Não há fim para a “influência”, palavra que Shakespeare usou em dois sentidos diferentes mas relacionados. Pouco antes da segunda entrada do Espectro, na primeira cena de Hamlet, o erudito Horatio evoca o mundo de Júlio César de Shakespeare, onde:
Pouco antes de tombar o poderosíssimo Júlio,
As tumbas estavam desabitadas e os cadáveres amortalhados
Guinchavam e balbuciavam nas ruas de Roma.
Como estrelas com caudas de fogo, e orvalhos de sangue,
Desastres no sol; e a úmida estrela
Na qual está a influência do império de Netuno
Sofria de eclipse até quase o Juízo Final.
Shakespeare pode estar-se lembrando de dois anos antes, de 1598, quando trabalhava na última batalha de Falstaff em Henrique IV, Parte Dois, numa Inglaterra muito perturbada pela melancolia de um eclipse solar e dois lunares, levando a prognósticos de Juízo Final em 1600. Hamlet, e não o Juízo Final, marcou aquele ano para ele, mas Horatio, mais romano antigo que dinamarquês, ainda medita sobre os “desastres no sol”, lembrando-nos a teoria estelar da influência sobre os nascidos sob uma má estrela, e o influxo da lua (a úmida estrela) sobre as ondas. O fluxo dos astros sobre nossos destinos
e personalidades é o sentido primeiro de “influência”, um sentido que se torna pessoal entre as personagens shakespeareianas. Shakespeare também usa a palavra “influência” como “inspiração”, nos sonetos e nas peças.
BLOOM, Harold, A angústia da influência, p. 11-12.
Como compulsar uma escrita em ruínas, uma obra que nunca terá propriamente começado? Uma tal escrita do desastre expressa a ruptura com o astro (dis-astrum): ter nascido sob má estrela significa acolher o infortúnio, ser um exilado das estrelas. No sibilino livro de Blanchot, L´écriture du désastre, lemos que “le désastre signifie être séparé de l’étoile” (1980: 9). Como acolher a expatriação do absoluto e a despertença ontológica? Como pensar o fundo sem fundo do nosso pensamento? É dessa errância que se faz a estranha fala de Cioran (1911-1995): vertigens e delírios, impasses e impotências, a paixão pelos abismos e outros desastres.
GIL SOEIRO, Ricardo, A volúpia do desastre: notas soltas para Cioran
Le Christ encore. D’après un récit gnostique, il serait, par haine du fatum, monté au ciel pour y déranger la disposition des sphères et empêcher qu’on interroge les astres.
Aveux et anathèmes (1987)
Dans ce remue-ménage, qu’a-t-il bien pu arriver à ma pauvre étoile ?
“Novamente o Cristo. Segundo um relato gnóstico, ele teria, por ódio ao fatum [destino], subido ao céu para desfazer a disposição das esferas e impedir que se interrogassem os astros.
Em meio a esse tumulto, que fim pode ter levado a minha pobre estrela?”
Chacun s’agrippe comme il peut à sa mauvaise étoile.
Aveux et anathèmes
“Cada um se agarra como pode à sua má estrela.”
Que seja maldita para sempre a estrela sob a qual nasci, que nenhum céu queira protegê-la, que se disperse no espaço como uma poeira sem honra! E o instante traidor que me precipitou entre as criaturas, seja para sempre riscado das listas do tempo! Meus desejos já não podem pactuar com esta mescla de vida e de morte em que se avilta cotidianamente a eternidade. Cansado do futuro, atravessei os dias e, no entanto, estou atormentado pela intemperança de não sei que sede. Como um sábio raivoso, morto para o mundo e enfurecido contra ele, só invalido minhas ilusões para excitá-las melhor. Esta exasperação em um universo imprevisível – onde, entretanto, tudo se repete – não terá jamais um fim? Até quando repetir a si mesmo: “Execro esta vida que idolatro?” A nulidade de nossos delírios faz de nós todos semelhantes a deuses submissos a uma insípida fatalidade. Por que insurgir-nos ainda contra a simetria deste mundo, quando o próprio Caos não poderia ser outra coisa senão um sistema de desordens? Como nosso destino é apodrecer com os continentes e as estrelas, exibiremos, como doentes resignados, e até a conclusão das eras, a curiosidade por um desenlace previsto, medonho e vão.
“Quousque eadem?”, Breviário de decomposição