A angústia da influência – Harold BLOOM

A angústia da influência foi e continua sendo mal interpretado, de uma maneira medíocre. Qualquer leitor capaz deste livro, o que significa qualquer um com alguma sensibilidade literária e que não seja comissário nem ideólogo, de esquerda ou direita, verá que influência-angústia não se refere tanto aos precursores quanto é uma angústia realizada no e pelo conto, romance, peça, poema ou ensaio. A angústia pode ou não ser internalizada pelo escritor que vem depois, dependendo de temperamento e circunstâncias, mas isso dificilmente importa: o poema forte é a angústia realizada. “Influência” é uma metáfora, que implica uma matriz de relacionamentos — imagísticos, temporais, espirituais, psicológicos — todos em última análise de natureza defensiva. O que mais importa (e é a questão central deste livro) é que a angústia da influência resulta de um complexo ato de forte má leitura, uma interpretação criativa que eu chamo de “apropriação poética”. O que os escritores podem sentir como angustia, e o que suas obras são conseqüências obrigadas a manifestar, são as da apropriação causa poética, mais que a sua causa. A forte má leitura vem primeiro; tem de haver um profundo ato de leitura que é uma espécie de paixão por uma obra literária. É provável que essa leitura seja idiossincrática, e quase certo que seja ambivalente, embora a ambivalência possa estar velada. (p. 23-24)


De formas que não precisam ser doutrinárias, os poemas fortes são sempre presságios de ressurreição. O morto pode ou não retornar, mas sua voz ganha vida, paradoxalmente nunca pela mera imitação, e sim na agónica apropriação cometida contra poderosos precursores apenas pelos seus sucessores mais talentosos. […] A ironia de uma época não pode ser a de outra, mas as influências-angústias estão embutidas na base agonística de toda literatura de criação. O agon, ou luta pela supremacia estética, era bastante franco na literatura grega antiga, mas tem sido mais uma diferença de grau que de espécie entre diferentes culturas. A luta de Platão com Homero é o agon central da literatura ocidental,
mas há muitas lutas rivais, chegando até aos matches paródicos entre Hemingway e seus precursores, e dos seguidores de Hemingway com o mestre. (p. 24-25)


Quando nascemos, choramos por termos chegado a este grande palco de bobos. Lear ecoa a Sabedoria de Salomão, mas a bíblica autoridade do pronunciamento é de Shakespeare, não da Bíblia. Somos bobos do tempo a caminho do território não descoberto, mais que filhos de Deus retornando ao paraíso. A questão não é crença, mas nossa natureza humana, tão intensificada por Shakespeare que se torna invenção dele. (p. 28)


Aludindo deliberadamente à mais revoltante fala de Barabas, Shakespeare tenta ser mais Marlowe que Marlowe:

BARABAS: Quanto a mim, ando por aí às noites,
E mato pessoas doentes que gemem aos pés dos muros.
Às vezes saio por aí envenenando poços;
E de vez em quando, para fazer um carinho a ladrões cristãos,
Fico satisfeito por perder algumas das minhas coroas,
Para poder, andando em minha galeria,
Vê-los passar amarrados por minha porta.
Na juventude, estudei física, e comecei
A praticar primeiro com os italianos;
Ali enriqueci os padres com enterros,
E mantive sempre em uso os braços dos coveiros
Com a abertura de covas e os dobres de finados.
E, depois disso, fui engenheiro,
E nas guerras entre a França e a Alemanha,
A pretexto de ajudar Carlos Quinto,
Chacinei amigos e inimigos com meus estratagemas:
Depois disso fui usurario,
E com extorsão, fraude e confisco,
E truques do ramo da corretagem,
Enchi os cárceres de falidos em um ano,
E com jovens órfãos plantei asilos;
E a cada lua deixei um ou outro louco,
E de vez em quando um se enforcava com o sofrimento,
Pregando no peito um longo e grande aviso
De como eu com juros o atormentei.
Mas vê como fui abençoado por persegui-los:
Tenho tanto dinheiro que dá para comprar a cidade.
Mas diz-me agora: como passaste tu o teu tempo?

AARÃO: Ai, não haver feito eu mil vezes mais.
Mesmo hoje maldigo o dia — e no entanto creio
Que poucos dias entram no âmbito de minha praga —
Em que não fiz algum mal notório:
Como matar um homem, ou planejar sua morte,
Estuprar uma donzela, ou tramar a maneira de fazê-lo,
Acusar um inocente, e dar falso testemunho,
Criar mortal inimizade entre dois amigos,
Fazer o gado dos pobres quebrar o pescoço,
Atear fogo a celeiros e montes de feno à noite,
E mandar os donos apagá-los com suas lágrimas.
Muitas vezes desenterrei mortos de suas covas,
E os pus de pé nas portas de seus amigos,
Mesmo quando a dor já quase fora esquecida,
E na pele deles, como em troncos .de árvores,
Com minha faca gravei em alfabeto romano:
“Que não morra a tua dor, embora morto esteja eu.”
Mas eu fiz mil coisas pavorosas
De tão bom grado quanto se mata uma mosca,
E nada me causa mais sincera tristeza, de fato,
Do que não poder fazer dez mil vezes mais. (p. 40-42)


Na argumentação deste livro, tem-se a história poética como indistinguível da influência poética, uma vez que os poetas fortes fazem essa história distorcendo a leitura uns dos outros, a fim de abrir para si mesmos um espaço imaginativo.
Meu interesse é apenas por poetas fortes, grandes figuras com a persistência de lutar com seus precursores, mesmo até a morte. Os talentos mais fracos idealizam; as figuras de imaginação capaz apropriam-se. Mas nada se obtém a troco de nada, e a apropriação envolve as imensas angústias do endividamento, pois qual criador forte deseja compreender que não conseguiu criar-se a si mesmo? Oscar Wilde, que sabia que fracassara como poeta porque lhe faltava a força para superar sua angústia da influência, sabia também das verdades mais sombrias sobre a influência. The Ballad o f Reading Gaol [A balada do cárcere de Reading] torna-se uma leitura vexaminosa assim que se reconhece em cada brilho que exibe um reflexo de The Rime o f the Ancient Mariner [A rima do velho marinheiro]; e a lírica de Wilde antologiza todo o alto romantismo inglês. Sabendo disso, e armado com sua costumeira inteligência, Wilde observa amargurado em The Portrait o f Mr. W.H. [O retrato de Mr. W.H.]: “A influência é simplesmente uma transferência de personalidade, um modo de abrirmos mão do que é mais precioso para nosso eu, e seu exercício produz uma sensação e, talvez, uma realidade de perda. Todo discípulo toma alguma coisa de seu mestre.” Esta é a angústia do influenciar, mas nenhuma inversão nessa área é uma verdadeira inversão. Dois anos depois, Wilde depurou seu amargor numa das elegantes observações de Lorde Henry Wotton em The Portrait o f Dorian Gray [O retrato de Dorian Gray], onde ele diz a Dorian que toda influência é imoral:

Porque influenciar alguém é dar-lhe nossa própria alma. Ele não pensa seus pensamentos naturais, nem arde com suas paixões naturais. Suas virtudes não são reais para ele. Seus pecados, se é que existem pecados, são emprestados. Ele se torna um eco da música de outro, ator de um papel que não foi escrito para ele.

Para aplicar a intuição de Lorde Henry a Wilde, precisamos apenas 1er a resenha deste ao Appreciations [Avaliações], de Pater, com a observação de encerramento esplendidamente equivocada de que o autor “escapou de discípulos”. Toda grande consciência estética parece ter, singularmente, mais talento para negar obrigações à medida que gerações famintas vão se atropelando umas às outras. (p. 55-56)


Nietzsche e Freud são, até onde me é dado ver, as influências básicas na teoria da influência apresentada neste livro. Nietzsche é o profeta do antitético, e sua Genealogia da moral é o mais profundo estudo de que disponho das tensões revisionárias e ascéticas no temperamento estético. As investigações por Freud dos mecanismos de defesa e seu ambivalente funcionamento oferecem os análogos mais claros que encontrei para as proporções revisionárias que governam as relações intrapoéticas. Contudo, a teoria da influência aqui explicada não é nietzschiana em seu deliberado literalismo, e na insistência de Vico em que a prioridade na intuição é crucial para todo poeta forte, para que não se reduza simplesmente a um retardatário. Minha teoria também rejeita o limitado otimismo freudiano, de que é possível uma feliz substituição, que uma segunda oportunidade pode nos salvar da busca repetitiva de nossas primeiras ligações. Os poetas como poetas não podem aceitar substituições, e lutam até o fim para ter apenas a oportunidade inicial. Nietzsche e Freud subestimaram os poetas e a poesia, deram mais poder à fantasmagoria do que ela de fato possui. E também, apesar de seu realismo moral, idealizaram demais a imaginação. O discípulo de Nietzsche, Yeats, e o de Freud, Otto Rank, mostram uma maior consciência da luta do artista contra a arte, e da relação dessa luta com a antitética batalha do artista contra a natureza.
Freud reconheceu a sublimação como a mais alta realização humana, um reconhecimento que o alia a Platão e a todas as tradições morais do judaísmo e do cristianismo. A sublimação freudiana implica abrir mão de modos de prazer mais primordiais por modos mais refinados, o que significa exaltar a segunda oportunidade acima da primeira. O poema de Freud, na visão deste livro, não é suficientemente severo, ao contrário dos severos poemas escritos pelas vidas criativas dos poetas fortes. Equiparar maturação emocional com a descoberta de substitutos aceitáveis pode ser sabedoria pragmática, sobretudo no reino de Eros, mas não é essa a sabedoria dos poetas fortes. O sonho de que se abre mão não é apenas uma fantasmagoria de interminável satisfação, mas a maior de todas as ilusões humanas, a visão da imortalidade. (p. 58-59)


Um crítico wordsworthiano, mesmo um tão leal como Geoffrey Hartman, pode insistir em distinguir claramente entre prioridade, como um conceito vindo da ordem natural, e autoridade, da ordem espiritual, mas a ode de Wordsworth recusa fazer essa distinção. “Procurando superar a prioridade”, diz sabiamente Hartman, “a arte combate a natureza no terreno da própria natureza, e tem de perder.” A tese deste livro é que os poetas fortes estão condenados exatamente a essa falta de sabedoria: a Grande Ode de Wordsworth combate a natureza no terreno dela, e sofre uma grande derrota, embora retenha seu sonho maior. Esse sonho, na ode de Wordsworth, é sombreado pela angústia da influência, devido à grandeza do poema-precursor, o Lycidas de Milton, onde a recusa humana a sublimar inteiramente é ainda mais áspera, apesar da ostensiva rendição às doutrinas cristãs de sublimação. […] Pois todo poeta começa (por mais “inconscientemente” que seja) por rebelar-se com mais força que os outros homens e mulheres contra a consciência da necessidade da morte. O jovem cidadão da poesia, ou efebo, como o chamaria Atenas, já é o homem antinatural e antitético, e desde seu começo como poeta busca um objetivo impossível, como fez antes seu precursor. (p. 59-60)


Uma teoria de poesia que se apresenta como um severo poema, baseado em aforismo, apotegma e um padrão mítico bastante pessoal (embora inteiramente tradicional), ainda assim pode ser julgada, e pedir para ser julgada, como tese. Tudo que compõe este livro — parábolas, definições, o exame das proporções revisionárias como mecanismos de defesa — pretende ser parte de uma meditação unificada sobre a melancolia da desesperada insistência da mente criativa sobre a prioridade. Vico, que leu toda criação como um severo poema, compreendeu que prioridade na ordem natural e autoridade na ordem espiritual haviam sido uma coisa só e tinham de continuar sendo uma coisa só, para os poetas, porque só essa severidade constitui o Saber Poético. Vico reduziu a prioridade natural e a autoridade espiritual a propriedade, uma redução hermenêutica que eu reconheço como a Ananke, a horrenda necessidade que ainda governa a imaginação ocidental. Valentino, especulador gnóstico do século II, foi a Alexandria ensinar o Pleroma, a Plenitude dos trinta Éons, partes da Divindade-. “Era um grande espanto que estivessem no Pai sem conhecê-Lo.” A busca do lugar onde já se está é a mais estúpida das buscas, e a mais condenada. A Musa de todo poeta forte, sua Sofia, salta tanto para fora e para baixo quanto possível, numa paixão solipsista de busca. Valentino impôs um Limite, no qual finda a busca, mas nenhuma busca finda, se seu contexto é a Mente Incondicionada, o cosmo dos maiores poetas pós-miltônicos. A Sofia de Valentino recuperou-se, fundiu-se de novo no Pleroma, e só sua Paixão ou Intenção Sombria foi separada para o nosso mundo, além do Limite. Nessa Paixão, a Sombria Intenção que Valentino chamou de “fruto impotente e fêmea”, deve cair o efebo. Se sair dela, por mais estropiado e cego que seja, estará entre os poetas fortes.

Sinopse: Seis Proporções Revisionárias

  1. Clinamen, leitura distorcida ou apropriação mesmo; tomo a palavra de Lucrécio, onde ela significa um “desvio” dos átomos para possibilitar a mudança no universo. O poeta desvia-se de seu precursor, lendo o poema dele de modo a executar o clinamen em relação a ele. Isso aparece como um movimento corretivo em seu próprio poema, que sugere que o poema do precursor seguiu certo até um determinado ponto, mas depois deve ter-se desviado, precisamente na direção em que segue o novo poema.
  1. Tessera, completude e antítese; tomo a palavra não da fabricação de mosaicos, onde ainda é usada, mas dos cultos de mistério antigos, onde queria dizer um sinal de reconhecimento, o fragmento, digamos, de uma pequena jarra, que com os outros fragmentos reconstituiria o vaso. O poeta “completa” antitéticamente seu precursor, lendo o poema-pai de modo a reter seus termos, mas usando-os em outro sentido, como se o precursor não houvesse ido longe o bastante.
  1. Kenosis, dispositivo de decomposição semelhante aos mecanismos de defesa que nossa mente emprega contra as compulsões de repetição; é portanto um movimento de descontinuidade em relação ao precursor. Tomo a palavra de São Paulo, onde quer dizer a submissão ou esvaziamento de Jesus por si mesmo, quando aceita a redução de status, de divino para humano. O poeta que vem depois, aparentemente esvaziando-se de seu próprio estro, sua divindade imaginativa, parece submeter-se, como se estivesse deixando de ser poeta, mas esse refluxo é realizado em relação ao poema de refluxo do precursor de um modo que também se esvazia o precursor, e assim o poema de esvaziamento posterior não é tão absoluto quanto parece.
  1. Daemonização, movimento para um Contra-Sublime personalizado, em relação ao Sublime do precursor; tomo o termo do uso neoplatônico generalizado, onde um ser intermediário, nem divino nem humano, entra no adepto para ajudá-lo. O poeta que vem depois abre-se para o que acredita ser um poder no poema-pai que não pertence ao pai mesmo, mas a uma gama de ser logo além desse precursor. Ele faz isso, em seu poema, colocando a relação da obra com o poema-pai de modo a desfazer pela generalização a unicidade da obra anterior.
  1. Askesis, movimento de autopurgação, que se destina a atingir um estado de solidão; tomo o termo, por mais geral que seja, sobretudo da prática de xamãs pré-socráticos como Empédocles. O poeta que vem depois não passa, como na kenosis, por um movimento revisionário de esvaziamento, mas de redução; abre mão de parte de seu dom humano e imaginativo para separar-se de outros, incluindo o precursor, e faz isso em seu poema colocando-o em relação ao poema-pai de modo a fazer com que esse poema também passe por uma askesis; o talento do precursor é igualmente truncado.
  1. Apophrades, ou retorno dos mortos; tomo a palavra dos tristes e infelizes tempos atenienses em que os mortos voltavam a habitar as casas onde haviam morado. O poeta que vem depois, em sua própria fase final, já assoberbado por uma solidão imaginativa que é quase um solipsismo, mantém seu poema de novo tão aberto à obra do precursor que a princípio podemos acreditar que a roda completou um círculo completo, e que estamos de volta ao inundado aprendizado do poeta posterior, antes que sua força começasse a afirmar-se nas proporções revisionárias. Mas o poema é agora mantido aberto ao precursor, quando antes estava aberto, e o efeito fantástico é que a realização do novo poema o faz parecer a nós não como se fosse o precursor a estar escrevendo-o, mas como se o próprio poeta posterior houvesse escrito a obra característica do precursor. (p. 63-65)

BLOOM, Harold, A angústia da influência: uma teoria da poesia. Trad. de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

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