“Providência pessoal” – Friedrich NIETZSCHE

Providência pessoal. — Existe, na vida, um certo ponto alto: ao atingi-lo corremos novamente, com toda a nossa liberdade, e por mais que tenhamos negado ao belo caos da existência toda razão boa e solícita, o grande perigo da servidão espiritual, e temos ainda a nossa mais dura prova a prestar. Pois é então que para nós se apresenta, com a mais insistente energia, a ideia de uma providência pessoal, tendo a seu favor o melhor advogado, a evidência, é então que vemos com nossos olhos que todas, todas as coisas que nos sucedem resultam constantemente no melhor possível. A vida de cada dia e cada hora parece não querer mais do que demonstrar sempre de novo essa tese; seja o que for, tempo bom ou ruim, a perda de um amigo, uma doença, uma calúnia, a carta que não chegou, a torção de um pé, a olhada numa loja, um argumento contrário, o ato de abrir um livro, um sonho, uma trapaça: imediatamente ou pouco depois tudo se revela como algo que “tinha de acontecer” — é algo de profundo sentido e utilidade justamente para nós! Haverá mais perigosa tentação a renunciar à fé nos deuses de Epicuro, esses indiferentes desconhecidos, e crer em alguma divindade zelosa e mesquinha, que conhece todo fio de cabelo de nossa cabeça e não repugna prestar os mais miseráveis serviços? Ora — quero dizer, apesar de tudo isso! —, vamos deixar em paz os deuses e também os prestativos gênios e satisfazer-nos com a suposição de que nossa própria habilidade prática e teórica em interpretar e arrumar os acontecimentos tenha atingido seu ponto alto. Tampouco vamos ter em bem alta conta essa destreza de nossa sabedoria, se por vezes nos surpreender muito a maravilhosa harmonia que surge de nosso instrumento: uma harmonia que soa bem demais para que ousemos atribuí-la a nós mesmos. De fato, aqui e ali alguém toca conosco — o querido acaso: ele eventualmente guia a nossa mão, e a mais sábia providência não poderia conceber música mais bela do que a que então consegue esta nossa tola mão.


NIETZSCHE, Friedrich, A gaia ciência, IV (“Sanctus Januarius”), § 277 (“Providência pessoal”). Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2001.

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