um assentimento universal, se for preciso a ferro e fogo. Pois uma verdade duvidosa prescinde facilmente de toda confirmação ou infirmação da parte do real, enquanto que uma verdade tida por certa encontra-se necessariamente exposta ao desejo ardente e obsessivo de uma verificação pelos fatos, de uma confrontação vitoriosa com a prova da realidade, — razão pela qual o homem da dúvida deixa cada um descansar em paz, enquanto que o homem da certeza não pára enquanto não bateu na porta de todo o mundo. A virtude anexa de um discurso minimalista e incerto é, assim, ser inofensivo e pouco comprometedor, não poder prestar serviço a nenhuma causa, enquanto que um discurso indubitável pode ser sempre suspeito de anunciar alguma cruzada. Para resumir, a “segurança” de um discurso filosófico, nos dois sentidos do termo evocados acima, reside em seu caráter ao mesmo tempo crítico e inutilizável.

Se a aptidão principal da filosofia consiste antes em denunciar erros de que em enunciar verdades, resulta desse fato, aparentemente paradoxal mas no entanto verdadeiro, que a função maior da filosofia é menos aprender do que desaprender a pensar. A besteira, aliás, fornece uma sólida contraprova desse aparente paradoxo, uma vez que esta não consiste, contrariamente ao que se pensa geralmente e erroneamente, em uma preguiça de espírito mas sim em um excesso desordenado de atividade intelectual, de que testemunham por exemplo Bouvard e Pécuchet, heróis modernos e indiscutíveis da tolice. O interesse dirigido às “coisas da inteligência”, como é dito em La Belle Hélène de Offenbach, é mais freqüentemente a marca de um espírito medíocre do que a de um espírito refletido; e é certamente com justa razão, e não por um efeito de coquetismo, que o mais penetrante dos pensadores franceses, Montaigne, declara ter espírito lento.

Sabe-se que a habitual superestimação das funções intelectuais é tal que os homens, que temem na maioria e em sua loucura ser considerados como impotentes em matéria sexual, temem pelo menos na mesma proporção serem tidos por imbecis: como se fosse perder toda a honra e ver-se quase riscado do mapa da existência confessar um defeito de inteligência. Descartes ilustra muito bem, embora aparentemente sem ver nisso malícia, esta reivindicação universal de inteligência, tão obstinada quanto absurda, em toda primeira frase do Discurso do método: “O bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.” Quando a mim, suspeito muito de que esta inflação de valores puramente intelectuais, manifesta em todas as empresas de separação radical do corpo e do espírito, seja principalmente atribuível a um fantasma megalómano resultante da preocupação — de que hoje os psiquiatras fazem o centro nervoso da neurose obsessiva — de cortar as pontes entre a natureza do homem e a natureza de toda outra coisa, seja animal ou matéria inanimada. Fantasma de novo-rico, diria mesmo: de alguém que por sua inteligência elevou-se efetivamente muito acima de sua origem animal mas que atualmente esforça-se por fazer esquecer sua verdadeira ascendência. Observarei também que o absurdo inerente a esta vontade de inteligência consiste, antes de tudo, em atribuir mais valor à representação das coisas do que à experimentação dessas mesmas coisas, à prova de sua intensidade trágica e jubilosa: pois é trocar uma vantagem por uma esperança vã julgar, assim, que o conhecimento que se pode ter da realidade ultrapassa a riqueza da própria realidade. Existe assim uma espécie de numerosos falsos sábios que só alcançam a paz da alma por um tipo de anestesia geral com relação à realidade, por uma insensibilidade ao real que os torna incapazes tanto de temer quanto de desejar: tal como, por exemplo, Paul Valéry, que aliás o admite ele mesmo: “Confesso que fiz do meu espírito um ídolo mas não encontrei outro.” Não se poderia dizer melhor que o interesse voltado unicamente para a inteligência é a tradução de uma incapacidade de interessar-se pelo que quer que seja — incapacidade de que Bouvard e Pécuchet fazem, antes de Valéry, a dura experiência, própria para lembrar, repito, o elo sutil mas tenaz que aproxima, quer se queira ou não, a inteligência pura da besteira absoluta. Um personagem de Hergé, Séraphin Lampion, que encarna a vulgaridade total, declara em As jóias da Castafiore: “Veja bem, não sou contra a música, mas, francamente, neste momento, de dia, prefiro um bom copo de cerveja.” No entanto, é impossível não fazer nossa uma tal fórmula (contanto, naturalmente, que substituamos a palavra “música” pela palavra “inteligência”), exatamente como a teria certamente adotado Montaigne que declara na Apologia de Raimond Sebond, a propósito dos “homens de ciência”: “Eu também os aprecio muito, mas não os adoro.”

Resta-me dizer em que o princípio de incerteza se liga à crueldade, — mas a resposta a esta questão é evidente: se a incerteza é cruel, é que a necessidade de certeza é premente e aparentemente inextirpável na maioria dos homens. Tocamos aqui em um ponto bastante misterioso e, em todo caso, ainda não elucidado da natureza humana: a intolerância à incerteza, intolerância tamanha que leva muitos homens a sofrer os piores e mais reais males em troca da esperança, mesmo que vaga, de um pouquinho de certeza. Assim o mártir, incapaz que é de estabelecer e até mesmo de definir a verdade de que se pretende certo, decide-se a testemunhá-la, como indica a etimologia da palavra mártir, pela exibição de seu sofrimento: “Sofro, logo tenho razão “ — como se a prova do sofrimento bastasse para validar o pensamento, ou melhor, a ausência de pensamento, em nome da qual o mártir-testemunha se diz disposto a sofrer e morrer. Esta confusão da causa à qual ele se sacrifica explica acidentalmente o caráter sempre insaciável do amante de sofrimento (enquanto que sucede ao amante de prazer ser satisfeito): já que nenhuma causa está verdadeiramente visível, nenhum sofrimento conseguirá verdadeiramente estabelecê-la, por mais que o atinja de modo forte e duradouro. Daí a escalada do suplício, que A. Aymard e J. Auboyer evocam de maneira divertida: “Há uma psicologia do martírio e ela é eterna. (…) Assim houve até voluntários de martírio, como esses cristãos da Ásia, que, no reinado de Cômodo, apresentaram-se tão numerosos ao procônsul que este, após haver feito algumas recriminações, repeliu-os convidando-os a recorrer às cordas e aos precipícios”. Só se pode louvar o liberalismo deste procônsul que, na incapacidade em que se encontra de satisfazer todo o mundo, consente entretanto, por caridade e na medida de suas possibilidades, – em supliciar pelos menos alguns dos suplicantes.

O mais desconcertante desse gosto pela certeza é seu caráter abstrato, formal, insensível ao que existe realmente assim como ao que pode ser efetivamente doloroso ou gratificante. Nietzsche opõe justamente à riqueza da realidade, o caráter “pobre” e “vazio” da certeza: “Dêem-me uma única certeza, ó deuses!”, é a oração de Parmênides, “mesmo que no mar da incerteza não passe de uma simples prancha, suficientemente larga para nela estar deitado! Guardem para vocês tudo o que está em devir, o que é abundante, colorido, o que está em florescência, as formas enganadoras, encantadoras, vivas, e dêem-me apenas a pobre certeza inteiramente vazia!” Pouco importa, em suma, que uma certeza ensine sobre o que quer que seja de real: pedem- lhe apenas para ser certa. Eis porque o partidário fanático de uma causa qualquer pode ser reconhecido principalmente por ser, no fundo, totalmente indiferente a esta causa e somente fascinado pelo fato de que esta causa lhe parece, em um dado momento, capaz de ser tida por certa. Um marxista convicto presta pouca atenção à realidade histórica e psicológica de Stálin: o que conta para eles é a idéia puramente abstrata que o marxismo é verdadeiro ou que Stálin tem razão, idéias totalmente independentes do que escreve Marx ou do que faz Stálin. A adoração de uma verdade é, assim, sempre acompanhada de uma indiferença com relação ao conteúdo desta verdade mesma. Ocorre, às vezes, a tais fanáticos, quando acabam por duvidar de seu ídolo ou de seus ídolos sucessivos, só encontrar apaziguamento em uma devoção a uma causa humilde mas indiscutível, por exemplo a verdade aritmética. Aquele que acreditou em tudo mas também duvidou de tudo pode muito bem fazer-se passar, em fim de carreira, por um excelente perito-contador: o estabelecimento de adições justas e de contas exatas oferecendo-lhe enfim a ocasião de um indubitável e interminável gozo do verdadeiro. Assim Bouvard e Pécuchet, depois de terem experimentado de tudo, deviam voltar, segundo o projeto de Flaubert, à sua profissão inicial de copistas escrupulosos e irrepreensíveis.

O prazer de prejudicar os seus próximos, freqüentemente sentido como prioritário com relação ao de dar prazer a si-mesmo, procede talvez desta mesma idolatria da certeza: do sentimento confuso de que o outro sentirá, com certeza, desprazer, enquanto que não se está sempre certo do prazer que se poderia sentir relativamente a si-mesmo.

A indiferença do fanático com relação a seu próprio fanatismo explica o fato, aparentemente paradoxal, de que a obstinação em defender uma causa é sempre acompanhada de uma total versatilidade, que faz parte da natureza da credulidade humana ser necessariamente caprichosa e mutável. Pois, em suma, é uma única e mesma coisa ser crédulo e incrédulo, fanático e versátil: uma vez que o ato de fé só é, na maioria das vezes, uma compensação provisória da incapacidade de crer e que é assim impossível distinguir realmente o crédulo do fanático ou o fanático do versátil. Em suma, todo fanático é um cético infeliz e envergonhado de sê-lo. Ou ainda: o homem é geralmente crédulo porque incrédulo, fanático porque versátil. Spinoza, depois de Maquiavel e Hobbes, observa bem este vínculo entre a credulidade e a incapacidade de crer verdadeiramente, incapacidade que leva o crédulo a passar perpetuamente de um objeto de crença a outro, sem jamais conseguir satisfazer-se: “Do que acabamos de dizer sobre a causa da superstição, segue-se claramente que todos os homens são por natureza propensos a ela. (…) Segue-se, além disso, que a superstição deve ser extremamente variada e inconstante, como são variadas e inconstantes todas as ilusões da alma humana e as loucuras em que ela se deixa arrastar; e que, finalmente, só se mantém pela esperança, pelo ódio, pela ira e pela fraude, já que não tem sua origem na Razão, mas exclusivamente na Paixão mais poderosa. Daí que, quanto mais fácil é que os homens sejam vítimas de qualquer tipo de superstição, tanto mais difícil é conseguir que persistam na mesma; ainda mais, como o vulgo é sempre igualmente miserável, em parte alguma acha descanso duradouro, e só o satisfaz o que é novo e ainda não o enganou”.

Observarei, para terminar, que o gosto da certeza é freqüentemente associado a um gosto da servidão. Este gosto da servidão, muito estranho mas também universalmente observável desde que existem homens e que eles pensam demasiado, diria parodiando La Bruyère, explica-se provavelmente menos por .uma propensão incompreensível à servidão em si mesma do que pela esperança do ganho de um pouco de certeza obtido em troca de uma confissão de submissão ao que declara ser fiador da verdade (sem que com isso, evidentemente, revele nada dela). Incapazes de considerar certo o que quer que seja, mas igualmente incapazes de acomodar-se com esta incerteza, os homens preferem, na maioria das vezes, confiar em um mestre que afirma ser depositário da verdade à qual eles próprios não têm acesso: tais como Moisés face aos hebreus, Jacques Lacan face a seus fiéis, o pretenso filho de guardião de prisão face aos prisioneiros, no aforismo 84 do Viajante e sua sombra de Nietzsche, ou ainda um outro guardião, o que vigia a lei em uma parábola célebre de Kafka e aceita todos as gorjetas sem, com isso, permitir a quem quer que seja descobrir seu segredo, face ao “homem do campo”. Em vez de assumir sua ignorância, eles preferem trocar sua liberdade pela ilusão de que existe alguém que pensa por eles e sabe o que eles não conseguem saber. A adesão a uma causa, o fanatismo sob todas as suas formas, é assim menos a obra da pessoa que adere do que da pessoa intermediária e fantasmática em nome da qual se opera a aderência. O fanático ele-mesmo não crê em nada; em compensação, crê naquele ou naquela os quais, ele pensa confusamente que crêem em alguma coisa. Não sou eu quem creio, é Ele; e esta é a razão por que creio Nele, embora não saiba nada Dele nem do que Ele sabe. Esta crença por procuração diz muito sobre a natureza da credulidade humana: lembrando, caso fosse necessário, que esta não resulta de uma propensão natural a crer, mas, muito ao contrário, de uma total e intolerável incapacidade pessoal de crer no que quer que seja.


ROSSET, Clément, O princípio de crueldade. Trad. de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

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